In memoriam: Jaak Panksepp – O cientista que fazia os ratos rir

Deixou-nos aos 73 anos o neurocientista de origem estónia Jaak Panksepp, que se dedicou ao estudo do que chamou “neurociência afectiva”, focada na base neuronal das emoções. Estava previsto ser key-note speaker do próximo congresso da UFAW e queria muito ouvir a sua apresentação. Infelizmente, já não será possível.

O seu trabalho teve impacto considerável na ciência do bem-estar animal (era Baily Endowed Chair of Animal Well-Being Science, uma cátedra da Universidade de Washington), tendo sido uma grande referência para cientistas como Temple Grandin. 

Panksepp propôs que o instinto para brincar é comum nos juvenis de muitos mamíferos – incluindo os ratos –  por ser impulsionado pelas partes mais primitivas do cérebro, ao invés do córtex cerebral. E para que a motivação para brincar se tenha conservado longo de milhões de anos – não obstante o maior risco de expor os juvenis a predadores – é porque a mesma confere importante vantagens evolutivas, como as competências sociais, como explicado neste vídeo animado. Assim, Panksepp urge-nos a deixar as crianças brincar, tanto quanto possível, se queremos que tenham saúde mental e sucesso como adultos.

O papel do Médico Veterinário na Tourada à Portuguesa

Cinco anos passados, trago à luz um artigo, publicado em 2010 na Veterinária Atual, onde exponho a minha visão sobre o papel da classe médica veterinária na Tourada à Portuguesa. À excepção da legislação (o Decreto Regulamentar n.º 62/91 de 29 de Novembro deu lugar ao Decreto-Lei n.º 89/2014 de 11 de Junho) o artigo é uma cópia fiel do orginal.

Pablo Picasso (1881-1973)
Corrida de Toiros: A Morte do Toureiro (1933)
Óleo sobre madeira, 31,2 x 40,3 cm
Musée Picasso, Paris
Ver descrição aqui.

Resumo

A corrida de touros tem surgido, nos últimos anos, como um tema fracturante na sociedade portuguesa. Se os activistas dos direitos dos animais defendem que o touro deve ser poupado ao sofrimento da lide, os aficionados contestam que é essa mesma lide que permite a sobrevivência do touro bravo (ou seja, da sua raça). A classe médico-veterinária está, por inerência das suas responsabilidades, envolvida na actividade tauromáquica e nunca tomou – que seja do meu conhecimento – nenhuma posição concertada na mediação deste confito. No entanto, se permanecermos alheados da discussão pública, arriscamo-nos a ser ultrapassados pelos acontecimentos e a ver o papel da nossa classe diminuido ou mesmo descredibilizado. Este artigo pretende enquadrar o papel do Médico Veterinário na Tourada à Portuguesa e dessa forma contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre esta matéria.

Introdução

A questão da legitimidade moral do espectáculo tauromático (vulgo corrida de touros ou tourada) não é nova. Ela remonta às origens da própria actividade (ERCS 2008) e corresponde a um choque sociológico enraizado onde colidem duas formas distintas de entender a ética animal. E se a visão dos activistas é, por vezes, reducionista pois concentra toda a actividade tauromáquica no sofrimento do touro na arena, a verdade é que defender o status quo porque a tourada é uma tradição secular (ou porque evita a extinção do touro bravo) corresponde a uma igual simplificação de raciocínio. Certo é que, na defesa do touro bravo, não basta esgrimir argumentos de um e doutro lado da barricada na esperança que o adversário soçobre. Enquanto a discussão sobre as touradas estiver tão polarizada em grupos de interesse – e manipulada pelos media – não é crível que o principal interessado na contenda, o touro, saia beneficiado. É, pois, necessário procurar um debate sério capaz de reunir consensos, e aqui deixo uma primeira contribuição.

A tourada contextualizada

Desde o mediático caso de Barrancos no virar do século (Capucha 2002), que o movimento anti-touradas tem merecido especial notoriedade entre a opinião pública nacional sem que isso signifique necessariamente que a corrida de touros esteja a perder popularidade. As estatísticas são, neste sentido, contraditórias (Público 2009). No entanto, não podem os aficionados ignorar o fenómeno social do activismo pró-animal como o fizeram no passado. Uma sociedade democrática assenta as suas premissas básicas num pluralismo de opiniões que é preciso compreender. A profissão veterinária é ela própria um bom exemplo: de masculina e rural passou em duas décadas para tendencialmente feminina e urbana, o que traz consigo uma riqueza de opiniões que importa ouvir. O pequeno, mas significativo, número de autarquias que proíbe os espectáculos tauromáquicos nos espaços por si tutelados, é bem a imagem de que a festa brava se encontra numa encruzilhada: ou continua surda aos gritos de revolta e assiste imóvel ao crescente mediatismo dos argumentos das organizações zoófilas (mesmo que, por vezes, desprovidos de profundidade) ou oferece o dorso ao ferro e promove a reformulação de algumas das práticas que constituem a lide.

Todos nós sabemos que a actividade tauromáquica é muito mais do que a lide. É um modo de vida que, dentro do mesmo raciocínio plural, merece ser respeitado. Mas, mesmo que tenhamos em consideração os anos de vida livre de que o touro goza, a defesa da tourada torna-se frágil quando analisada em termos de bem-estar animal. Embora a tourada goze de protecção jurídica (Decreto-Lei n.º 89/2014 de 11 de Junho), o “óbvio sofrimento dos touros” (Pereira 2003) não pode ser ignorado. O regime de excepção previsto pela lei nacional (artigo 1.º, n.º 3, alínea b), da Lei 92/95 de 2 de Setembro) legaliza o uso de instrumentos perfurantes nas touradas mas não legitima todo o tipo de asserções. Afirmar, em directo na televisão nacional, que o touro na arena não sofre (João Palha Ribeiro Telles, SIC, Aqui & Agora, 23 de Abril de 2009) é uma forma pouco séria de discutir a dimensão ética da corrida. O sofrimento existe, faz parte da faena e só assumindo este facto inelutável pode a indústria tauromáquica encarar de frente aqueles que tão agressivamente a acometem.

Apesar do bem-estar do touro ser comprometido desde a sua selecção para a lide até até ao abate, isso não significa que não possam ser introduzidas melhorias. Tendo em conta que a tourada não visa torturar o animal, é do interesse dos próprios aficionados que seja dado um primeiro passo no sentido de minorar a ansiedade e a dor a que o touro é sujeito no dia da lide. O problema é que, no momento presente, os detractores da indústria tauromáquica actuam como agentes agressores mais interessados em extinguir o seu modo de vida do que em discutir o que pode ser feito em matéria de consensos. Neste aspecto em particular, deve a classe medico-veterinária tomar a liderança na prossução de medidas concretas e pró-activas que beneficiem todos os intervenientes na corrida, particularmente o touro.

O papel do Médico Veterinário

O Médico Veterinário constitui o único interveniente nas actividades tauromáquicas que, gozando de absoluta independência de actuação e obedecendo a códigos de conduta moral, procura conciliar o respeito pelos interesses humanos com a defesa da saúde e bem-estar animais. Esta posição, de uma aparente ambivalência, expõe mais facilmente o Médico Veterinário ao criticismo público. Por isso é que, quer sejamos aficionados ou apologistas dos direitos dos animais – ou mesmo na ausência de opinião formada – não podemos ignorar o fenómeno social das touradas. Como profissionais de saúde animal devemos actuar à margem da polémica, procurando reunir a melhor evidência científica e assim contribuir para a construção de uma opinião pública informada e uma prática tauromáquica mais coerente com os valores da sociedade em geral. E por onde começar? Seguem-se algumas sugestões, que não pretendem ser mais do que pontos de reflexão para uma posterior discussão:

  1.  Promover uma maior transparência da Corrida:O Médico Veterinário assume um papel central nos espectáculos tauromáquicos, onde lhe compete assessorar o director da corrida, conforme o previsto pelo supracitado Decreto-Lei n.º 89/2014. O seu juízo é soberano e não podem restar dúvidas nem sobre a sua conduta nem sobre a motivação das suas decisões. Como muitos dos ataques sofridos pela tourada são fruto da ignorância sobre os métodos utilizados nos bastidores da arena, urge promover uma maior transparência das práticas que fazem parte da corrida como o transporte, a desponta e a embolação. Adicionalmente, o Médico Veterinário pode contribuir para a introdução de medidas que permitam minorar o desconforto das reses (ver adiante).
  2. Investir em projectos de investigação em touros de lide: Os colegas investigadores – em especial nas áreas do comportamento e do bem-estar animal – têm nas corridas de touros um manancial de informação enorme e que está ainda por explorar. Aliás, muito está para fazer em quase todas as áreas das ciências veterinárias no que diz respeito ao touro bravo. Para se avançar neste sentido é necessário abrir a tourada a estudos científicos rigorosos e daí ser fundamental a colaboração com os colegas responsáveis pelas corridas. Existe, por exemplo, a crença, comum entre os aficionados, de que o touro tem de sentir dor para investir. Não será que o touro investe apesar de sentir dor e que aí reside a suposta bravura que os ganadeiros procuram alcançar?
  3. Introduzir o conceito de 3 R’s nas Corridas: O conceito dos 3’Rs (Reduction, Refinement, Replacement). foi introduzido no uso de animais de laboratório em investigação biomédica há mais de 50 anos (Russell & Burch 1959) e pode ser adaptado para o contexto da tourada. Estudos que visem refinar (Refinement) os métodos de desponta e embolação; de recolha, transporte e alojamento; do tempo que dista entre a lide e o abate. A procura de alternativas (Replacement) menos traumáticas às tradicionais bandarilhas e à prova da tenta. E a redução (Reduction) do número de animais lidados, do tempo da lide ou do número de ferros a que cada touro é sujeito. 
  4. Reforçar o papel dos Médicos Veterinários Taurinos: Aos colegas especialistas em touros de lide cabe a importante missão de comunicar a ciência à indústria ganadeira. Eles são a linha da frente no diálogo entre o conhecimento científico e a tradição popular e devem assumir um papel activo na educação dos ganadeiros e participar na desmistificação de algumas das crenças comuns entre os aficionados. Como confessa o colega e aficionado Joaquim Grave (2000), “o mundo dos touros é bastante fechado e enferma de alguns tabus”. A missão complica-se porque o jargão tauromáquico é pródigo em termos, como “humilhar do touro” ou “entrega ao sacrifício”, que podem suscitar interpretações erróneas ou desfasadas da ecologia do animal.
  5.  Promover a educação para os valores no ensino da Medicina Veterinária: O ensino pré-graduado em Medicina Veterinária deve previligiar não só a componente deontológica (códigos normativos) mas também o ensino da ética e do profissionalismo. É necessário fornecer aos alunos as ferramentas decisionais que lhes permitam compreender o pluralismo de opiniões da sociedade contemporânea e defender as suas próprias opções éticas. A abordagem a questões como qual deve ser o papel do Médico Veterinário na tourada ou qual a justificação moral para defender a sua atitude em relação aos touros de lide devem fazer parte da sua formação base.
  6.  Criar-se uma plataforma de discussão dentro da classe:  Este artigo constitui uma reflexão introdutória sobre os passos que a classe veterinária pode dar no sentido de se envolver de forma responsável na problemática social e ética das corridas de touros. Estou ciente que algumas das sugestões deixadas não colherão fácil aceitação, nem serão porventura as mais adequadas. Por isso seria útil que se criasse, no futuro próximo, uma plataforma de discussão no seio da nossa classe – em congressos, publicações escritas ou usando as tecnologias de informação – onde o papel do Médico Veterinário na tourada à Portuguesa seja debatido.

Considerações finais

As competências e responsabilidades inerentes à nossa profissão fazem do Médico Veterinário um interlocutor privilegiado na procura de soluções práticas para o conflito social dos espectáculos tauromáquicos. Não devemos assistir de braços cruzados ao desenrolar dos acontecimentos, esperando que sejam outros a decidir por nós. Se nada fizermos, seremos avaliados pela nossa inércia. A actividade tauromáquica faz parte da paisagem cultural (rural e urbana) do nosso país e cabe à sociedade a última palavra, decidindo se de medidas como as que aqui foram propostas resulta uma festa mais humana – e que merece ser defendida – ou, pelo contrário, menos autêntica – e talvez inaceitável. Só discutindo pontos discordantes podemos, em concreto, ir ao encontro do único ponto que todos parecem defender: os interesses do touro de lide.

Referências
Capucha, Luís (2002) “Barrancos na ribalta, ou a metáfora de um país em mudança”, Sociologia – Problemas e Práticas, n.º 39, pp. 9-38
ERCS (2008) “Deliberação 13/CONT-TV/2008”, Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Lisboa, 3 de Setembro de 2008
Grave, Joaquim (2000) Bravo! Lisboa: Oficina do Livro
Pereira, António Maria (2006) “Ética e Touradas”, Crítica: Revista de Filosofia, Acesso por: http://criticanarede.com/html/ed130.html, em 11 Nov. 2009
Público (2009) “Destaque – Tauromaquia”, Jornal Público, nº 6975, 08/05/2009, pp. 2-3
Russell, W.M.S. & Burch, R.L. (1959) The principles of humane experimental technique. London: Methuen

Este texto foi publicado originalmente como:

M. Magalhães-Sant’Ana (2010) “Haverá lugar a consensos na Tourada à Portuguesa? O papel do Médico Veterinário”. Veterinária Atual – Revista Profissional de Medicina Veterinária, 25: 32-33.

Gostaria de ser cozido vivo? O dilema moral de um prato de caracóis.

Caracóis cozidos são uma iguaria muito apreciada em Portugal nesta altura do ano. Nesse sentido, o grupo activista Acҫão Directa lanҫou uma campanha em defesa dos caracóis, alertando para a dimensão moral do facto de estes moluscos serem cozidos vivos. Segundo a dita associaҫão “estes animais sentem e por tal sofrem nas circunstâncias em que são instrumentalizados apenas para satisfazer o palato de quem os procura como petisco”. A reacҫão das redes sociais – quase sempre ígnea, hiperbólica e intolerante – não se fez esperar, considerando a iniciativa para lá de ridícula e obrigando mesmo a associaҫão a reagir às críticas de que tem sido alvo.

O alerta lanҫado pela Acҫão Directa nada tem de ridículo. A evidência de estudos comportamentais é inteiramente consistente com a ideia de que alguns invertebrados, principalmente crustáceos (como as lagostas) e moluscos (como caracóis), experienciam dor. No entanto, é de salentar que eu uso o verbo experienciar, em vez do verbo sentir, porque a diferenҫa entre os dois não é apenas semântica. Na verdade, não basta dizer que um animal experimenta dor para que essa dor seja relevante em termos morais. Para que a dor conte moralmente o animal deve senti-la como experiência subjetiva aversiva (i.e. sofrimento), algo que não é de todo evidente no caso do caracol. Para além disso, a questão do sofrimento deve ser analisada em perspectiva e não de forma isolada. Ao contrário do Nuno Franco, não me afirmo como ‘bem-estarista’. Penso que a vida é muito mais do que sentimentos hedonistas de dor e prazer. Valores como o a dimensão ambiental, a responsabilidade social ou a motivaҫão do agente moral (ou seu carácter) são porventura elementos tão ou mais importantes no juízo ético.
Noutras ocasiões já me afirmei como omnívoro e no meu menú constam também os caracóis (ou constavam, pois na Irlanda não os encontro). A helicicultura (i.e. cultivo de caracóis) é uma forma de produҫão animal extremamente eficiente, consumindo muito menos recursos naturais (e.g. terra arável, materias primas) do que aqueles necessários por outras formas de agropecuária industrial. Os caracóis consumidos em Portugal são na sua maioria provenientes de Marrocos. Considerando a sua proximidade (Marrocos esta mais perto de Portugal do que Franҫa, outro país produtor de escargots), o benefício social para as populaҫões locais e a possibilidade de substituir outras formas de consumo proteico – que provavelmente causam maiores problemas de bem-estar, de sustentabilidade ambiental e social – são todas razões de peso para não me rever na campanha da Acҫão Directa.

Além do mais, os caracóis são uma excelente fonte alternativa de proteína. Um prato de caracóis pode facilmente substituir um bife, com muitos outros benefícios nutricionais. Segundo a revista Visão, além do alto teor proteico (13 a 15%) e baixo teor lipídico (0,3 a 0,8%), os caracóis são ricos em ácidos gordos polinsaturados e sais minerais, sobretudo magnésio, cálcio, ferro, cobre e zinco. Quem sabe de caracóis sabe o difícil que é cozinhá-los bem. Para garantir sabor, salubridade e higiene é necessário preservar a frescura do produto e é por isso é que os caracóis devem ser cozinhados vivos. Não existem métodos eficazes de occisão de moluscos e o abate de caracóis apresenta desafios acrescidos em virtude do elevado número de animais envolvidos, das suas reduzidas dimensões, da sua anatomia e resiliência.
Apesar de simpatizar com os motivos desta campanha, ela não conta com o meu apoio, porque não procura soluҫões ou sequer um debate sobre o tema. A procura de alternativas ao uso de caracóis vivos (nomeadamente através de métodos eficazes de abate) parece-me muito mais construtiva do que uma campanha contra o seu consumo.

São os chimpanzés pessoas?

O que define uma pessoa?

Fonte

É o facto de pertencer a uma dada espécie? É uma característica intrínseca e inalienável do ser humano? Qualquer ser remotamente humano será uma pessoa, de plena dignidade, direitos e personalidade jurídica? Se tal é o caso, como justificar a interrupção voluntária da gravidez? Ou a morte assistida/eutanásia? Quando começamos, ou deixamos de ser pessoas?

Isso são questões para a Bioética clássica, como definida por Potter nos anos 1950s. Mas podemos ir mais longe: serão os não-crentes, aos olhos do “Estado Islâmico”, pessoas? Eram-no os Judeus para os Nazis ou os Arménios para o Império Otomano? Ou os escravos de tempos idos, ou os modernos? Ou as mulheres no Médio-Oriente, ou na antiga Roma?
Parece que, aparte a discussão filosófica, na prática o estatuto de “pessoa” não tem sido atribuído automaticamente a todos os seres humanos. Ao longo dos tempos, e até mesmo hoje, para que um grupo de seres humanos reconheça o estatuto de “pessoa” a um outro, este deverá ter características afins a esse grupo. Deverá ser então de certa nacionalidade, cor, etnia, sexo, religião, ou ______________ [INSERIR CARACTERÍSTICA AQUI].  
Mas até recentemente não se questionou um requisito fundamental: ser humano
Acontece que alguns seres humanos pretendem abrir a porta do clube a outras espécies, nomeadamente a cetáceosprimatas, psitacídeos e elefantes, reconhecendo-lhes inteligência, complexidade comportamental e autonomia suficientes para que possam partilhar connosco (ou, melhor dizendo, com os humanos a quem é reconhecido) este estatuto. Na linha da frente desta batalha está o NonHuman Rights Project.

É este movimento que esta semana conseguiu que uma juíza de Nova Iorque, nos Estados Unidos emitisse um habeas corpus, a dois chimpanzés usados como modelos em investigação na Universidade de Stony Brook – nomedamente em evolução do bipedalismo – e atribuindo-lhes assim o estatuto de “pessoa”, declarando a sua situação como “aprisionamento ilegal”. A juíza acabou por, passadas uma horas, emendar a mão e rectificar (ou clarificar) a sua decisão, retirando-lhes esse estatuto, que num sistema baseado largamente na jurisprudência, como o Americano, poderia ter tido consequências importantes.

Neste momento, há uma série de recursos e contra-recursos para decidir o futuro deste par de animais (ou deveria dizer “pessoas”?). Mas, seja qual for o desfecho, é um marco importante na história da nossa convivência com outros animais, sejam eles pessoas ou não. 

Medir expressão facial de dor em animais

Este artigo da Joana Fernandes constitui a segunda parte na série de artigos que reporta informação de um recente encontro sobre bem-estar animal.  

A dor é uma experiência complexa e multidimensional, que envolve elementos fisiológicos e subjectivos. Devido à proximidade dos processos neurológicos entre animais humanos e não humanos, é esperado que os últimos, particularmente os mamíferos, experienciem dor, mesmo não a conseguindo comunicar numa linguagem verbal. Por estas razões, a dor é uma preocupação ética evidente quando falamos em experimentação animal, que envolve, em muitos casos, danos físicos para o animal. O reconhecimento de dor em espécies animais utilizadas em investigação científica é determinante para que sejam definidas e implementadas medidas para a minimizar, e também para a definição de humane endpoints. Embora nos últimos anos a investigação nesta área tenha vindo a crescer, as formas existentes para determinar e medir dor são ainda subjectivas e pouco precisas. É, por isso, muito importante continuar a fazer esforços no sentido de melhorar o reconhecimento de dor nas variadas espécies animais utilizadas em laboratório.

Expressão facial de dor no ratinho. 
Ver mais em

Vê a dor nos olhos do ratinho


O estudo da dor torna-se ainda mais complexo, pois a expressão de dor pelos animais pode confundir-se com outros estados emocionais negativos que não envolvam necessariamente dor. Por outro lado, quando se trata de uma recuperação de um procedimento cirúrgico, em que o animal está debilitado, os sinais de dor podem não ser tão evidentes. Questões éticas acrescem quando se trata de primatas não-humanos, devido à sua proximidade com a nossa espécie, o que leva a uma opinião pública mais dividida e mais forte quanto a experiências que envolvam estes animais. Quanto ao uso destes animais em investigação, a Directiva 2010/63/eu descreve que “tendo em conta o estado actual dos conhecimentos científicos, ainda é necessário recorrer a primatas não-humanos em procedimentos científicos no domínio da investigação biomédica […]. A utilização de primatas não-humanos só deverá ser permitida nos domínios biomédicos essenciais para o benefício do ser humano, em relação aos quais não existam actualmente métodos alternativos de substituição disponíveis”.

No sentido de procurar medidas mais sensíveis ao reconhecimento de dor em primatas, a equipa da Dra. Sarah-jane Vick (Universidade do Stirling, Reino Unido) tem vindo a desenvolver um trabalho de reconhecimento de dor em macaco reso através das suas expressões faciais. O estudo de dor através das expressões faciais tem vindo a crescer e já existem escalas definidas para espécies como o murganho, o rato, o coelho e, também, para o cavalo. Este novo método de investigação em dor é muito interessante e já foi mesmo abordado num post anterior, em que foi discutida não só a semelhança de expressões faciais entre animais e seu valor evolutivo, mas também a relevância ética das evidências de dor em animais não humanos.

Para explorar as expressões faciais de macacos reso, a equipa utilizou um software de identificação de posições dos músculos faciais. Este softwareMaqFACS – foi desenvolvido com base num software existente para identificação de expressões faciais em humanos designado por Facial Action Coding System (FACS). Esta é uma técnica amplamente usada não só em investigação em humanos, mas também na clínica, nomeadamente em psiquiatria.

 Identificação dos músculos faciais de macaco reso (esquerda) e humano (direita) que
 demonstra as semelhanças entre as duas espécies. Foto do sítio ofícial de MaqFACS

O desenvolvimento de uma ferramenta capaz de identificar movimentos dos músculos faciais e correlacioná-los com estados emocionais em humanos, suscitou interesse a cientistas de outras áreas de investigação que utilizam animais não-humanos. O FACS tem sido adaptado a várias espécies animais, como chimpanzés e outros primatas, assim como animais domésticos, como cães e gatos. No entanto, embora este seja um ponto de partida para estudar emoções noutros animais, correlacionar expressões faciais com estados emocionais continua a ser um desafio para os cientistas. 

A Dra. Sarah-jane Vick e a sua equipa pretendem utilizar esta ferramenta para, de forma mais precisa, correlacionar modificações no comportamento causadas pela dor infligida por procedimentos cirúrgicos através das expressões faciais de macacos reso, bem como correlacionar estas com expressões faciais de dor em humanos, pois existem muitos músculos em comum entre as duas espécies. Para isso, o objectivo da equipa é comparar as variáveis referidas acima nas diferentes fases de um procedimento cirúrgico invasivo que inflija dor: antes e depois de uma cirurgia e antes e depois do uso de analgésicos. Este estudo está ainda numa fase preliminar e, por isso, não foram apresentados resultados robustos na palestra. Numa próxima fase os autores vão analisar os dados de comportamento e correlacioná-los com os resultados das expressões faciais que obtiveram nas diferentes fases do procedimento cirúrgico.

Estudar personalidade em peixes – entrevista a Catarina Martins

Manuel Sant’Ana: Olá Catarina Martins. O teu percurso académico tem sido bastante multidisciplinar incluindo temas sobre sustentabilidade em aquacultura, sistemas de recirculação e bem-estar em peixes. Uma parte importante da tua investigação diz respeito à personalidade nos peixes. Tu e a tua equipa do projecto Copewell publicaram recentemente um artigo científico na PLOS ONE em que oferecem evidências fortes de que as Douradas (Sparus aurata) exibem características temperamentais constantes ao longo do tempo e em diferentes contextos. De que forma é que as vossas conclusões podem ser importantes?
Catarina Martins: O estudo que publicamos é particularmente interessante por ter sido feito com a dourada que é uma espécie comercialmente importante no sul da Europa. Ao demonstrarmos que certas diferenças comportamentais são consistentes ao longo do tempo e também previsíveis com base noutros comportamentos podemos concluir que essas diferenças individuais não ocorrem por acaso. Pelo contrário fazem parte daquilo a que chamamos de “sindroma comportamental” ou seja um conjunto de comportamento que variam em conjunto. Isto poderá ter implicações relevantes em aquacultura já que a selecção de certos comportamentos pode conduzir à co-selecção de outros que fazem parte do mesmo sindroma. Torna-se também importante compreender que tipo de associação existe entre comportamentos e certas respostas fisiológicas ao stress. Por exemplo sabe-se que em certas espécies (também demonstramos isso na dourada num artigo recente no Applied Animal Behaviour Science) um peixe que demonstra níveis de cortisol mais baixos quando exposto a situações de stress é um peixe mais agressivo.
MS: O termo personalidade (que remete para o conceito de pessoa) é propenso a antropomorfismos. Curiosamente, há dois anos atrás foi publicado na mesma revista um estudo sobre a evidência de personalidade em anémonas, e do qual demos conta aqui no animalogos. Estaremos a falar da mesma coisa? Será esta característica transversal ao reino animal?

CM: Actualmente na literatura cientifica existem vários termos que são usados de forma indiscriminada como personalidade, sindroma comportamental, temperamento e estilos de adaptação (do inglês coping styles). A escolha de um termo específico tem essencialmente a ver com a área de investigação. Por exemplo em ecologia o termo “sindroma comportamental” é mais frequente enquanto em áreas mais aplicadas como em aquacultura é mais frequente usar-se o termo “coping styles”. Todos estes termos partilham de aspectos comuns: 1) todos reconhecem a importância da variação individual em comportamentos, 2) reconhecem que essa variação individual é consistente ao longo do tempo e 3) que alguns comportamentos podem ser usados para prever outros comportamentos medidos em contextos diferentes (exemplo: ha uma grande probabilidade de um peixe mais agressivo ser um peixe mais explorador em ambientes novos). Quanto ao termo personalidade em particular concordo que por definição está associado “a pessoas” pelo facto de incluir aspectos emocionais. Penso que nos últimos anos os investigadores se têm sentido mais confortáveis com o uso deste termo em peixes devido a vários trabalhos recentes que apontam na direcção de que os peixes também podem demonstrar emoções equivalentes ao medo e à dor. Se aceitarmos a componente emocional na definição de personalidade então penso que neste momento ainda não existem evidências de que a variação individual nas respostas a estímulos ambientais observadas nas anémonas se possa denominar “personalidade”.

MS: Na produção pecuária terrestre (vacas, galinhas, porcos) a ciência do bem-estar animal tem estado cada vez mais preocupada na promoção de experiências positivas e não apenas na minimização de experiências negativas. Em relação aos peixes de aquacultura, essa tendência também se verifica?

CM: O foco em aquacultura continua a ser o minimizar as experiências negativas. No entanto começamos a assistir a vários estudos no âmbito do enriquecimento ambiental que apontam na promoção de experiências positivas.

MS: Por fim, uma pergunta prática: na hora de escolher peixe (para consumo), que recomendações darias ao consumidor?

CM: Penso que é importante desmistificar a ideia de que o peixe de aquacultura é mau. A aquacultura é actualmente uma indústria muito regulamentada em que, na sua generalidade, a qualidade do peixe, quer em termos nutricionais quer em termos de segurança alimentar, é garantida. Considerando os benefícios para a saúde de consumir peixe aconselharia o consumidor a não se limitar a escolher apenas peixe provenientes da pesca.

Seguir a discussão sobre senciência

O sítio Animal Mosaic (elaborado pela World Society for the Protection of Animals) organiza uma série de debates entre cientistas e o público para explorar o tema de senciência não-humana.

Clicar para aceder ao site. 

Em janeiro, Victoria Braithwaite (professora catedrática em pescas e biologia da Penn State University) e Paula Droege (professora de filosófia da mesma universidade) abordaram a questão São os peixes conscientes e sencientes? Uma transcrição do debate está disponível on-line.

Dia 21 de fevereiro, o tema será Pesar a evidência: os invertebrados são sencientes? e os intervenientes Robert Elwood (professor catedratico de comportamento animal da Queen’s University, Belfast) e Melissa Bateson (professora catedratica de etologia da Newcastle University). Este debate tem lugar às 15h e pode ser seguido em direto.

Bem-estar no Abate – "Kill it, Cook it, Eat it"

Por Ricardo Reis:

Ontem (sic) vi um episódio do programa britânico “Kill it, Cook it, Eat it“, que pretende mostrar a um grupo de pessoas ao vivo e aos telespectadores, todo o processo de abate, desmanche e preparação da carne, sendo dada oportunidade aos presentes de comer a carne do animal que viram ser abatido. O episódio de 13 de Dezembro foi sobre porcos. Ora, durante o programa, foram feitas duas afirmações sobre as quais eu gostava de ouvir a opinião dos especialistas.
A dada altura foi dito que o Reino Unido tinha as melhores práticas em termos do bem estar dos animais durante o abate (apesar de um representante da Compassion in World Farming ter dito que nos maiores matadouros a pressa é tanta que os animais podem não ficar devidamente atordoados e acordar antes de morrerem), contrastando com a Europa Continental, que ainda teria um longo caminho a percorrer. Eu gostaria de saber se é verdade, ou se há algum chauvinismo da parte das autoridades britânicas.
Outra coisa que disseram, na voz de uma oficial do Meat Hygiene Service (MHS), foi que o atordoamento provoca o equivalente a um ataque epiléptico, pelo que os movimentos das pernas que vemos pouco depois do atordoamento são espasmos involuntários e até indicam um bom atordoamento. Isto é verdade? Se sim, então como podemos saber se um animal está a recuperar consciência antes de morrer? Que sinais nos indicariam isso?
Por último, confesso que fiquei um pouco surpreendido por nenhuma das pessoas que testemunhou o abate, aparentemente, se ter recusado a comer a carne cozinhada a partir daquele porco. Faz-nos pensar se Paul McCartney tinha razão quando disse: “If slaughterhouses had glass walls, everyone would be a vegetarian.” Atribuo essa recusa a 2 factores:

– O processo de abate mostrado parecia de facto seguir as melhores práticas: os porcos nunca se mostraram agitados, o atordoamento foi eficaz, o sangramento foi rápido, de uma maneira geral, parece não ter havido sofrimento da parte dos porcos. 

– A responsável do MHS foi explicando o que estava a ser feito e reassegurando as pessoas que os animais estavam a ser abatido da forma o mais humanitária possível. Sem essa responsável lá, algumas pessoas poderiam ter pensado que os porcos estavam a voltar a si quando agitaram a perna durante o sangramento. Além disso, acho que a presença da responsável faz com que as pessoas racionalizem mais o que estão a ver, ao invés de reagirem emocionalmente.

Animal Mosaic – outra forma de comunicar o Bem-estar Animal

Sob a égide da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla inglesa), ANIMAL MOSAIC é o mais recente site dedicado ao Bem-estar Animal. O site propõe ser uma plataforma de debate e fonte de informação sobre o mundo animal e da forma como as questões de bem-estar se relacionam com outras preocupações globais.
Das muitas fontes de informação disponíveis, é de destacar a versão renovada da ferramenta Concepts of Animal Welfare, que anteriormente só estava disponível em CD-ROM.  Esta pode ser uma boa maneira de se iniciar no multifacetado mundo (científico e filosófico) do Bem-estar Animal. Outra ferramenta importante é o Sentience Mosaic, que se vem assim juntar ao já existente Animal Sentience da Compassion in World Farming, outro site de uma ONG dedicado à consciência animal. O Sentience Mosaic providencia um Fórum de discussão sobre temas de senciência, consciência e cognição animais (e já com algumas entradas).

Ambas as ferramentas, no entanto, devem ser usadas com um alerta: as visões nelas expressas não reflectem todo a panóplia de opiniões existente no universo do Bem-estar Animal. Elas são o reflexo das estratégias e campanhas levadas a cabo pela WSPA. Na qualidade de organização líder mundial em protecção animal, a WSPA veicula uma mensagem marcadamente antropomórfica do comportamento animal, como aliás se pode perceber pelo vídeo, e que não é partilhada por todos os cientistas e filósofos.

"O cão semi-afundado" de Goya: opressão e empatia

Francisco José de Goya y Lucientes (1746 – 1828)
Cão semi-afundado (Perro semi-hundido), 1821-23
Óleo sobre tela, 80 x 134 cm
Museo del Prado, Madrid

Se, num exercício hipotético, me fosse dado a escolher um quadro – dos muitos que já abordei no blog Querido Bestiário – para ter em minha casa, a escolha recairia, sem sombra de dúvida, sobre “Cão semi-afundado” de Francisco de Goya. Esta obra faz parte da Série Negra; são 14 pinturas a óleo, lúgubres e pessimistas, marcadas pelos acontecimentos políticos e sociais da Espanha nos inícios do séc. XIX, fruto da ocupação francesa e da Guerra da Independência.

Rogo a todos os animalogantes que não deixem de visitar esta obra sublime no Museu do Prado, em Madrid. Mais do que a dimensão, o que impressiona é a sua verticalidade. O cão e o solo (parece ser areia, mas pode ser rocha, barro ou mesmo água) estão comprimidos no terço inferior da composição, esmagados por uma atmosfera inverosímil que ocupa os outros dois terços. As proporções académicas e classicistas (que Goya chegou a abraçar) foram abandonadas em detrimento de uma composição livre e dinâmica. A perspectiva desaparece e o céu sonega o motivo principal, impondo-se na sua complexidade; extremamente variegado, ele emana tons dourados e acobreados mesclados por sombras dúbias, não nos permitindo saber ao certo o que se está a passar: estará o cão realmente enterrado ou só escondido atrás do morro? Ele emerge ou afunda-se? E para onde olha ele, para uma tempestade de areia ou talvez para alguém?

A verdade é que não sabemos e a obra aberta, e há quem diga que inacabada, permite-nos todo o tipo de interpretações. A meu ver, o cão, do qual só vemos a cabeça e que fita algo ou alguém para lá dos limites superiores do quadro, foi o animal escolhido para simbolizar a opressão. A expressividade da canina resulta melhor para extrapolar sentimentos humanos do que a de qualquer outra espécie animal. É com o cão que o homem se envolve em laços afectivos mais fortes e íntimos e a sua aparente reciprocidade chega a ser comovente. Nas palavras de qualquer amante de cães: “só lhe falta falar”.

A relação homem-cão parece ser, de facto, especial. Há evidências de que os cães são capazes de percepcionar estados de espírito da parte de seres humanos. Por exemplo, uma equipa de cientistas da Universidade do Porto, liderada pela bióloga Karine Silva, descobriu recentemente algo que muitos daqueles que vivem com cães já sabiam: quando bocejamos, o nosso cão também boceja. Este tipo de empatia é único no mundo animal já que nenhum outro animal é contagiado por bocejos de indivíduos de espécies diferentes da sua. Voltando ao cão do Goya: eu olho para ele e sinto um sentimento de opressão, apesar de nada me oprimir. Será que o meu cão, vendo-me oprimido, é capaz de se sentir ele próprio oprimido?


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