Substituir, reduzir e refinar o uso de animais em ciência. Mas não por esta ordem?

Nota: Tenho andado um pouco desconectado do Animalogos, em parte por culpa também da maior facilidade e alcance da nossa página de Facebook. Mas a criação do blog Animalogues (um “primo” deste) pela Anna Olsson veio lembrar-me que este formato tem algumas vantagens relativamente às páginas nas redes sociais, cujas publicações são mais efémeras e frequentemente com menos substância. Vou procurar escrever mais sobre descobertas científicas mais recentes relativas ao comportamento, cognição, bem-estar e ética animal. 
A reflexão que vos trago hoje vem a propósito do artigo recentemente publicado na PLOS ONE “Researchers’ attitudes to the 3Rs – an upturned hierarchy?”, do qual eu, a Anna Olsson e o Peter Sandøe somos autores. 
É sabido que o uso de animais em investigação biomédica é geralmente justificado pelos potenciais benefícios para a saúde dos seres humanos e de outros animais, ou do meio ambiente. No entanto, é também esperado que os cientistas sigam o princípio dos 3Rs (Replace, Reduce, Refine) e procurem, tanto quanto possível, “substituir, reduzir e refinar” o uso de animais para fins científicos ou educacionais. 
O uso de animais em Ciência ainda é imprescindível.  Mas devem ser
desenvolvidos meios e estratégias para a sua substituição, redução e refinamento.
Uma das formas de promover os 3Rs é a a formação em ciência de animais de laboratório, que na União Europeia é essencial e obrigatória para todos aqueles que pretendem usar animais para fins científicos. O nosso objectivo foi assim de avaliar o nível de conhecimento e sensibilização dos investigadores para os 3Rs, antes e depois de frequentarem cursos em ciências de animais de laboratório. Para isso realizámos um inquérito on-line com participantes dos cursos realizados em oito cidades situadas em quatro países europeus: Portugal (Porto e Braga), Alemanha (Munique e Heidelberg), Suíça (Basileia, Lausanne, Zurique) e Dinamarca (Copenhaga). As perguntas foram elaboradas de modo a avaliar atitudes gerais relativas ao uso de animais em investigação biomédica, alternativas de substituição, potenciais conflitos entre os objectivos de redução e refinamento e análises de dano-benefício. Ao primeiro inquérito responderam 310 investigadores e ao segundo inquérito 200, mas apenas 127 foram tidos como válidos. 
Sucintamente, nós descobrimos que:
  • Embora os cursos aumentem o nível de conhecimento sobre os 3Rs, não tiveram nenhum efeito observável no nível de confiança que a experimentação animal pode ser totalmente substituída por métodos não-animais (que à partida era já baixo). 
  • A maioria dos investigadores reconhece haver questões éticas relacionadas com seu trabalho e discute-as com seus pares. 
  • O nível de bem-estar animal, e especialmente a prevenção da dor, foi considerado como a questão ética mais premente, bem como mais importante do que o número de animais usados ​​ou o próprio uso de animais, em si. 

A hierarquia originalmente proposta por Russell e Burch, a o modo como os
3Rs surgem hierarquizados, na nossa amostra de investigadores. 
Todos os dados que recolhemos apontam para uma “inversão” da hierarquia de  prioridades, relativamente à originalmente proposta nos anos 1950s pelos arquitectos dos 3Rs, William Russell e Rex Burch. Ao passo que estes priorizavam a substituição do uso de animais, e apenas quando esgotada essa possibilidade propunham que se considerasse a redução e refinamento, os investigadores actualmente priorizam o Refinamento sobre a Redução e esta sobre a Substituição. 
Neste artigo abstemo-nos de fazer uma avaliação moral desta “hierarquia invertida”. De qualquer forma, qualquer reflexão a este respeito deverá contemplar que o uso de animais para fins biomédicos é ainda imprescindível e que o desenvolvimento de meios e estratégias para a sua substituição é morosa, dado que os mesmos devem ser ser devidamente avaliados e validados. Nesse contexto, e face à urgência de avançar o conhecimento científico e médico, poderá fazer sentido priorizar o bem-estar dos animais que actualmente (e no futuro próximo) utilizados, pois é uma questão mais premente e e mais fácil implementação.

Contudo, esta (aparente) desvalorização do objectivo de substituir o uso de animais está em conflito com as expectativas do público e dos reguladores. Isto implica, primeiramente, que a urgência de melhorar o bem-estar dos animais de laboratório não deva impedir a continuação do investimento no desenvolvimento de métodos alternativos (sobretudo ao nível dos testes regulamentares de substâncias). Significa ainda que deve haver um esforço em comunicar de forma transparente o porquê e como são usados animais em ciência, para uma maior compreensão do público das nossas actuais prioridades, objectivos (e limitações) e compromisso com o bem-estar animal e os 3Rs. 

"Será que dá pums"?

“As cobras dão pums?”
Foto de Ethan Kocak (Fonte)
Parece uma pergunta que o Bart Simpson faria numa aula de Biologia, e foi de facto esta pergunta de um adolescente ao seu irmão biólogo que desencadeou um rebuliço entre a comunidade científica no Twitter com a hashtag #doesitfart.
E dessa discussão saiu o livro “Does it fart?“, de Nick Caruso e Dani Rabaiotti (com contribuições de cientistas e criadores da Twitterosfera) e ilustrações de Ethan Kocac.
Neste livro encontra respostas científicas para questões tão importantes como:
– Que animais dão pums?
– Porque é que as ameijoas arrotam mas não dão pums?
– Porque é que os das hienas cheiram particularmente mal?
– O que é um pum, afinal?
Neste livro encontrará tudo aquilo que sempre quis saber (ou não) sobre a flatulência animal e é  prenda perfeita para aquela pessoas que gostam de biologia, animais, têm sentido de humor e tem a mania que sabem tudo.
Acho que é um livro ideal para mim!

In memoriam – Sir Patrick Bateson

Lamentavelmente, é o meu segundo obituário seguido no Animalogos, mas não poderia deixar de deixar a minha homenagem a Sir Patrick Bateson.  
Mas ao invés de listar todas as  importantes contribuições de Bateson para a ciência do comportamento animal (tendo ainda este ano publicado um livro sobre a relação entre adaptação do comportamento ao nível do indivíduo e evolução biológica da espécie), cujo resumo podem encontrar neste artigo do seu colaborador e amigo Paul Martin The Guardian, deixo-vos um testemunho pessoal da única vez que me encontrei com ele. 
Referência obrigatória para quem estuda ou
trabalha em comportamento e bem-estar animal 

Conheci-o em Varese, Itália, em 2011, quando ele foi convidado a dar um seminário num workshop sobre avaliação de sofrimento animal. Na verdade, conheci-o mesmo antes de chegar, pois chegado ao aeroporto ele constatou que eu me dirigia ao mesmo evento, e como tinha táxi pago pela organização ofereceu-me boleia, após se apresentar. 

Confesso que não o conhecia na altura, e he-de ter feito ‘figura de urso’ ao perguntar-lhe pelo caminho sobre o seu trabalho, mas na verdade ele estava mais interessado em ouvir do que falar, nomeadamente a respeito da crise que se vivia na altura, num Portugal intervencionado pela ‘Troika’.

Foi só no dia seguinte que uma amiga que também lá estava me disse que ele era o co-autor do famoso Measuring Behaviour, um livro que praticamente todos os alunos e profissionais de Etologia tinham já lido e seguido. De facto, todos pareciam gravitar em torno do ‘Prof. Sir Patrick Bateson’, que desassombradamente dizia call me Patrick. 

Tive a felicidade de poder falar com ele durante algumas horas, pela noite dentro, numa discussão bem regada sobre política, religião e, claro está, muita ciência (como aludi aqui na altura), os dois últimos resistentes dum jantar no hotel. Apesar da grande distância entre um aluno de doutoramento português e um cientista reverenciado e condecorado, falou comigo como um par, ouvindo, fazendo perguntas, mostrando genuíno interesse, mesmo que qualquer coisa que ele dissesse fosse inevitavelmente mais inteligente ou interessante, mercê de tudo o que fez, conheceu e viveu (a elogia de Martin dá alguns exemplos). Na manhã seguinte, e apesar dos seus 73 anos, estava em muito melhor forma que eu. 

Essa conversa é uma das melhores recordações que tenho da minha vida profissional. Sendo indesmentível o legado de Patrick Bateson para a ciência e a sociedade, o que eu recordo hoje é o homem, e da impressão que me deixou da sua inteligência, humor e carácter.

In memoriam: Jaak Panksepp – O cientista que fazia os ratos rir

Deixou-nos aos 73 anos o neurocientista de origem estónia Jaak Panksepp, que se dedicou ao estudo do que chamou “neurociência afectiva”, focada na base neuronal das emoções. Estava previsto ser key-note speaker do próximo congresso da UFAW e queria muito ouvir a sua apresentação. Infelizmente, já não será possível.

O seu trabalho teve impacto considerável na ciência do bem-estar animal (era Baily Endowed Chair of Animal Well-Being Science, uma cátedra da Universidade de Washington), tendo sido uma grande referência para cientistas como Temple Grandin. 

Panksepp propôs que o instinto para brincar é comum nos juvenis de muitos mamíferos – incluindo os ratos –  por ser impulsionado pelas partes mais primitivas do cérebro, ao invés do córtex cerebral. E para que a motivação para brincar se tenha conservado longo de milhões de anos – não obstante o maior risco de expor os juvenis a predadores – é porque a mesma confere importante vantagens evolutivas, como as competências sociais, como explicado neste vídeo animado. Assim, Panksepp urge-nos a deixar as crianças brincar, tanto quanto possível, se queremos que tenham saúde mental e sucesso como adultos.

Entrevista durante o II Encontro de Bioética da UTAD

No passado dia 19 de Novembro, fui convidado a fazer uma apresentação sobre ética da experimentação animal, a propósito do II Encontro de Bioética na UTAD. 
Na altura fizeram-me uma breve entrevista, onde me perguntaram sobre o tema em si e a sua relação com a agropecuária. Na altura fiquei um pouco surpreso mas agora que saiu a entrevista percebi que tem a ver com o âmbito do projecto para qual esta e outras entrevistas têm sido feitas. 
Fica aqui o registo.

Reflexões sobre a discussão parlamentar sobre uso de animais em ciência e alternativas

No dia 19 de Janeiro de 2017 foi discutida no Parlamento a petição “Por uma Ciência mais Rigorosa”, promovida pelos “Universitários pela Causa Animal” que exigia, entre outras, que animais de laboratório e os procedimentos fossem filmados 24 horas por dia, consequência directa da “Declaration of Lisbon”, a qual tinha já merecido resposta da SPCAL. Uma explanação dos argumentos desta petição pode ser encontrada aqui.
A petição tinha já sido discutida com algumas peticionárias (havendo registo áudio e uma acta), onde chegou a ser proposto que os investigadores usassem “capacetes com câmaras” enquanto trabalharam.
Esta petição levou a iniciativas da parte do ‘PAN-Pessoas-Animais-Natureza’ (um projecto de lei e um projecto de resolução), do ‘PEV-Partido Ecologista Os Verdes’, ‘BE-Bloco de Esquerda’ e ‘PCPPartido Comunista Português’. 
Antes de considerar estas propostas, devemos ter em conta que a actual legislação em vigor, que transpõe a Directiva 2010/63/EU, é sem dúvida a regulação mais exigente do uso de animais em ciência ao nível global, sendo que algumas das propostas discutidas ontem no parlamento era redundantes com a legislação ou irrealistas, sobretudo as de BE e PAN. Contudo, uma leitura atenta das propostas de PCP e PEV revelam uma atitude progressista, realista e baseada na promoção do desenvolvimento científico e tecnológico ao nível dos 3Rs (Replacement, Reduction, Refinement), que são de louvar.
Podem rever o debate sobre estas propostas neste vídeo de 25 minutos: 
O balanço que tenho a fazer deste debate é positivo, uma vez que trouxe à discussão no Parlamento a questão do desenvolvimento de métodos não-animais, dos 3Rs e do cumprimento da legislação em vigor. Houve ainda um momento onde não pude deixar de sentir alguma satisfação pessoal, quando o Presidente da Comissão Parlamentar para a Educação e Ciência, o Prof. Alexandre Quintanilha, mencionou o I Simpósio Nacional de ORBEA e a recém-criada RedeORBEA
Ouvir o Prof. Alexandre Quintanilha no Parlamento fez-me
querer que houvesse mais deputados cientistas
Infelizmente, os pedidos de reforço dos meios humanos da Autoridade Competente, a DGAV, não foram aprovados, o que presumo se deva a contenções de ordem orçamental. 
Havia já uma resolução aprovada – Resolução 96/2010 – aquando da discussão da construção do biotério da Azambuja, e três anos antes da publicação da actual legislação, que promovia a construção de um centro para os 3Rs, que seria muito bem-vindo. Algumas das reivindicações foram já satisfeitas pela publicação da legislação hoje vigente (DL 113/203), outras ficaram por concretizar, tendo este debate servido também para retomar a questão. 
Após esta discussão, a Assembleia deliberou votar para rejeitar a maior parte das propostas em análise (pode consultar as votações aqui). Contudo, alguns dos pontos dos projectos de resolução foram aprovados, a saber:
Projecto de Resolução  614/XIII/2.ª (PCP)  “Recomenda ao Governo a implementação de medidas no âmbito da utilização de animais em investigação científica”
Ponto 1: [A Assembleia da República recomenda ao Governo que] avalie e informe a Assembleia da República sobre a concretização das recomendações constantes na Resolução da Assembleia da República n.º 96/2010 e proceda à planificação da implementação do que ainda está por concretizar
Projecto de Resolução  612/XIII/2.ª (PEV) “Pela progressiva redução e eliminação do uso de animais para fins científicos”
Ponto 1: [A Assembleia da República recomenda ao Governo que] promova o investimento para o desenvolvimento de alternativas ao uso de animais para fins experimentais e outros fins científicos, dando cumprimento desta forma a uma efetiva implementação da política dos 3Rs, conforme plasmado no Decreto-Lei nº 113/2013.

Ponto 3: [A Assembleia da República recomenda ao Governo que] promova a divulgação de informação e a devida articulação entre as diversas entidades ligadas à experimentação animal, nomeadamente entre a Comissão Nacional e os órgãos responsáveis pelo bem-estar dos animais (ORBEA), pugnando para que nas instituições onde ainda não estejam criados estes órgãos, os mesmos sejam o mais rapidamente possível instituídos, no sentido de garantir que os protocolos autorizados e financiados, se encontram a ser devidamente implementados, maximizando assim o bem-estar animal.

Pode-se dizer, em jeito de conclusão, que Portugal deu mais um pequeno passo no tratamento ético dos animais em ciência e na promoção de alternativas. Possa a comunidade científica encontrar o devido apoio do Governo para concretizar os objectivos aqui definidos num futuro próximo.

Debate parlamentar sobre experimentação animal e 3Rs

Fonte
Decorre hoje (a partir das 15h, logo a seguir a curto debate com o Ministro da Saúde) uma discussão na Assembleia da República de particular interesse para a nossa comunidade ligada ao uso de animais e aos 3Rs, que pode ser seguida on-line no canal ARTV. Podem consultar aqui a agenda e documentos em discussão (mais para o fundo da pagina).

Estão em discussão:

Petição n.º 141/XIII/1.ª
Da iniciativa de Gonçalo Faria da Silva e outros – Solicitam mais rigor, transparência e objetividade na ciência que recorre ao uso de modelos animais na investigação, maximizando o bem-estar animal e o retorno do investimento público

Projeto de Lei n.º 372/XIII/2.ª (PAN)
Introduz normas mais rigorosas no que diz respeito à utilização de animais para fins de investigação científica

Projeto de Resolução n.º 612/XIII/2.ª (PEV)
Pela progressiva redução e eliminação do uso de animais para fins científicos

Projeto de Resolução n.º 614/XIII/2.ª (PCP)
Recomenda ao Governo a implementação de medidas no âmbito da utilização de animais em investigação científica

Projeto de Resolução n.º 615/XIII/2.ª (BE)
Medidas para a proteção de animais para fins experimentais e outros fins científicos

Projeto de Resolução n.º 616/XIII/2.ª (PAN)
Recomenda ao Governo a alocação de uma percentagem dos fundos de inovação e desenvolvimento da despesa pública distribuídos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) em métodos não animais

Uma semana em Bruxelas dedicada à experimentação animal e suas alternativas

Na primeira semana deste mês, em Bruxelas, realizaram-se três importantes eventos para a regulação do uso de animais em ciência e a promoção dos princípios dos 3Rs para a sua substituição, redução e refinamento (Replacement, Reduction Refinement). Eu e Anna Olsson tivemos oportunidade de participar nestes eventos e não podia deixar de deixar aqui uma breve impressão dos mesmos.
O maior evento foi uma iniciativa da própria Comissão Europeia, o “Non-Animal approaches, the way forward“, uma resposta à European Citizens Innitiative, “Stop Vivisection“. Esta petição, que recolheu mais de um milhão de assinaturas, pretendia ab-rogar aquela que é a mais exigente legislação do mundo na regulação do uso de animais em ciência, porque a vêem como instrumento de legitimação desta prática. A ECI foi rejeitada pela Comissão Europeia, que não obstante se propôs a levar a cabo uma série de iniciativas que pudessem dar resposta a algumas reivindicações da petição, e esta conferência foi uma delas. Curiosamente, os organizadores da petição boicotaram esta conferência e organizaram uma pequena “contra-conferência” em paralelo, de carácter marcadamente político, ao invés de científico. A conferência da Comissão Europeia teve cerca de 400 participantes de toda a Europa e teve grande destaque no Twitter com o hashtag #NonAnimalScience

Reyk Horland e o Human-on-a-chip, uma fascinante e promissora
tecnologia para testes toxicológicos sem animais, mas que ainda carece
de validação científica e aprovação regulatória (Fonte)

A organização procurou um debate equilibrado, convidando cientistas, políticos e representantes de associações de doentes para fazer uma análise crítica dos actuais modelos, da qualidade e transparência da ciência baseada nestes modelos, e do potencial e limitações quer dos métodos com animais quer dos métodos alternativos hoje disponíveis. 

O segundo evento tomou lugar no Parlamento Europeu e foi uma iniciativa da Comissão Nacional Holandesa para a Protecção dos Animais Usados para Fins Científicos (que terá uma congénere portuguesa). Esta conferência visou aspectos relacionados com a síntese de evidência de estudos em animais com vista a escolher os melhores modelos animais e desenho experimental, prevenir a duplicação desnecessária de estudos e aumentar a transparência dos mesmos. 

Eu estou algures lá atrás… (Fonte)
O terceiro evento foi a conferência final do projecto Europeu ANIMPACT financiado pelo 7º Programa-Quadro, e liderado pela Anna Olsson. Este projecto de três anos visou mapear e entender as múltiplas questões legais, sociais, éticas e científicas despoletadas pela Directiva 2010/63/EU que actualmente regula o uso de animais para fins científicos na União Europeia. Os slides das apresentações podem ser descarregados aqui (brevemente disponíveis em vídeo).

Peter Sandøe, colaboador ocasional do Animalogos:
How is current EU regulation perceived by bench scientists?
(Foto de Nuno Franco)

Foi uma semana importante e da qual se esperam efeitos visíveis futuros no modo como entendemos, reportamos, regulamos e reflectimos sobre o uso de animais em investigação biomédica. 

Peixes (e corações) congelados?

Vários canais noticiosos deram hoje a notícia que no Japão decoraram um ringue de patinagem no gelo congelando cerca de 5000 animais no seu interior, visíveis à superfície. 

Fotografia tirada durante a fase de preparação do novo ringue. Fonte.

Segundo a CNN, esta e outras fotografias foram postadas nas redes sociais pelo empresa que explora o ringue com os comentários (supostamente) humorísticos “socorro…estou-me a afogar, a sufocar…”. Os promotores desta iniciativa dizem que a ideia era de criar a ilusão de patinar no oceano, tornando esta experiência mais divertida e educativa.

Aparte o mau gosto – sempre subjectivo, considerando que não tem faltado gente que queira aqui patinar – que questões éticas levanta este tipo de acções? Não só já estavam todos os peixes mortos aquando da sua congelação no ringue, como na verdade quase todos os vários milhões (biliões?) de peixes pescados diariamente morre por asfixia, sem que a maioria das pessoas pondere esse facto quando compra e consome peixe. Então por que razão devemos entender o uso dado a estes animais como moralmente distinto? 
Segundo uma linha de pensamento utilitarista poder-se-á justificar a pesca mas não o uso de peixes para fins de entretenimento, porque comer é essencial para a nossa sobrevivência, ao passo que nem o entretenimento (e este em particular) é igualmente essencial nem a existência dos peixes é necessária para que se possa patinar num ringue. Mas e se fossem utilizados animais excedentários da pesca, que ninguém tivesse comprado mas que não tinham sido pescados propositadamente para este fim? Faria alguma diferença? Poderá uma posição utilitarista justificar que se tirasse alguma utilidade de animais que de qualquer forma teriam morrido? Provavelmente, mas essa utilidade e a mensagem que estamos a enviar em cada situação destas devem ser analisadas caso-a-caso.
Seguindo uma visão contratualista, o facto de muitas pessoas ficarem afectadas por este e outros tipos de instrumentalização da vida animal poderá ser justificação suficiente para não o fazer. Mas a questão persiste, haverá algo mais para além das questões de bem-estar animal (que se presume não ter estado em causa), da avaliação da necessidade destas iniciativas, do aproveitamento de recursos ou da opinião dos demais cidadãos para que se ponha em causa a moralidade destas actividades? 
Se mais outra virtude não tiver, a presença asfixiante destes animais debaixo dos nossos pés evoca os outros que morreram igualmente asfixiados, ainda que longe dos nossos olhos, mas que não nos deve ser indiferente.
Já eu não tenho uma posição definida em absoluto, mas tendo a não concordar com usos de animais que resultem numa instrumentalização excessiva, despropositada e desnecessária. Parece-me ser este o caso. Chamem-lhe ética de virtudes, se quiserem.

Criada a Comissão Nacional para a Protecção dos Animais Utilizados para Fins Científicos

*À semelhança de todos os meus outros posts, as opiniões aqui expressas reflectem a minha visão pessoal, e não necessariamente a dos outros autores deste blog ou uma posição oficial do mesmo.

Foi hoje publicada a Portaria 260/2016, que finalmente cria a Comissão Nacional para a Protecção dos Animais Utilizados para Fins Científicos, passados três anos da publicação do Decreto-lei 113/2013 (e seis anos após a publicação da Directiva 2010/63/EU que este transpôs), que instituiu a obrigatoriedade da existência deste órgão. 

Segundo as recomendações (que merecem toda a nossa atenção) da Comissão Europeia, a Comissão Nacional tem como principais funções, entre outras: 
  • Aconselhar as autoridades competentes e os órgãos responsáveis pelo bem-estar dos animais (ORBEA) em assuntos relacionados com a aquisição, a criação, o alojamento, a prestação de cuidados e a utilização dos animais, assegurando a partilha de boas práticas.
  • Facilitar a adopção de uma abordagem coerente à avaliação de projectos e ter um papel importante no intercâmbio de boas práticas sobre o funcionamento dos ORBEA e a avaliação de projectos ao nível da União.

É de salientar a independência deste órgão face à DGAV – ainda que criado no seio da mesma – bem como às associações e autoridades representadas pelos seus membros.
Não posso deixar de me congratular pelo facto desta portaria ir de encontro ao espírito do que a a legislação estipulava para este órgão, em estrito cumprimento da lei mais avançada para a protecção dos animais usados para fins científicos. Contraria assim uma iniciativa do PAN de criação de um “conselho nacional de experimentação animal”  que desvirtuava a natureza e atribuições revistas para a Comissão Nacional hoje criada, usurpando ainda as competências e atribuições legitimadas pela lei nacional e comunitária para a autoridade competente, a DGAV. 
Esta iniciativa do PAN, apresentada como proposta de lei n.º 270/XIII/1.ª propunha um comité de nomeação política, que respondesse à Assembleia da República, tendo sido por razões que desconheço redigida pela Associação Portuguesa de Bioética, até porque esta não tinha tido, até hoje, qualquer reflexão conhecida ou competências reunidas ao nível da ética animal, bem-estar animal ou da legislação na área.  
É indisfarçável o ímpeto do PAN em policiar uma actividade científica já alvo de extensa regulamentação e escrutínio, resultante de uma atitude geral de suspeição sobre os seus intervenientes – e nomeadamente os investigadores – e uma posição abolicionista radical, patente nas suas declarações à comunicação social e indisfarçável no discurso propagado nas redes sociais, onde chamam ao uso ético e competente de animais para progresso biomédico de “flagelo” perpetuado por falta de “vontade económica e política” 
Louva-se assim a chegada da nova Comissão Nacional e desejo-lhe a maior felicidade na consecução dos seus objectivos. Que tenha um papel activo e relevante na promoção de boas práticas e no progresso ao nível da substituição, redução e refinamento do uso de animais para fins científicos.