
Foi com surpresa que muitos receberam as palavras do Bispo do Porto, Manuel Linda, que considerou o “apego a um qualquer animal de estimação, típico das sociedades decadentes”, sugerindo que este vínculo estaria a substituir a ligação entre pais e filhos. Seria fora do tópico deste blog elaborar sobre aquilo que este bispo em particular deveria antes considerar “decadente” (vide aqui, aqui, ou aqui), mas será porventura pertinente analisarmos que cabimento terão estas afirmações à luz da actual doutrina católica.
O texto do Bispo cujo corolário foi o incendiário tweet, relatava o seguinte :
“(…) vi o que nunca tinha presenciado «ao vivo»: um homem e uma mulher, na casa dos trinta, empurrando, cada um deles, um carrinho onde não iam bebés, mas… cães. E como se fosse pouco, à noitinha, mais outra cena: dois atletas em bicicleta, cada uma delas com atrelado. Porque me chamou a atenção o perigo que corriam as crianças, fixei-me melhor: afinal, não eram miúdos, mas… outros dois cães. “Adorarão animais”, dizia o Cura d’Ars. Para desgraça de quem troca a humanidade pela animalidade.

O polémico tweet, de 12 de Outubro de 2022
Esta visão parece estar em linha com a última revisão do catecismo oficial da Igreja Católica (1993), levada a cabo pelo teólogo alemão (e Papa emérito Bento XVI) Joseph Ratzinger, que estipula: “[devemos] amar os animais, mas não deveria desviar-se para eles o afecto só devido às pessoas”, acrescentando que é “indigno gastar com eles somas que deveriam, prioritariamente, aliviar a miséria dos homens”. O seu sucessor, Francisco, também se manifestou contra as pessoas que alimentam animais de rua, sem se preocuparem com os seus vizinhos. É assim clara a posição da Igreja: deveremos priorizar sempre os humanos em detrimento dos animais, como alvos de afecto, caridade e compaixão. Esta priorização reflecte a ideia aristotélica da existência de uma scala naturae, na qual os humanos estariam acima dos animais (e logo abaixo dos santos).
Contudo, esta postura assenta numa falsa dicotomia. A caridade e compaixão pelos animais não pressupõe voltar as costas aos nossos conspecíficos humanos. E a discussão da razão pela qual havemos de demonstrar compaixão pelos animais e não pelos humanos não é muito diferente de muitas outras discussões estéreis acerca de quem seria mais ético e prioritário ajudar: as crianças ou os idosos? As mães solteiras ou as de famílias numerosas? Minorias étnicas ou da comunidade LGBT+? Também é frequente ouvirmos políticos populistas recorrerem a esta falácia, dizendo que os apoios aos mais desfavorecidos subtraem meios para a polícia, os hospitais, etc. Mas tais são, reitero, falsas dicotomias. A este propósito, lembro-me muito da frase que Bernard Rollin usava frequentemente e que tinha sido proferida de forma espontânea por uma sua aluna: “morality is not a single-shot shotgun”. Não se pode esperar de nós humanos, animais naturalmente empáticos, que expressemos essa empatia de uma forma estrita. Se somos verdadeiramente empáticos, isto é, se essa é uma motivação intrínseca que influencia o nosso comportamento, sê-lo-emos com a vizinha, com as pessoas que vemos sofrer na televisão e com os animais da nossa rua. Provavelmente de forma incoerente, intermitente e mal estruturada, mas nunca ‘sintonizada para um só canal’. Também nisto revelamos a nossa humanidade.
Será assim para a a maioria das pessoas evidente que não é por termos animais de estimação que não teremos filhos (ou vice-versa) ou que o amor dedicado aos animais afectará negativamente o vínculo com os os nossos filhos (ou vice-versa), salvas as devidas distâncias, obviamente. Arriscaria dizer, ainda que ateu convicto, que na questão do afecto se opera um verdadeiro “milagre da multiplicação”: quanto mais praticamos a empatia, a caridade ou a compaixão, mais teremos para dar, seja qual for a espécie.
Mas voltemos à posição oficial da Igreja relativamente às nossas obrigações para com os animais. É da tradição judaico-cristã atribuir ao ser humano um papel de domínio sobre a Criação (Genesis 1:26-30), sendo esta uma posição claramente antropocêntrica. Contudo, como noutros temas de índole religiosa, existem várias abordagens sobre como entender e exercer esse “domínio”. Duas perspectivas relevantes que aqui emergem são a do despotismo e a da custódia sobre a Natureza. A visão do despotismo assenta no pressuposto que a Natureza, incluindo os animais, foi criada por Deus para servir os humanos, não tendo outro valor que não aquele dado pelos humanos, os únicos a terem uma alma imortal e, assim, valor intrínseco. Esta perspectiva fundamenta-se, mais notoriamente, nas opiniões expressas pelos Doutores da Igreja Católica Agostinho de Hipona (Séc. IV) e Tomás de Aquino (Séc. XIII), embora este último aceitasse que se pudessem amar as criaturas irracionais pela caridade, para honra de Deus e pelo bem que as mesmas podem constituir para o próximo. Ademais, na sua Summa contra gentiles, considera que os homens se devem abster de serem cruéis com os animais de modo a “retirar do homem pensamentos de crueldade para com os seus semelhantes”. Séculos depois, Immanuel Kant expressaria uma versão secular desta mesma visão.

Hoje, a interpretação mais consensual do domínio dos humanos sobre a Natureza é que o lugar do ‘Homem’ é o de zelar pela obra de Deus, tendo custódia desta, sendo sua responsabilidade respeitar a vida sob todas as formas. João Crisóstomo (séc. IV e V), Doutor da Igreja, afirmou que “Os santos são extremamente amorosos e gentis com a humanidade e também com os animais (…) Certamente devemos ser muito bondosos e amáveis com eles por muitas razões, mas, acima de tudo, porque eles têm a mesma origem que nós”.
Concluindo, a doutrina cristã de custódia e obrigação de cuidar dos animais e restante natureza tem hoje primazia sobre a visão despótica. Tal está bem patente na filosofia da ‘Reverência pela Vida’ do teólogo e Nobel da Paz Albert Schweitzer, bem como nas posições dos mais recentes pontífices à frente da Igreja Católica, surgindo habitualmente contextualizada numa perspectiva mais abrangente de respeito e referência por toda a Criação, fortemente influenciada por Francisco de Assis (séc. XII-XIII). É do próprio a afirmação “Não magoar os nossos humildes irmãos [os animais] é o nosso primeiro dever para com eles, mas parar aí não é suficiente. Temos uma missão mais elevada: servi-los sempre que eles necessitem”. Não me parece que o Bispo Linda esteja a par disto.