Amar os animais, decadência civilizacional ou obrigação cristã?

São Francisco e o logo de Gubbio – Cristoforo di Bindoccio e Meo di Pero, sec. XIV

Foi com surpresa que muitos receberam as palavras do Bispo do Porto, Manuel Linda, que considerou o “apego a um qualquer animal de estimação, típico das sociedades decadentes”, sugerindo que este vínculo estaria a substituir a ligação entre pais e filhos. Seria fora do tópico deste blog elaborar sobre aquilo que este bispo em particular deveria antes considerar “decadente” (vide aqui, aqui, ou aqui), mas será porventura pertinente analisarmos que cabimento terão estas afirmações à luz da actual doutrina católica.

O texto do Bispo cujo corolário foi o incendiário tweet, relatava o seguinte :

(…) vi o que nunca tinha presenciado «ao vivo»: um homem e uma mulher, na casa dos trinta, empurrando, cada um deles, um carrinho onde não iam bebés, mas… cães. E como se fosse pouco, à noitinha, mais outra cena: dois atletas em bicicleta, cada uma delas com atrelado. Porque me chamou a atenção o perigo que corriam as crianças, fixei-me melhor: afinal, não eram miúdos, mas… outros dois cães. “Adorarão animais”, dizia o Cura d’Ars. Para desgraça de quem troca a humanidade pela animalidade.

O polémico tweet, de 12 de Outubro de 2022

Esta visão parece estar em linha com a última revisão do catecismo oficial da Igreja Católica (1993), levada a cabo pelo teólogo alemão (e Papa emérito Bento XVI) Joseph Ratzinger, que estipula: “[devemos] amar os animais, mas não deveria desviar-se para eles o afecto só devido às pessoas”, acrescentando que é “indigno gastar com eles somas que deveriam, prioritariamente, aliviar a miséria dos homens”. O seu sucessor, Francisco, também se manifestou contra as pessoas que alimentam animais de rua, sem se preocuparem com os seus vizinhos. É assim clara a posição da Igreja: deveremos priorizar sempre os humanos em detrimento dos animais, como alvos de afecto, caridade e compaixão. Esta priorização reflecte a ideia aristotélica da existência de uma scala naturae, na qual os humanos estariam acima dos animais (e logo abaixo dos santos).

Contudo, esta postura assenta numa falsa dicotomia. A caridade e compaixão pelos animais não pressupõe voltar as costas aos nossos conspecíficos humanos. E a discussão da razão pela qual havemos de demonstrar compaixão pelos animais e não pelos humanos não é muito diferente de muitas outras discussões estéreis acerca de quem seria mais ético e prioritário ajudar: as crianças ou os idosos? As mães solteiras ou as de famílias numerosas? Minorias étnicas ou da comunidade LGBT+? Também é frequente ouvirmos políticos populistas recorrerem a esta falácia, dizendo que os apoios aos mais desfavorecidos subtraem meios para a polícia, os hospitais, etc. Mas tais são, reitero, falsas dicotomias. A este propósito, lembro-me muito da frase que Bernard Rollin usava frequentemente e que tinha sido proferida de forma espontânea por uma sua aluna: “morality is not a single-shot shotgun”. Não se pode esperar de nós humanos, animais naturalmente empáticos, que expressemos essa empatia de uma forma estrita. Se somos verdadeiramente empáticos, isto é, se essa é uma motivação intrínseca que influencia o nosso comportamento, sê-lo-emos com a vizinha, com as pessoas que vemos sofrer na televisão e com os animais da nossa rua. Provavelmente de forma incoerente, intermitente e mal estruturada, mas nunca ‘sintonizada para um só canal’. Também nisto revelamos a nossa humanidade.

Será assim para a a maioria das pessoas evidente que não é por termos animais de estimação que não teremos filhos (ou vice-versa) ou que o amor dedicado aos animais afectará negativamente o vínculo com os os nossos filhos (ou vice-versa), salvas as devidas distâncias, obviamente. Arriscaria dizer, ainda que ateu convicto, que na questão do afecto se opera um verdadeiro “milagre da multiplicação”: quanto mais praticamos a empatia, a caridade ou a compaixão, mais teremos para dar, seja qual for a espécie.

Mas voltemos à posição oficial da Igreja relativamente às nossas obrigações para com os animais. É da tradição judaico-cristã atribuir ao ser humano um papel de domínio sobre a Criação (Genesis 1:26-30), sendo esta uma posição claramente antropocêntrica. Contudo, como noutros temas de índole religiosa, existem várias abordagens sobre como entender e exercer esse “domínio”. Duas perspectivas relevantes que aqui emergem são a do despotismo e a da custódia sobre a Natureza. A visão do despotismo assenta no pressuposto que a Natureza, incluindo os animais, foi criada por Deus para servir os humanos, não tendo outro valor que não aquele dado pelos humanos, os únicos a terem uma alma imortal e, assim, valor intrínseco. Esta perspectiva fundamenta-se, mais notoriamente, nas opiniões expressas pelos Doutores da Igreja Católica Agostinho de Hipona (Séc. IV) e Tomás de Aquino (Séc. XIII), embora este último aceitasse que se pudessem amar as criaturas irracionais pela caridade, para honra de Deus e pelo bem que as mesmas podem constituir para o próximo. Ademais, na sua Summa contra gentiles, considera que os homens se devem abster de serem cruéis com os animais de modo a “retirar do homem pensamentos de crueldade para com os seus semelhantes”. Séculos depois, Immanuel Kant expressaria uma versão secular desta mesma visão.

A benção dos animais, no dia de São Francisco de Assis (fonte)

Hoje, a interpretação mais consensual do domínio dos humanos sobre a Natureza é que o lugar do ‘Homem’ é o de zelar pela obra de Deus, tendo custódia desta, sendo sua responsabilidade respeitar a vida sob todas as formas. João Crisóstomo (séc. IV e V), Doutor da Igreja, afirmou que “Os santos são extremamente amorosos e gentis com a humanidade e também com os animais (…) Certamente devemos ser muito bondosos e amáveis com eles por muitas razões, mas, acima de tudo, porque eles têm a mesma origem que nós”.

Concluindo, a doutrina cristã de custódia e obrigação de cuidar dos animais e restante natureza tem hoje primazia sobre a visão despótica. Tal está bem patente na filosofia da ‘Reverência pela Vida’ do teólogo e Nobel da Paz Albert Schweitzer, bem como nas posições dos mais recentes pontífices à frente da Igreja Católica, surgindo habitualmente contextualizada numa perspectiva mais abrangente de respeito e referência por toda a Criação, fortemente influenciada por Francisco de Assis (séc. XII-XIII). É do próprio a afirmação “Não magoar os nossos humildes irmãos [os animais] é o nosso primeiro dever para com eles, mas parar aí não é suficiente. Temos uma missão mais elevada: servi-los sempre que eles necessitem”. Não me parece que o Bispo Linda esteja a par disto.

Uso de animais em Ciência – entre a entrevista possível e a explicação necessária

Recentemente , a jornalista Sofia Teixeira contactou-me para que contribuísse para uma reportagem que estava a fazer sobre o uso de animais em ciência. Fez-me questões pertinentes, mas também algumas provocações retiradas de sites de grupos extremistas, que papagueiam argumentos que há vinte anos já eram errados, e hoje ainda mais o são. Ainda que incorrectos, são argumentos que vejo frequentemente repetidos, pelo que devem ser alvo do devido escrutínio e esclarecimento, que deverá ser fundamentado em evidência para que não incorramos no risco da falsa equivalência entre factos e opiniões.

Uma vez que apenas duas ou três frases das minhas respostas foram citadas na reportagem (perfeitamente compreensível, até porque estou ciente que frequentemente me estendo na explanação dos factos) entendo que, não obstante, poderá ser do interesse público que as respostas que dei à jornalista possam ser consultadas na íntegra. Aqui ficam, então:

Rato de laboratório (crédito: Nuno Franco. todos os direitos reservados)

O que é o bem-estar animal e, sobretudo, como é que ele se pode balizar no contexto de animais ‘de laboratório’ usados para experiências científicas?

Esta é uma pergunta fundamental e mais complexa do que à partida se possa pensar: o que significa, para um animal, “estar bem”? O que é “ter uma boa vida”? Basta pensarmos em nós como os animais que somos e no quão difícil é dar resposta a esta pergunta. Pensemos nas disputas filosóficas, sociais, políticas e até guerras travadas devido a diferenças ao nível dos nossos conceitos e crenças acerca do que será o melhor para nós, humanos. Não sei então se seremos capazes de dar uma resposta definitiva e consensual sobre o que será o melhor para os outros animais, até porque para diferentes espécies, circunstâncias e indivíduos, as necessidades e vontades poderão diferir bastante. Assim, algo que alguns pensariam ser do foro estritamente científico é profundamente afectado pela questão marcadamente filosófica de sabermos o que na verdade significa “estar bem”. Ou seja, estudar cientificamente as condições necessárias ao bem-estar animal (quer intrínsecas aos animais quer externas) e determinar os seus indicadores físicos, mentais ou fisiológicos, e avaliar o impacto das intervenções humanas, irá depender da própria percepção do cientista e da sua comunidade do que, num determinado contexto e momento, se entende ser o bem-estar animal.

Face aos desafios impostos pelo uso de animais nas diversas actividades humanas, a ciência de bem-estar animal tem-se recentemente virado para a questão – não menos filosófica – de determinar que condições serão necessárias para que se possa dizer que um animal tenha uma vida que “valha a pena ser vivida”. Ou seja, se o cômputo final entre o deve e haver das experiências positivas e negativas ao longo de uma vida é positivo, uma visão que reflecte o utilitarismo hedonista de Jeremy Bentham para decidir quais comportamentos são mais eticamente aceitáveis.

Esta abordagem de proporcionar, se não uma “boa vida” (a tal que é tão difícil de determinar), ao menos uma que valha a pena, parece-me ser um bom ponto de partida para avaliarmos o que fazer no contexto do uso de animais para fins científicos, principalmente aqueles utilizados para modelar doenças humanas. A própria legislação já baliza os limites permitidos para a dor, desconforto ou angústia. Este limite é o sofrimento severo, não aliviado e prolongado, que é explicitamente proibido, ainda que reste depois a questão de determinarmos o que é ou não prolongado. De qualquer forma, sabemos identificar sinais físicos e comportamentais de sofrimento ligeiro, moderado ou severo nos animais de laboratório e, conhecendo as consequências das nossas intervenções nesses animais, podemos evitar que atinjam estados severos ou, no mínimo legalmente exigido, evitar que estes estados sejam prolongados e não aliviados de alguma forma. Tendo nós esse limite máximo de sofrimento que podemos permitir a um animal experienciar, proporcionar aos animais de laboratório uma vida que valha a pena será determinado pela nossa capacidade de equilibrar os aspectos negativos com experiências positivas, procurando que o uso de animais usados em ciência conflitua o mínimo com as chamadas “cinco liberdades”: estarem livres de fome ou sede; de desconforto; de dor, lesão ou doenças; de medo e angústia; e de expressarem comportamentos naturais, como a interacção social. 

No seguimento da pergunta anterior: há um consenso em torno do que é ético e do que não é não ético do ponto de vista daquilo a que podem estar os animais sujeitos ou a definição dessa fronteira vai sendo feita caso a caso? Como é decidido e regulado o que é ou não possível fazer? (se possível, mencionado aqui o papel dos ORBEA)

Há um consenso vertido na legislação relativamente às espécies que não podem ser utilizadas – nomeadamente grandes símios ou espécies ameaçadas (com salvaguardas) – e aos propósitos que não justificam o uso de animais em procedimentos, como o desenvolvimento e teste de produtos cosméticos, o uso de animais no ensino que não seja universitário ou pós-graduado, ou para fins militares. Mas isso não quer dizer que se admita qualquer uso de animais, mesmo quando os fins são vistos como meritórios. Por exemplo, como falámos há pouco, estudos que envolvam procedimentos severos, não mitigados e de longa duração, em circunstâncias normais não serão permitidos, seja qual o propósito. E mesmo que a severidade seja moderada ou ligeira, o uso de animais em procedimentos pressupõe a expectativa de algum benefício científico ou educacional que o justifique. Na verdade, a legislação europeia exige uma avaliação dano/benefício para cada projecto submetido para aprovação. Em Portugal, esta avaliação é realizada a dois níveis, um local e outro central. Ao nível local, cada estabelecimento onde são utilizados animais para fins educacionais ou científicos deverá ter um Órgão Responsável pelo Bem-Estar dos Animais (ORBEA), que emite um parecer não-vinculativo. O parecer vinculativo é depois emitido – ou não – pela Autoridade Competente, a Direcção Geral de Alimentação e Veterinária, que leva em consideração o parecer do ORBEA e todas as informações prestadas pelos investigadores que submetem o projecto para aprovação. Estes pedidos de licença incluem informação detalhada sobre os procedimentos a realizar nos animais, as condições de alojamento, quais as pessoas responsáveis pelos procedimentos (que devem ter formação específica para tal) e a razão pela qual os animais são imprescindíveis. Devem ainda constar detalhes sobre as medidas para substituir, reduzir e ‘refinar’ o uso de animais, este último significando as acções levadas a cabo para minimizar ou evitar desconforto, dor ou sofrimento e para promover o bem-estar animal.

Não há uma fórmula para a avaliação dano-benefício que possa ser aplicada a todas as situações, mas há recomendações da Comissão Europeia de como fazer a avaliação caso-a-caso, permitindo alguma harmonização deste processo, não impedindo contudo que seja um grande desafio, sobre o qual vários eticistas se têm debruçado, há já vários anos.

Como princípio fundamental, quando maior o dano infligido aos animais, maior terá que ser o benefício esperado, para seres humanos, outros animais, ou o ambiente. Mas é quase impossível garantir que uma só experiência, ou conjunto de experiências, ou mesmo toda uma linha de investigação, possa resultar num benefício concreto. Tomemos como exemplo o caso das vacinas para o Sars-Cov-2. Os coronavírus são estudados há décadas, mas eram pouco importantes para a comunidade médica e científica, até à emergência do SARS (2002) e MERS (2012). Até então, eram mais estudados ao nível das ciências veterinárias, pois os poucos coronavírus que se sabia infectarem humanos causavam no máximo uns resfriados ligeiros. Para se ter uma ideia, uma pesquisa rápida permite constatar que mais de 2/3 de todos os artigos alguma vez escritos sobre todos os coronavírus existentes foram publicados em 2020. Da mesma forma, Katalin Karikó, que desenvolveu a tecnologia de RNAm que é a base das vacinas da Pfizer e da Moderna contra a Covid-19, levou tantas rejeições de pedidos de financiamento quando se propôs a fazê-lo para aplicações médicas (em 1990 o princípio fundamental tinha já sido demonstrado em ratinhos) que chegou mesmo a ser despromovida, na sua universidade. Juntamente com o trabalho de Karikó – que em 2005 já tinha resolvido o principal problema técnico, permitindo que tenhamos hoje as vacinas – há décadas de outros estudos e milhares de pequenas contribuições que permitiram que pudéssemos desenvolver estas e outras vacinas em tempo record. Mas ninguém o fez adivinhando que haveria uma pandemia em 2020. E é por isso que, ainda que se possam esperar benefícios para a saúde e segurança de humanos e outros animais, o que poderá ser mais justo exigir é que a experimentação animal se destine a obter conhecimento científico fidedigno. Por esta razão, creio que os ORBEA, para além da sua função de avaliarem e acompanharem a execução de experiências para minimizar o seu impacto nos animais, deverão também trabalhar com os investigadores no sentido de maximizarem a probabilidade de obtenção dos benefícios esperados, através das melhores práticas em delineamento experimental. Isto é um caminho onde há ainda algum caminho a trilhar, mas que já é uma realidade para vários ORBEA.

Reportagem da Notícias Magazine, de 18 de Abril de 2021

O DL 113/2013, que transpõe a Directiva 2010/63/EU, define que devem ser promovidos os 3Rs no que diz respeito à experimentação animal. (substituir, reduzir, refinar). Em termos gerais, parece-lhe que isto é feito, ou seja, quando são usados animais é porque, efectivamente, não havia outra opção disponível?

Tenho a certeza que na maior parte dos casos o uso de animais é devidamente justificado, principalmente quando o foco do interesse científico vai para além dos mecanismos aos níveis molecular, celular e tecidular para o nível mais macroscópico, ou seja, da interacção dos sistemas de órgãos, dos seres vivos integrais e da interacção destes com o ambiente externo. Ainda que tenhamos ferramentas muito sofisticadas e utilíssimas para estudar o nível molecular e celular, não podemos ainda dispensar o uso de animais vivos, que é absolutamente fundamental. Para percebermos o quanto, tiremos a componente ética da equação e foquemo-nos na questão científica, tomando como exemplo o estudo das plantas. Podemos estudar ao pormenor as clorofilas e outros pigmentos, os organelos celulares, os diferentes tipos de células e tecidos vegetais. Contudo, ninguém se atreveria a dizer não ser importante entender as interacções entre os diferentes órgãos – como as folhas, caules raízes, ramos, flores, frutos, etc. – e os efeitos macroscópicos em toda a planta, ou entre uma população ou comunidade de plantas. Alguém diria que seria melhor do ponto de vista científico, comercial e da segurança alimentar comercializarmos um novo composto num fertilizante sem o testar primeiro em plantas inteiras e baseando-nos somente em estudos com ‘métodos alternativos’ às plantas? Com a investigação biomédica em animais temos uma situação análoga, só que muitíssimo mais complexa, à qual obviamente teremos que acrescentar a questão ética, se falamos de animais com sistemas nervosos homólogos ao nosso, ou mesmo não-homólogo mas suficientemente complexo, como o é o caso dos cefalópodes.

Onde se pode falar verdadeiramente de substituição de animais por métodos in vitro, computacionais ou outros – e onde tem sido feito bastante investimento nesse sentido – é em testes toxicológicos, nas fases precoces de triagem de moléculas candidatas a drogas terapêuticas e no ensino. Já em investigação fundamental, os modelos animais e não-animais não são mutuamente exclusivos, mas devem ser vistos como complementares, fornecendo diferentes perspectivas sobre um mesmo fenómeno.  Até porque não há forma de construirmos de forma satisfatória um modelo de algo que nos é desconhecido, teremos que ir à fonte e estudar o próprio organismo. Se algum dia viéssemos a saber o suficiente para podermos construir um modelo completo de um humano ou ratinho, saberíamos então tanto que não o teríamos de o fazer.

Quanto à Redução e Refinamento, penso que se tem feito imenso progresso, mas há ainda bastante margem para melhoramento, ao nível global. Digo ao nível global porque não acho que Portugal esteja particularmente atrasado relativamente ao resto dos países ocidentais, a esse respeito. Nos últimos 15 anos recuperámos quase todo – se não mesmo todo – o atraso que tínhamos face a países como o Reino Unido, a Holanda, ou a Alemanha ao nível da exigência em investigação animal. Penso que para isso ajudou que houvesse, já há muito tempo, algumas instituições com elevados padrões de bem-estar animal, que serviram como referência. A educação em ciências de animais de laboratório de todos os investigadores, a crescente especialização das equipas que prestam cuidados aos animais e a Directiva 2010/63 fez-nos avançar, em poucos anos, de um país com poucas restrições regulatórias para estarmos em condições de cumprir a que muitos consideram ser a mais extensa e rigorosa exigente legislação do Mundo para a protecção dos animais usados para fins científicos, muito mais exigente que a dedicada à protecção dos animais de produção, ou mesmo de companhia.

O único aspecto em que ainda estamos atrasados é no próprio desenvolvimento de métodos e tecnologias que promovam a substituição, redução e refinamento do uso de animais em ciência. Somos um dos poucos países europeus sem um centro 3Rs nem financiamento dedicado a esta área. Contudo, em breve começará a tomar forma no i3S o primeiro centro português para os 3Rs, aproveitando as características únicas desta instituição, quer ao nível da inovação em ciência fundamental e aplicada, quer ao nível da sua multidisciplinaridade e espírito cooperativo. Temos já, por exemplo, linhas de investigação de desenvolvimento de organóides, que prometem tornar-se um meio-caminho entre as culturas celulares bidimensionais e um organismo completo.

Uma das questões que me parece central nesta discussão é a questão da eficácia. Ou seja, as pessoas e organizações contra testes em animais alegam que os animais raramente servem como bom modelo do corpo humano e, por isso, os testes prévios em animais nem sequer protegem os humanos de nada. Segundo o site da PETA, “o instituto nacional de saúde, (NIH) do reino unido, diz que 95 % das drogas que se prova serem seguras e eficazes em animais falham nos ensaios clínicos em humanos. (…) as reações fisiológicas às drogas variam enormemente de espécie para espécie. A penicilina mata porquinhos da índia, a aspirina mata os gatos e causa malformações congénitas em ratos, cães e macacos e a morfina, um depressor do SNS em humanos estimula as cabras, gatos e cavalos.” O Nuno também estuda esta questão da eficácia, por isso, pedia-lhe comentários que mostrem o outro lado deste argumento.

Primeiramente, algo que não podemos esperar de uma organização como a PETA, é que seja intelectualmente honesta ou moralmente responsável. Todo o seu historial aponta para o contrário, desde a campanha baseada em alegações pseudocientíficas que o consumo de leite estaria conectado de alguma forma ao autismo, ao apoio e financiamento de terrorismo doméstico nos Estados Unidos, passando pelo facto de apenas uma ínfima parte do seu orçamento multimilionário ser dedicado ao bem-estar animal e de matarem quase todos os animais domésticos no seus abrigos. Já as alegações em si, têm tanto de antigas como de falaciosas, não sendo surpreendente que encontremos refutações das mesmas com mais de vinte anos. Mas vejamos cada uma com mais pormenor. É verdade que o tempo de meia-vida do acetilsalicilato e outras drogas é consideravelmente mais longo nos gatos que na generalidade dos outros mamíferos – como os humanos ou os cães – devido a um defeito idiossincrático dos felinos no gene para a enzima que metaboliza esses compostos e que foi identificado através do estudo de amostras recolhidas de…animais. Mas pode ser administrado para gerir dor e inflamação aos gatos numa dose adequada ao seu peso e metabolismo, que terá necessariamente que ser menor e com administrações mais intervaladas do que a habitualmente dada a outros mamíferos, como cães e humanos.

O caso da penicilina, na verdade, ilustra maravilhosamente quer a proximidade filogenética entre os humanos e os outros animais – porque é igualmente eficaz em quase todas as espécies – quer a importância da experimentação animal, pois foi originalmente testada, com sucesso, em ratinhos. As cobaias são um caso particular, pois têm na flora do seu tracto intestinal uma maior predominância de bactérias Gram-positivas, afectadas pela penicilina e semelhantes, levando a que bactérias Gram-negativas nocivas possam proliferar, causando diarreias e até a morte, nestes animais. Como seria de esperar, se à penicilina juntarmos antibióticos dirigidos às bactérias Gram-negativas, esta reacção adversa já não se observa, algo que também sabemos graças à experimentação animal.

A morfina – ou outros opióides sintéticos mais potentes – é de grande importância para o controlo da dor, quer na medicina humana, quer na veterinária. O efeito excitatório mencionado em gatos e cavalos ocorre apenas quando são administradas doses muito acima das recomendadas. Para não variar, também sabemos isto graças à experimentação animal, que tem sido imprescindível para o progresso da medicina veterinária. Acho, aliás, estranho que uma organização com esta dimensão não tenha em todas estas décadas consultado um médico veterinário para confirmar – ou rejeitar – estas alegações.

Quanto ao rácio de medicamentos eficazes em animais e as drogas que chegam à comercialização, o rácio de 20 para 1 (5% de “sucesso”) é próximo da realidade, para moléculas pequenas. Para terapias baseadas em macromoléculas – tipicamente proteínas complexas, semelhantes às biológicas– e que têm recebido crescente interesse, o rácio é de 8:1 (13% de sucesso) dos animais para a comercialização. Mas é preciso ter em atenção vários outros factores. Primeiramente, os compostos testados em animais são primeiramente seleccionados por uma triagem de alto rendimento conduzida em tecnologias não-animais. Isto é, os testes em animais que falham a sua previsão de eficácia em humanos, tinham antes falhado a sua previsão nos testes não-animais. Em segundo lugar, há várias razões pelas quais um medicamento poderá “falhar” num ensaio clínico, e que poderão não ter a ver com a sua eficácia. Os ensaios podem ser descontinuados por simplesmente não serem mais eficazes que os medicamentos já disponíveis, ou terem efeitos secundários pouco frequentes que apenas são detectáveis quando se alarga o tamanho da amostra, ou por razões económicas e logísticas. Na verdade, apenas 8% das pequenas moléculas e 16% das grandes moléculas que passam da fase clínica I (realizados em algumas dezenas de voluntários) para a fase II acabam por ser comercializados, segundo dados de 2016 do KMR Group. Dados mais recentes dizem-nos que a taxa de sucesso, contudo, é consideravelmente superior ao nível das vacinas, pois 1 em cada 3 que passam a fase I chegam ao mercado, o que poderá indicar também nesta área um maior valor preditivo dos testes em animais que a precedem.

Quando ao meu trabalho, depois de me ter focado na avaliação do bem-estar animal em investigação biomédica, passei a estudar também a qualidade metodológica da experimentação animal, e que nos pode dar uma ideia da fiabilidade esperada dos resultados, isto é, da sua reprodutibilidade. Isto porque um provável entrave à tradução de resultados em animais para a medicina humana é o facto de muitos estudos publicados não serem em primeira instância sequer reprodutíveis nos mesmos modelos animais, se realizados num outro laboratório. Isto pode resultar de várias falhas metodológicas que podem ocorrer e que levam a um exagero da estimação da eficácia dos tratamentos ou, por outro lado, a que efeitos reais não sejam detectados. O problema é que, quando um efeito não é encontrado, seja real ou não, o mais provável é o estudo não ser publicado, algo a que chamámos o ‘viés de publicação’, pois a publicação preferencial de “resultados positivos” distorce a imagem global que temos da verdade científica. Como considero o desperdício de animais em estudos pouco fidedignos (uma violação do princípio da Redução) tão eticamente relevante como a questão do seu bem-estar, comecei a olhar também para esta questão. E a primeira vez que a estudei, com colegas nacionais, suecos e britânicos, foi exactamente numa área onde se tinha descoberto que a maior parte dos ensaios clínicos – falhados – tinham sido baseados em estudos pré-clínicos (em animais) cuja eficácia não pôde ser comprovada em estudos subsequentes mais rigorosos nos mesmíssimos modelos animais. Já num artigo recente, com colegas portugueses e húngaros, focámo-nos em comparar a eficácia de uma classe de drogas disponíveis no mercado entre ensaios clínicos e pré-clínicos,  e os nossos resultados sugerem que os efeitos são comparáveis entre as espécies estudadas.

Fonte: Adaptado de KMR Group 2016

O Nuno diz algures – creio que num blog em que participa – que o conceito de Direitos dos Animais lhe diz pouco, ao mesmo tempo que reconhece que não há nada mais humano do que a compaixão pelos animais. Quer esclarecer um pouco este aparente paradoxo?

Não há qualquer paradoxo, pois há muito mais na ética animal para lá do enquadramento restrito do princípio dos direitos dos animais, pelo menos como foi proposto no início dos anos 1980s por Tom Regan, como sintetizo numa página desse mesmo blog que refere. Essa corrente filosófica postula que todos os animais sencientes, isto é, que possam sentir dor – sejam eles sardinhas, polvos, ratos, lagartos, pardais, macacos ou humanos – merecem que lhes reconheçamos os mesmos direitos que reconhecemos aos humanos. É uma apropriação da visão Kantiana de que há um valor intrínseco aos humanos que nos exige que não usemos os humanos como meios para um fim, porque são “fins em si mesmos”. Mas se já não concordo com Kant nesse pressuposto – vejo os direitos humanos como imprescindíveis, mas também como uma importante construção social, e não resultantes de um “direito natural” – imagine então a minha discordância com Regan, ainda que se apoie no conceito da senciência, que depende da biologia própria de cada espécie.  Esticando a visão kantiana aos outros animais, não poderíamos assim usá-los para alimento (carne, ovos, leite e para alguns até o mel são resultado da exploração), para o nosso vestuário, no trabalho (cães-pastores, de guarda ou guia, animais de carga, cavalos militares e da polícia, etc.) ou em experiências científicas, entre outros. É uma visão tão exigente que penso ser quase impossível ser apologista dos direitos dos animais, stricto sensu, de uma forma coerente. Por exemplo, tenho visto aumentar o uso do termo “tutor” para designar a nossa relação com os nossos animais de companhia, ao invés de “dono”. Mas é um eufemismo ilusório, pois os nossos animais de companhia não têm meios de consentir nenhuma das decisões que tomamos por eles, começando pelo simples facto de viverem na nossa casa. Comem apenas quando, quanto e o que nós queremos; saem à rua e fazem as necessidades quando nos é conveniente; reproduzem-se apenas se o permitirmos e com os parceiros que escolhemos (ou são esterilizados sem a sua aprovação); têm que usar trela e por vezes açaime; recebem tratamentos médicos sem consentimento, etc. Obviamente, todos nós concordamos que qualquer pessoa bem-intencionada tomará todas estas decisões para o bem dos seus estes animais, que poderão saudáveis e felizes sem nunca se ralarem sobre se realmente violamos direitos que desconhecem. Mas há humanos que se preocupam com o direito dos animais a não serem tratados como propriedade, como Gary Francione, para quem a única atitude coerente para evitar a exploração dos animais seria termos um mundo sem cães, vacas, cavalos, ovelhas, bem como sem zoos, oceanários, ou quintas pedagógicas. Mas, na verdade, Francione até tem cães (ou é seu “tutor”, se o faz dormir melhor à noite) e certamente está ciente dessa incoerência, desfrutando não obstante da companhia dos patudos.

Penso que devemos definir obrigações legais que regulem o que nós, como sociedade, entendemos ser um tratamento justo e (lá está) ‘humano’ dos animais não-humanos. Mas ainda que, de uma certa forma, possam ser vistos como uma espécie de direitos porque lhes garantem protecção legal, na verdade vejo estas regras mais como obrigações humanas, que direitos dos próprios animais. Mas seja qual for a perspectiva, o que mais importa é de facto garantir que nos preocupamos com o seu bem-estar e nos certificamos do cumprimento dessas regras.

Para ser sincero, vejo pouca sofisticação nas perspectivas dos direitos dos animais, como postuladas por Regan ou Francione, que propõem soluções que são simples a um nível abstracto – isto é, a única opção ética é a abolicionista – mas sem possibilidade de aplicação, em concreto. Ignoram milhares de anos de colaboração e interdependência entre humanos e as espécies que domesticamos, algumas das quais poderão ter-se até auto-domesticado para beneficiarem desta relação mutualista, uma espécie de contracto social tácito inter-específico. Põem ainda os humanos numa categoria à parte dos restantes animais, com obrigações que não impõem a outras espécies, como se de alguma forma tivéssemos deixado de pertencer ao mundo natural. Não deixa, contudo, de ser interessante que é exactamente a nossa biologia humana que pode levar a estes extremos. A evolução fez de nós animais ultra-sociais, o que requer uma enorme capacidade empática (não somos, contudo, a única espécie que demonstra empatia, antes pelo contrário), ao ponto de alargamos o nosso círculo de consideração moral às outras espécies e que nos permitiu com elas cooperar, coabitar e inclusive integrar nas nossas famílias. A nossa compaixão e empatia para com os animais – ainda que varie com a espécie e circunstâncias pessoais e culturais – é, assim, do ponto de vista sociobiológico, parte do que faz de nós seres humanos. E ainda bem.

Residência Veterinária em Bem-Estar Animal

http://www.ecawbm.com/

O Bem-Estar Animal (BEA) tornou-se nos últimos anos um tema incontornável na sociedade portuguesa. Espera-se que os médicos veterinários actuem como os principais defensores do BEA mas faltam em Portugal profissionais com formação especializada nestas matérias. Os casos recentes dos canis ilegais em Santo Tirso ou da montaria na Herdade da Torre Bela ilustram bem a necessidade de haver mais médicos veterinários especialistas em BEA e capazes de actuar nas mais diversas áreas de actividade.

Com este anúncio, procuro médicos veterinários com carteira profissional activa e que queiram realizar uma residência alternativa em BEA. Os candidatos devem demonstrar ter experiência em algum dos aspectos do bem-estar animal (ciência, ética ou legislação). Caso queira saber mais sobre os requisitos necessários para fazer uma residência alternativa em BEA, por favor consulte o seguinte regulamento:

Para se candidatar ou saber mais sobre esta formação, aceda ao seguinte formulário.

Levar a sério o problema dos animais de companhia

Os eventos recentes envolvendo a morte de dezenas de animais em dois abrigos ilegais de Santo Tirso culminaram num autêntico furação político, com a suspensão do médico veterinário municipal, a demissão do Director-Geral da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) e a passagem da tutela dos animais de companhia do Ministério da Agricultura para o Ministério do Ambiente e da Ação Climática.

© Global Imagens

Como sempre acontece quando estão envolvidos animais, o debate tem sido extremado; por um lado o PAN, através do seu porta-voz e o PS, pela mão do próprio Primeiro-Ministro António Costa; e por outro, as associações profissionais do setor animal, nomeadamente a Associação Nacional de Médicos Veterinários de Municípios (ANVETEM) e a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV).

Num clima de grande crispação e incerteza, dois pontos importa reter. O primeiro é que, aqui chegados, todos somos responsáveis pela presente situação: cidadãos detentores de animais de companhia, profissionais do ramo animal, associações zoófilas, municípios, autoridades veterinárias locais e nacionais, deputados, governos e seus ministérios. Isso torna-nos a todos, ao invés de culpados, co-responsáveis por encontrar uma estratégia que sirva o melhor interesse dos animais. Para tal, vale a pena começar por identificar em retrospetiva o que de positivo se tem feito neste contexto, pese embora as lacunas ainda existentes.

Nos últimos anos, a frequência de campanhas de adoção e esterilização de animais de companhia aumentou drasticamente em todo o país, muito por conta da estreita colaboração entre médicos veterinários municipais e associações zoófilas. São bons exemplos o Programa CED (captura, esterilização e devolução) da Câmara Municipal de Braga ou o @ProjetoFiel do Canil/Gatil Municipal de Évora. Em 2019, foi criado o Sistema de Identificação de Animais de Companhia (SIAC), fundindo as duas bases de dados então existentes e transferindo para os médicos veterinários a responsabilidade pela identificação e registo animal. Este mecanismo, em conjunto com o novo modelo de Boletim Sanitário de Cães e Gatos (uma iniciativa conjunta da DGAV e da OMV), dificultou em muito o mercado ilegal de animais e a desresponsabilização do abandono. Outros aspetos positivos relacionam-se com estratégias que contribuíram para facilitar o acesso aos cuidados de saúde animal. São exemplos a dedução no IRS das despesas médico-veterinárias, proposta pelo PAN em 2016, ou o Programa Nacional de Apoio à Saúde Veterinária para Animais de Companhia em Risco, uma iniciativa da OMV que permite às autoridades locais (Municípios e Juntas de Freguesia) atribuir cheques veterinários aos detentores carenciados, por elas identificados, para utilização em cuidados de saúde primários.

O segundo ponto que importa lembrar é que todos concordamos que os animais são seres sensíveis, cujos interesses urge defender. Divergimos, é certo, na melhor forma de o fazer. Tem razão André Silva quando afirma que os municípios têm falhado na sua obrigações de disporem de Centros de Recolha Oficiais de Animais (CROA), não só em número, mas também em qualidade de bem-estar animal, e que não pode o legislador andar a reboque de uma sociedade mal preparada para lidar com a detenção responsável de animais de companhia. Mas também tem razão a ANVETEM quando defende que aos médicos veterinários municipais deve ser dada autonomia técnica para garantir a gestão populacional dos CROAs e que lhes deve ser conferido o poder de autoridade sanitária veterinária concelhia, ao abrigo do Decreto-Lei nº 116/98.

A sociedade precisa de desenvolver uma estratégia multidisciplinar que permita trabalhar no melhoramento da sua relação com os animais de companhia. Não é com fraturas, aproveitamentos políticos e omissão de pareceres técnicos consubstanciados que se alcança uma solução otimizada para proteger os interesses dos animais. A nossa posição é clara: a abertura desenfreada de centros de recolha – oficiais ou privados – como solução para tirar os animais da rua mais não é que a perpetuação de depósitos que estão longe de lhes providenciar adequada qualidade de vida. É necessário antes investir as verbas disponíveis em outras abordagens. Da mesma forma, as associações zoófilas e os CROAs não deveriam limitar-se a receber e manter animais nos seus canis, ou a fazer as muito úteis campanhas de adoção/esterilização. Em alguns casos, é preferível não ceder animais para adoção do que vê-los mais tarde neglicenciados, mal-tratados ou sujeitos a re-abandono. Deveria ser sempre exigido uma forma de monitorização e registo do percurso dos animais após a adoção, bem como do destino das verbas implicadas. Esta estratégia não só dissuadiria a posse irresponsável de animais, como responsabilizaria as autarquias pela adequada gestão de fundos.

A frente educação é lenta, mas irreversível. O malogrado caso de Santo Tirso nunca teria gerado a mesma indignação popular nem consequências políticas há 10 anos atrás, simplesmente porque as pessoas estão agora muito mais sensíveis a este tema. No entanto, muitas destas reações foram mais fruto da emoção do que da razão, sendo que a desinformação que se seguiu clama por uma estratégia educativa concertada. Desde Setembro de 2018, a Direção-Geral de Educação tem vindo a preparar, em conjunto com a DGAV, a OMV, o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e o Jardim Zoológico de Lisboa, um referencial para o Bem-Estar Animal no âmbito da disciplina de Educação para a Cidadania, e que constitui uma oportunidade educativa sobre estas matérias desde o ensino pré-escolar até ao secundário. Mas a educação para a convivência responsável com animais de companhia não pode esperar tanto tempo. Compete aos municípios, como parte integrante das suas obrigações, sensibilizar ativamente os seus munícipes sobre a detenção responsável e agir em conformidade em casos de manifesta violação, como era o caso dos abrigos de Santo Tirso.

Por sua vez, a legislação tem o poder de impulsionar uma rápida mudança de atitudes. É um instrumento que reflete princípios, mas que deve ter em conta as consequências da sua efetiva aplicação. A legislação feita em Portugal raramente analisa a priori o impacto da sua aplicação, podendo com isso levantar mais problemas do que os que pretende resolver. Neste caso, precisamos de um sólido enquadramento legal que proteja os interesses dos animais de companhia, o que passa pela sua manutenção em condições de saúde e satisfação das necessidades fisiológicas, comportamentais e mentais. Como fazê-lo em canis sobrelotados e a receber continuamente mais animais? A polarização da discussão em torno da eutanásia torna-a artificialmente um instrumento da resolução do problema. A eutanásia não é, nem pode ser, a solução principal. No entanto, excluí-la liminarmente vota centenas de animais à mais miserável das vidas, a sofrimento permanente e sem qualquer hipótese de recuperação e adoção. É, na prática, uma crueldade.

Por fim, são necessários técnicos e organismos competentes capazes de passar à prática estas medidas, usando os fundos disponíveis de forma responsável e verificável. A pluridisciplinaridade é geralmente útil, mas não percebemos como é que se vai melhorar a situação retirando este assunto do controlo das autoridades veterinárias, onde a articulação entre autoridade veterinária nacional (DGAV), médicos-veterinários municipais e profissionais do sector privado é tão drasticamente necessária. Concluímos exortando os decisores políticos a dotarem os organismos competentes, como a DGAV, de técnicos e meios capazes de fazerem frente às actuais limitações, criando políticas pró-ativas de aplicação das normas em vigor, em vez de andar simplesmente a reboque da legislação europeia. O problema não se vai resolver nunca com discursos inflamados ou manobras políticas superficiais de mudança de competências.

Texto escrito em co-autoria com Leonor Galhardo, Bióloga e Consultora em Bem-Estar Animal, e publicado originalmente no Jornal Público.

Qual é o risco do seu cão sofrer um golpe de calor?

Todos sabemos o quão perigoso é deixar um cão no interior do carro ao sol ou com as janelas fechadas. Embora os cães possuam glândulas sudoríparas na pele, elas não servem para fazer termorregulação como no caso dos humanos (excepto nas suas patas, que também suam). Para perder calor, o cão recorre a duas estratégias básicas: vasodilatação periférica e aumento da frequência respiratória (i.e. arfar). Se o ar for demasiado quente e húmido, este mecanismo não funciona eficazmente e o animal entra em hipertermia, que pode resultar em falência multi-orgânica, choque e morte.

Veja infografia sobre golpe de calor em Vets Now.

Mas qual a frequência do golpe de calor em cães? Foi esta pergunta que investigadores de Nottingham Trent University e do Royal Veterinary College de Londres procuraram responder, num estudo publicado na revista Nature Scientific Reports. Os investigadores recorreram à base de dados VetCompass, que reúne informação de animais atendidos em clínicas veterinárias por todo o Reino Unido, para identificar casos de golpe de calor nesse país. Embora tenha sido encontrada uma baixa incidência (0.04%, num total de 395 casos confirmados de golpe de calor durante o ano de 2016), a taxa de letalidade é  elevada: 14% dos animais atendidos morreram. A esmagadora maioria dos casos ocorreu entre os meses de Maio e Agosto. Sem surpresas, cães braquicéfalos (i.e. de nariz achatado) e pesando mais de 50 kgs têm risco significativamente aumentado de sofrer golpe de calor.

Três recomendações genéricas podem ser retiradas deste estudo: à medida que o planeta aquece (um processo inexorável, mesmo que parássemos hoje mesmo de libertar carbono para a atmosfera)  necessitamos de esforços adicionais para educar os detentores a saber vigiar e identificar sinais de hipertermia nos seus animais, por forma a evitar golpes de calor nos meses mais quentes do ano. Por outro lado, é necessário criar animais com uma conformação cardiorespiratória adequada, o que implica alterar o estalão de raças populares como Pug, Bulldog, Dogue Francês, Dogue de Bordeaux, Cavalier King Charles Spaniel e de outras raças braquicéfalas. Por fim, é fundamental manter uma condição corporal adequada porque o excesso de peso, para além de provocar problemas metabólicos, incluindo diabetes, é um factor de risco acrescido para golpe de calor em cães.

A ascensão e queda do bem-estar animal em Portugal

Leonor Galhardo

O meu primeiro emprego em bem-estar animal foi no que é hoje a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). Tinha acabado a minha formação na área e estava desejosa de a pôr em prática. Entrei para a recém-criada Divisão de Bem-Estar Animal, liderada pela Drª Selene Veiga, a quem ouvi defender posições avançadas sobre bem-estar animal – o que na altura não era vulgar entre veterinários, mais focados no uso instrumental dos animais, sobretudo para consumo de carne. Ela falava com consideração moral e prática não só de animais de pecuária, mas também de laboratório, de companhia e até de animais selvagens. Foi com estes últimos que me pôs a trabalhar, em face da minha formação de base.  Com ela aprendi que nem sempre é justo rotular os veterinários pela imagem que alguns, mesmo que na altura muitos, criam da profissão e aprendi também o valor da colaboração e da multidisciplinaridade. Há mais de 20 anos atrás.

Pelas mãos daquela experiente veterinária e das que se seguiram, a divisão ganhou forma, expandiu-se nos tópicos com que trabalhou, ajudou a aplicar e fiscalizar um grande pacote de leis que nos chegaram da União Europeia. Criaram-se estratégias de formação de técnicos, produtores e tratadores. Os funcionários da divisão desdobraram-se em deslocações pelo país para mapearem a situação das pecuárias, dos canis, dos parques zoológicos e dos laboratórios que usavam animais. Falhou muita coisa, com certeza que sim: por fragilidades técnicas, humanas, de conceitos e de recursos. Ao longo do tempo, diversas políticas e carências mantiveram lacunas que num sistema administrativo mais eficiente e modernizado poderiam ter sido ultrapassadas. O que é certo é que, naquele tempo, o bem-estar animal ganhou uma morada, um conceito prático e respeito. Ganhou um conjunto de técnicos que se conseguiram fazer ouvir até hoje junto de interlocutores difíceis e que nenhum político a discorrer sobre animais realmente conhece na prática.

Hoje chegámos a um ponto em que, segundo a Ministra da Agricultura, a atual DGAV tem que se dedicar à alimentação, isto é, aos animais de pecuária. O Ministério do Ambiente que se dedique aos outros – isto junto com as políticas de ambiente, ordenamento do território, cidades, transportes, mobilidade, clima, conservação da natureza, energia, geologia e florestas, e tantos outros temas muito pouco afins com animais de companhia. O PAN, por quem tenho respeito e concordância quanto a vários pontos de vista filosóficos relativos à proteção animal, entendeu focar-se na DGAV como bode expiatório da tragédia dos canis de Santo Tirso. O Governo respondeu precipitadamente na mesma linha e encenou uma mudança de estratégia, sem qualquer consideração pelos reais problemas que bloqueiam uma ação mais efetiva por parte da DGAV e outras entidades, como as Câmaras Municipais. Esperemos que aquilo que começou por ser uma indignação generalizada contra os maus-tratos a animais não venha a ficar para a história como a situação que fez o atual Governo desfazer o único departamento oficial dedicado a bem-estar animal e que mais contribuiu para o melhorar em Portugal.

Leonor Galhardo – Bióloga, consultora de bem-estar animal

(uma versão deste artigo foi originalmente publicada no Jornal Expresso online)

Substituir, reduzir e refinar o uso de animais em ciência. Mas não por esta ordem?

Nota: Tenho andado um pouco desconectado do Animalogos, em parte por culpa também da maior facilidade e alcance da nossa página de Facebook. Mas a criação do blog Animalogues (um “primo” deste) pela Anna Olsson veio lembrar-me que este formato tem algumas vantagens relativamente às páginas nas redes sociais, cujas publicações são mais efémeras e frequentemente com menos substância. Vou procurar escrever mais sobre descobertas científicas mais recentes relativas ao comportamento, cognição, bem-estar e ética animal. 
A reflexão que vos trago hoje vem a propósito do artigo recentemente publicado na PLOS ONE “Researchers’ attitudes to the 3Rs – an upturned hierarchy?”, do qual eu, a Anna Olsson e o Peter Sandøe somos autores. 
É sabido que o uso de animais em investigação biomédica é geralmente justificado pelos potenciais benefícios para a saúde dos seres humanos e de outros animais, ou do meio ambiente. No entanto, é também esperado que os cientistas sigam o princípio dos 3Rs (Replace, Reduce, Refine) e procurem, tanto quanto possível, “substituir, reduzir e refinar” o uso de animais para fins científicos ou educacionais. 
O uso de animais em Ciência ainda é imprescindível.  Mas devem ser
desenvolvidos meios e estratégias para a sua substituição, redução e refinamento.
Uma das formas de promover os 3Rs é a a formação em ciência de animais de laboratório, que na União Europeia é essencial e obrigatória para todos aqueles que pretendem usar animais para fins científicos. O nosso objectivo foi assim de avaliar o nível de conhecimento e sensibilização dos investigadores para os 3Rs, antes e depois de frequentarem cursos em ciências de animais de laboratório. Para isso realizámos um inquérito on-line com participantes dos cursos realizados em oito cidades situadas em quatro países europeus: Portugal (Porto e Braga), Alemanha (Munique e Heidelberg), Suíça (Basileia, Lausanne, Zurique) e Dinamarca (Copenhaga). As perguntas foram elaboradas de modo a avaliar atitudes gerais relativas ao uso de animais em investigação biomédica, alternativas de substituição, potenciais conflitos entre os objectivos de redução e refinamento e análises de dano-benefício. Ao primeiro inquérito responderam 310 investigadores e ao segundo inquérito 200, mas apenas 127 foram tidos como válidos. 
Sucintamente, nós descobrimos que:
  • Embora os cursos aumentem o nível de conhecimento sobre os 3Rs, não tiveram nenhum efeito observável no nível de confiança que a experimentação animal pode ser totalmente substituída por métodos não-animais (que à partida era já baixo). 
  • A maioria dos investigadores reconhece haver questões éticas relacionadas com seu trabalho e discute-as com seus pares. 
  • O nível de bem-estar animal, e especialmente a prevenção da dor, foi considerado como a questão ética mais premente, bem como mais importante do que o número de animais usados ​​ou o próprio uso de animais, em si. 

A hierarquia originalmente proposta por Russell e Burch, a o modo como os
3Rs surgem hierarquizados, na nossa amostra de investigadores. 
Todos os dados que recolhemos apontam para uma “inversão” da hierarquia de  prioridades, relativamente à originalmente proposta nos anos 1950s pelos arquitectos dos 3Rs, William Russell e Rex Burch. Ao passo que estes priorizavam a substituição do uso de animais, e apenas quando esgotada essa possibilidade propunham que se considerasse a redução e refinamento, os investigadores actualmente priorizam o Refinamento sobre a Redução e esta sobre a Substituição. 
Neste artigo abstemo-nos de fazer uma avaliação moral desta “hierarquia invertida”. De qualquer forma, qualquer reflexão a este respeito deverá contemplar que o uso de animais para fins biomédicos é ainda imprescindível e que o desenvolvimento de meios e estratégias para a sua substituição é morosa, dado que os mesmos devem ser ser devidamente avaliados e validados. Nesse contexto, e face à urgência de avançar o conhecimento científico e médico, poderá fazer sentido priorizar o bem-estar dos animais que actualmente (e no futuro próximo) utilizados, pois é uma questão mais premente e e mais fácil implementação.

Contudo, esta (aparente) desvalorização do objectivo de substituir o uso de animais está em conflito com as expectativas do público e dos reguladores. Isto implica, primeiramente, que a urgência de melhorar o bem-estar dos animais de laboratório não deva impedir a continuação do investimento no desenvolvimento de métodos alternativos (sobretudo ao nível dos testes regulamentares de substâncias). Significa ainda que deve haver um esforço em comunicar de forma transparente o porquê e como são usados animais em ciência, para uma maior compreensão do público das nossas actuais prioridades, objectivos (e limitações) e compromisso com o bem-estar animal e os 3Rs. 

Comissão Nacional para a Protecção dos Animais Utilizados para Fins Científicos

Comissão Nacional para a Protecção dos Animais Utilizados para Fins Científicos (CPAFC) assinala o Dia Mundial do Animal do Laboratório com o lançamento do seu website.

A CPAFC tem como missão de promover a prática dos 3Rs e aconselhar os outros importantes atores no setor, ao nível central a autoridade comptente Direção Geral de Alimentação e Veterinária e ao nível institucional os Orgãos Responsáveis Pelo Bem-Estar dos Animais (ORBEA). A constituição no terreno da CPAFC tem sido ansiosamente aguardada por muitos que trabalham com a questão dos animais de laboratório. Ficaremos atentos ao começo da sua atividade.

Tens frio? Então encolhe a cauda!

Um dos maiores desafios para quem estuda comportamento e bem-estar animal é o facto de que a nossa perspetiva é sempre a de uma espécie diferente daquele que estamos a estudar.  Sendo seres humanos, inevitavelmente percebemos o mundo do ponto de vista de um mamífero bípede com pouca pelagem e sem cauda.

Por isso, fiquei primeiro não só surpreendida como de facto algo incrédula quando li que os ratinhos crescem caudas mais compridas se tiverem mais material de cama nas suas caixas.

Mas faz sentido se consideramos a biologia do ratinho, que com o corpo peludo e a cauda sem pelos assegura uma boa parte da sua termo-regulação pela cauda. Quanto maior a cauda, e quanto mais exposto a temperaturas baixas, mais calor o animal perde. Os ratinhos com mais material de cama (neste caso granulado de madeira) consegue um micro-ambiente mais adequado às suas necessidades térmicas e não precisam de adaptar a sua anatomia às temperaturas mais baixas.

Para nós os desgraçados sem cauda, só resta agasalhar-se!

"Será que dá pums"?

“As cobras dão pums?”
Foto de Ethan Kocak (Fonte)
Parece uma pergunta que o Bart Simpson faria numa aula de Biologia, e foi de facto esta pergunta de um adolescente ao seu irmão biólogo que desencadeou um rebuliço entre a comunidade científica no Twitter com a hashtag #doesitfart.
E dessa discussão saiu o livro “Does it fart?“, de Nick Caruso e Dani Rabaiotti (com contribuições de cientistas e criadores da Twitterosfera) e ilustrações de Ethan Kocac.
Neste livro encontra respostas científicas para questões tão importantes como:
– Que animais dão pums?
– Porque é que as ameijoas arrotam mas não dão pums?
– Porque é que os das hienas cheiram particularmente mal?
– O que é um pum, afinal?
Neste livro encontrará tudo aquilo que sempre quis saber (ou não) sobre a flatulência animal e é  prenda perfeita para aquela pessoas que gostam de biologia, animais, têm sentido de humor e tem a mania que sabem tudo.
Acho que é um livro ideal para mim!