Amar os animais, decadência civilizacional ou obrigação cristã?

São Francisco e o logo de Gubbio – Cristoforo di Bindoccio e Meo di Pero, sec. XIV

Foi com surpresa que muitos receberam as palavras do Bispo do Porto, Manuel Linda, que considerou o “apego a um qualquer animal de estimação, típico das sociedades decadentes”, sugerindo que este vínculo estaria a substituir a ligação entre pais e filhos. Seria fora do tópico deste blog elaborar sobre aquilo que este bispo em particular deveria antes considerar “decadente” (vide aqui, aqui, ou aqui), mas será porventura pertinente analisarmos que cabimento terão estas afirmações à luz da actual doutrina católica.

O texto do Bispo cujo corolário foi o incendiário tweet, relatava o seguinte :

(…) vi o que nunca tinha presenciado «ao vivo»: um homem e uma mulher, na casa dos trinta, empurrando, cada um deles, um carrinho onde não iam bebés, mas… cães. E como se fosse pouco, à noitinha, mais outra cena: dois atletas em bicicleta, cada uma delas com atrelado. Porque me chamou a atenção o perigo que corriam as crianças, fixei-me melhor: afinal, não eram miúdos, mas… outros dois cães. “Adorarão animais”, dizia o Cura d’Ars. Para desgraça de quem troca a humanidade pela animalidade.

O polémico tweet, de 12 de Outubro de 2022

Esta visão parece estar em linha com a última revisão do catecismo oficial da Igreja Católica (1993), levada a cabo pelo teólogo alemão (e Papa emérito Bento XVI) Joseph Ratzinger, que estipula: “[devemos] amar os animais, mas não deveria desviar-se para eles o afecto só devido às pessoas”, acrescentando que é “indigno gastar com eles somas que deveriam, prioritariamente, aliviar a miséria dos homens”. O seu sucessor, Francisco, também se manifestou contra as pessoas que alimentam animais de rua, sem se preocuparem com os seus vizinhos. É assim clara a posição da Igreja: deveremos priorizar sempre os humanos em detrimento dos animais, como alvos de afecto, caridade e compaixão. Esta priorização reflecte a ideia aristotélica da existência de uma scala naturae, na qual os humanos estariam acima dos animais (e logo abaixo dos santos).

Contudo, esta postura assenta numa falsa dicotomia. A caridade e compaixão pelos animais não pressupõe voltar as costas aos nossos conspecíficos humanos. E a discussão da razão pela qual havemos de demonstrar compaixão pelos animais e não pelos humanos não é muito diferente de muitas outras discussões estéreis acerca de quem seria mais ético e prioritário ajudar: as crianças ou os idosos? As mães solteiras ou as de famílias numerosas? Minorias étnicas ou da comunidade LGBT+? Também é frequente ouvirmos políticos populistas recorrerem a esta falácia, dizendo que os apoios aos mais desfavorecidos subtraem meios para a polícia, os hospitais, etc. Mas tais são, reitero, falsas dicotomias. A este propósito, lembro-me muito da frase que Bernard Rollin usava frequentemente e que tinha sido proferida de forma espontânea por uma sua aluna: “morality is not a single-shot shotgun”. Não se pode esperar de nós humanos, animais naturalmente empáticos, que expressemos essa empatia de uma forma estrita. Se somos verdadeiramente empáticos, isto é, se essa é uma motivação intrínseca que influencia o nosso comportamento, sê-lo-emos com a vizinha, com as pessoas que vemos sofrer na televisão e com os animais da nossa rua. Provavelmente de forma incoerente, intermitente e mal estruturada, mas nunca ‘sintonizada para um só canal’. Também nisto revelamos a nossa humanidade.

Será assim para a a maioria das pessoas evidente que não é por termos animais de estimação que não teremos filhos (ou vice-versa) ou que o amor dedicado aos animais afectará negativamente o vínculo com os os nossos filhos (ou vice-versa), salvas as devidas distâncias, obviamente. Arriscaria dizer, ainda que ateu convicto, que na questão do afecto se opera um verdadeiro “milagre da multiplicação”: quanto mais praticamos a empatia, a caridade ou a compaixão, mais teremos para dar, seja qual for a espécie.

Mas voltemos à posição oficial da Igreja relativamente às nossas obrigações para com os animais. É da tradição judaico-cristã atribuir ao ser humano um papel de domínio sobre a Criação (Genesis 1:26-30), sendo esta uma posição claramente antropocêntrica. Contudo, como noutros temas de índole religiosa, existem várias abordagens sobre como entender e exercer esse “domínio”. Duas perspectivas relevantes que aqui emergem são a do despotismo e a da custódia sobre a Natureza. A visão do despotismo assenta no pressuposto que a Natureza, incluindo os animais, foi criada por Deus para servir os humanos, não tendo outro valor que não aquele dado pelos humanos, os únicos a terem uma alma imortal e, assim, valor intrínseco. Esta perspectiva fundamenta-se, mais notoriamente, nas opiniões expressas pelos Doutores da Igreja Católica Agostinho de Hipona (Séc. IV) e Tomás de Aquino (Séc. XIII), embora este último aceitasse que se pudessem amar as criaturas irracionais pela caridade, para honra de Deus e pelo bem que as mesmas podem constituir para o próximo. Ademais, na sua Summa contra gentiles, considera que os homens se devem abster de serem cruéis com os animais de modo a “retirar do homem pensamentos de crueldade para com os seus semelhantes”. Séculos depois, Immanuel Kant expressaria uma versão secular desta mesma visão.

A benção dos animais, no dia de São Francisco de Assis (fonte)

Hoje, a interpretação mais consensual do domínio dos humanos sobre a Natureza é que o lugar do ‘Homem’ é o de zelar pela obra de Deus, tendo custódia desta, sendo sua responsabilidade respeitar a vida sob todas as formas. João Crisóstomo (séc. IV e V), Doutor da Igreja, afirmou que “Os santos são extremamente amorosos e gentis com a humanidade e também com os animais (…) Certamente devemos ser muito bondosos e amáveis com eles por muitas razões, mas, acima de tudo, porque eles têm a mesma origem que nós”.

Concluindo, a doutrina cristã de custódia e obrigação de cuidar dos animais e restante natureza tem hoje primazia sobre a visão despótica. Tal está bem patente na filosofia da ‘Reverência pela Vida’ do teólogo e Nobel da Paz Albert Schweitzer, bem como nas posições dos mais recentes pontífices à frente da Igreja Católica, surgindo habitualmente contextualizada numa perspectiva mais abrangente de respeito e referência por toda a Criação, fortemente influenciada por Francisco de Assis (séc. XII-XIII). É do próprio a afirmação “Não magoar os nossos humildes irmãos [os animais] é o nosso primeiro dever para com eles, mas parar aí não é suficiente. Temos uma missão mais elevada: servi-los sempre que eles necessitem”. Não me parece que o Bispo Linda esteja a par disto.

É desejável termos uma atitude positiva perante a experimentação animal?

A questão é motivada por um artigo publicado recentemente na revista JALAAS: Attitudes Toward Animal Research Among Medical Students in the United States por David Q Beversdorf e Nellie R Adams.

Os autores recrutaram membros da Academia Americana de Neurologia para preencherem um questionário. 168 alunos responderam ao questionário, expressando a sua concordância ou discordância com um conjunto de 14 declarações de pendor positivo ou negativo sobre experimentação animal. Depois, foi-lhes dada a oportunidade de assistirem a um vídeo sobre experimentação animal e convidados a preencherem o mesmo questionário novamente, o que 108 alunos fizeram. Na caixa de texto abaixo à direita, podem-se ver exemplos das declarações apresentadas aos alunos.

Depois de assistirem ao vídeo, os alunos foram ligeiramente mais favoráveis à experimentação animal: a pontuação passou de uma média de 4,0 para uma média de 4,1. (Uma pontuação próxima a 5 mostra uma atitude positiva em relação à pesquisa com animais, uma pontuação próxima a 1 é uma atitude negativa). Os autores não tiram muito proveito dessa mudança (não surpreendentemente, é tão pequena que realmente não importa), mas discutem a observação de que “um número substancial de estudantes de medicina expressam desacordo com declarações que descrevem componentes essenciais do desenvolvimento de medicamentos. Como descrito acima, 13,2% discordaram com a declaração ‘Novos procedimentos cirúrgicos devem ser testados sem animais antes de serem usados em pessoas “, e 7,2% discordaram que ‘Novos medicamentos devem ser testados em animais antes de serem usados nas pessoas.”

Eles continuam, concluindo que “as mudanças de atitudes após a observação do vídeo sugerem que atitudes negativas podem ser mudadas e que a educação médica pode ter um papel nesse cenário ”. Quem quiser ler o artigo completo, pode solicitar uma cópia dos autores no ResearchGate.

Numerosos estudos com amostras maiores e melhores métodos mediram a atitude de diferentes públicos em relação à pesquisa animal, mas o presente estudo é novo na escolha de um público muito específico: estudantes de medicina. O meu principal problema com a forma como o estudo foi conduzido é a sua unilateralidade, patente na forma como foi delinado. O vídeo em questão é produzido pela Americans for Medical Progress, uma organização para a defesa de investigação biomédica e, em particular, do uso de animais nessa investigação. Embora eu ache o vídeo bastante razoável, ele definitivamente representa um uso seletivo da informação. Isto não é surpreendente, pois a organização por trás dela está trabalhando a favor do apoio público ao estudo biomédico com animais.

Mas deveria a educação médica ter como um dos seus objetivos tornar os alunos mais favoráveis ao uso de animais em investigação? Realmente não estou convencida de que isso deva ser uma prioridade. Acho que é crucial que os estudantes de medicina tenham uma compreensão razoável do papel dos animais na investigação biomédica e no desenvolvimento de medicamentos. Mas isso também inclui uma compreensão dos desafios críticos relativamente a quão útil é essa investigação. E uma compreensão do porquê de ser uma questão controversa.

Não há vídeo equivalente defendendo de maneira comparável a substituição do uso animais em investigação biomédica. Pessoas como os autores do livro Animal Animal Experimentation: Working Towards a Paradigm Change provavelmente seriam capazes de produzir uma, e seria tão (razoavelmente)  credível e equilibrada (não muito) quanto o vídeo da AMP.

Mas infelizmente, nenhum dos dois abordam a questão mais crítica no momento da investigação com animais: como delinear estudos de forma a produzir resultados confiáveis e transponíveis para seres humanos. Ninguém melhor para explicar isso do que Professor Malcolm Macleod da Universidade de Edinburgo.

Entrevista durante o II Encontro de Bioética da UTAD

No passado dia 19 de Novembro, fui convidado a fazer uma apresentação sobre ética da experimentação animal, a propósito do II Encontro de Bioética na UTAD. 
Na altura fizeram-me uma breve entrevista, onde me perguntaram sobre o tema em si e a sua relação com a agropecuária. Na altura fiquei um pouco surpreso mas agora que saiu a entrevista percebi que tem a ver com o âmbito do projecto para qual esta e outras entrevistas têm sido feitas. 
Fica aqui o registo.

Peixes (e corações) congelados?

Vários canais noticiosos deram hoje a notícia que no Japão decoraram um ringue de patinagem no gelo congelando cerca de 5000 animais no seu interior, visíveis à superfície. 

Fotografia tirada durante a fase de preparação do novo ringue. Fonte.

Segundo a CNN, esta e outras fotografias foram postadas nas redes sociais pelo empresa que explora o ringue com os comentários (supostamente) humorísticos “socorro…estou-me a afogar, a sufocar…”. Os promotores desta iniciativa dizem que a ideia era de criar a ilusão de patinar no oceano, tornando esta experiência mais divertida e educativa.

Aparte o mau gosto – sempre subjectivo, considerando que não tem faltado gente que queira aqui patinar – que questões éticas levanta este tipo de acções? Não só já estavam todos os peixes mortos aquando da sua congelação no ringue, como na verdade quase todos os vários milhões (biliões?) de peixes pescados diariamente morre por asfixia, sem que a maioria das pessoas pondere esse facto quando compra e consome peixe. Então por que razão devemos entender o uso dado a estes animais como moralmente distinto? 
Segundo uma linha de pensamento utilitarista poder-se-á justificar a pesca mas não o uso de peixes para fins de entretenimento, porque comer é essencial para a nossa sobrevivência, ao passo que nem o entretenimento (e este em particular) é igualmente essencial nem a existência dos peixes é necessária para que se possa patinar num ringue. Mas e se fossem utilizados animais excedentários da pesca, que ninguém tivesse comprado mas que não tinham sido pescados propositadamente para este fim? Faria alguma diferença? Poderá uma posição utilitarista justificar que se tirasse alguma utilidade de animais que de qualquer forma teriam morrido? Provavelmente, mas essa utilidade e a mensagem que estamos a enviar em cada situação destas devem ser analisadas caso-a-caso.
Seguindo uma visão contratualista, o facto de muitas pessoas ficarem afectadas por este e outros tipos de instrumentalização da vida animal poderá ser justificação suficiente para não o fazer. Mas a questão persiste, haverá algo mais para além das questões de bem-estar animal (que se presume não ter estado em causa), da avaliação da necessidade destas iniciativas, do aproveitamento de recursos ou da opinião dos demais cidadãos para que se ponha em causa a moralidade destas actividades? 
Se mais outra virtude não tiver, a presença asfixiante destes animais debaixo dos nossos pés evoca os outros que morreram igualmente asfixiados, ainda que longe dos nossos olhos, mas que não nos deve ser indiferente.
Já eu não tenho uma posição definida em absoluto, mas tendo a não concordar com usos de animais que resultem numa instrumentalização excessiva, despropositada e desnecessária. Parece-me ser este o caso. Chamem-lhe ética de virtudes, se quiserem.

Sócrates e o paradoxo da carne

Um artigo de Peter Sandøe, filósofo e colaborador do Animalogos, traduzido por Anna Olsson e Nuno Franco.  

Adaptado da capa do livro de Hal Herzog, “Some we
love, some we hate, some we eat: Why It’s So Hard
to Think Straight About Animals”

No diálogo “Protágoras”, Platão faz o seu personagem principal, Sócrates, afirmar que ninguém acredita haver um caminho melhor e diferente e simultaneamente continuar outro anteriormente iniciado. Este é o conhecido argumento socrático de que ninguém fará propositadamente algo moralmente condenável. Assim, comportamentos aparentemente reprováveis do ponto de vista ético são apenas, segundo Sócrates, uma expressão de ignorância.


Desta forma, Sócrates nega que uma pessoa possa estar numa situação em que saiba qual a coisa certa a fazer, mas que por conveniência ou proveito próprio aja contra as suas próprias convicções. Essa pessoa estaria em conflito interior, mas segundo Sócrates a felicidade não é incompatível com uma vida em conflito consigo mesmo. Uma vez que ninguém por seu livre arbítrio iria escolher ser infeliz, será incompatível com os interesses bem informados de uma pessoa não agir de acordo com suas convicções. Portanto, uma aparentemente falta de força de vontade é, na realidade, uma expressão de ignorância.

Numa perspectiva contemporânea, o argumento de Sócrates parece ingénuo. Inspirados por pensadores como Schopenhauer e Freud, muitos já não vêem os seres humanos como indivíduos fundamentalmente racionais e unicamente guiados pelo seu ideal do que será mais correcto, devidamente fundamentado em conhecimento ideal. Pelo contrário, é amplamente entendido que os seres humanos são, em grande medida vítimas dos seus impulsos. Na melhor das circunstâncias, as pessoas poderão ser capazes de controlar esses impulsos de modo a agirem civilizadamente. Mas a sua força de vontade é fraca e não são precisas muitas tentações para as pessoas pararem de se preocupar com o que acham ser correcto e razoável.

Desde o final dos 1950s que uma linha de investigação em psicologia tem desenvolvido estudos que parecem apoiar parcialmente a perspectiva de Sócrates, mas de uma forma que dificilmente segue o espírito da mesma. Esta pesquisa tem como objectivo demonstrar que quando as pessoas fazem coisas que parecem ir contra a sua consciência, frequentemente redefinem o seu entendimento da realidade, evitando assim serem confrontadas com a discrepância entre ideal e realidade.

Os psicólogos responsáveis por estes estudos parecem concordar com Sócrates que para qualquer pessoa é intolerável estar em conflito interior. Assim, precisamos contornar o que é entendido como “dissonância cognitiva”, algo que ocorre, por exemplo, quando valores e acções não correspondem. Contrariamente à opinião de Sócrates, de acordo com esta teoria da psicologia, muitas pessoas mantêm a harmonia adaptando os seus valores às suas acções, ao invés de adaptarem as suas acções aos seus valores, como Sócrates teria argumentado.

Nos últimos anos, a nossa relação com os animais tem sido objecto de atenção nesta linha de investigação. Aqui, os psicólogos têm definido um problema a que denominam de “o paradoxo da carne”. Este é, por exemplo, expresso no número de pessoas que, por um lado, gostam de animais – e são por exemplo capazes de manter um gato pelo qual farão tudo ao seu alcance para cuidar – mas que, por outro lado, comem carne de animais que habitualmente vivem em condições que não achariam aceitáveis para um gato ou um cão.

Uma série de experiências psicológicas têm sido realizadas, procurando entender como é que comedores de carne lidam com este paradoxo. Numa dessas experiências, levadas a cabo por um grupo de investigadores australianos, cerca de 100 participantes foram divididos em dois grupos. A metade destes foi oferecido um produto à base de carne seca e aos restantes castanhas de caju torradas.

Aos participantes foi transmitido que a experiência tinha a ver com as preferências dos consumidores de produtos alimentares e foi-lhes assim pedido que preenchessem um questionário sobre o que achavam do lanche que tinham comido. Mas foram ainda informados que deveriam preencher um segundo questionário que não tinha nada a ver com a experiência em questão. O primeiro questionário foi na realidade realizado com a intenção de distrair os participantes do estudo em questão, desenvolvido em torno do segundo questionário.

Neste segundo questionário os participantes foram sondados quanto à sua percepção e atitudes relativamente a um determinado número de espécies animais, uma das quais a vaca. O resultado foi que os que haviam comido carne expressaram em maior medida a opinião de que as vacas merecem consideração moral, em comparação com aqueles que tinham comido castanha de caju. A capacidade da vaca para sofrer também foi em maior medida avaliada como sendo menor pelos participantes que tinham comido carne, em comparação com o outro grupo.

O resultado desta experiência, em linha com muitos outros estudos semelhantes, é que comer carne faz as pessoas inconscientemente mudarem sua visão do estatuto moral dos animais que comem, bem como da sua capacidade mental. O velho ditado de que somos o que comemos, aparentemente, chega também à esfera moral.

Se alguém quiser mudar hábitos de consumo de modo a que estes sejam melhores para os animais, ao que parece terá de lidar com poderosas tendências psicológicas. Não parece ser suficiente apelar ao facto que vacas, porcos e galinhas são tão animais como os cães e os gatos, ou tentar divulgar resultados da investigação sobre a capacidade mental dos animais. Estas iniciativas podem em grande medida ser vistas como ameaças das quais muitos se tentarão proteger através deste tipo de mecanismos psicológicos.

Em vez de apelar à consciência e racionalidade, poderá ser melhor apelar directamente a características alimentares. Se o bem-estar animal pode ser atingido através de produtos com um gosto melhor ou esteticamente mais agradáveis do que os produtos convencionais, talvez esta seja uma melhor abordagem. Isto é corroborado pelo grande sucesso de produtos orgânicos, que em mais de que uma forma garantem que o consumidor não acba com um amargo na boca.

O seu animal de estimação pode salvar vidas!

A propósito da reportagem desta semana no suplemento P3 do Público sobre o Banco de Sangue Animal (BSA) damos a conhecer esta iniciativa do médico veterinário Rui Ferreira, doutorado em medicina transfusional de cães.  
O site do BSA está disponível em Português e Castelhano,
e há já uma app para Android para clínicos
O BSA foi inaugurado em 2011, encontrando-se nas instalações do Hospital Veterinário da Universidade do Porto, sendo o segundo do género em Portugal. Até ao surgimento destes bancos de sangue, as dádivas costumavam ser ad hoc, quando surgia uma necessidade, mas nem sempre isto era possível, pelo que frequentemente se perdiam vidas animais. Hoje o BSA conta com cerca de 500 cães e 300-350 gatos dadores – que em troca têm vacinas e análises gratuitas – sendo já um dos melhores da Europa.  Dispõe de um serviço de urgência 24h, e graças a uma rede de clínicas, plasma e outros hemoderivados podem ser disponibilizado no espaço de uma hora em todo o país.

Tal foi o sucesso que Rui Ferreira foi inclusive convidado a criar um banco de sangue similar em na Catalunha,  inaugurado no mês passado, exportando ainda para países como Itália, França ou Inglaterra.

Reportagem RTP, de Outubro de 2015
Estima-se que as contribuições destes dadores – que fora o transiente desconforto da picada não sofrem qualquer impacto negativo na sua saúde e bem-estar – permitiram já salvar à volta de 10 mil animais nos últimos cinco anos. 
Não posso contudo deixar de fazer uma brevíssima análise ética. No prisma da maior parte das principais correntes da ética animal – como a utilitarista, contractualista, ou relacional – tem este tipo de iniciativas o maior mérito, dadas as vantagens para todos os intervenientes. 
Contudo, de um ponto de vista dos direitos dos animais, stricto sensu, não pode ser a dádiva de sangue vista como uma violação da integridade e dignidade dos animais dadores, uma vez que não o fazem por escolha sua, ou com o seu consentimento? 
No título deste post – ao qual poderia ter incluído qualquer coisa como “mas o seu animal nem sabe” ou “sem o seu consentimento”, caso o propósito fosse denunciar esta prática, que não é o caso – há um antropomorfismo latente, que no artigo do Público é aliás mais manifesto, ao classificar estes animais como “voluntários”. É uma antropomorfização descabida aplicar os epítetos de “voluntários” ou “heróis” a estes animais, mas também conceitos como “saber”, “consentir”, ou mesmo “doador” com o significado que habitualmente têm para os humanos. O próprio conceito de “dignidade” é muitas vezes para mim difícil de definir, quando aplicada aos animais, pois é e será sempre um conceito humano projectado noutras espécies. 
Assim sendo, e apesar dos méritos dos bancos de sangue animal serem aparentemente reconhecidos pela generalidade das pessoas, nas quais me incluo, intriga-me o que achará Tom Regan a este respeito, ou os seus seguidores. 

Quais os limites para o uso de animais no turismo ?

A forma como os animais são tratados em contexto de viagens e turismo evoca reações fortes e é um tema que os estudantes de bem-estar animal têm abordado frequentemente aqui no Animalogos, em posts sobre comércio ilegal de animais de outros continentes e passeios de elefante em destinos de turismo. Num país diferente pode ser difícil distinguir entre interações com animais que podem ser interessantes para o viajante e benéficas para o animal, e práticas que ameaçam bem-estar animal e biodiversidade, tendo em conta diferenças culturais e falta de informação e conhecimento. Claro que a responsabilidade não deve ser só de quem viaja mas também de quem organiza as viagens – e já começa a haver trabalho feito no terreno. Desde 2013, que a associação inglesa de agências de viagem ABTA tem recomendações para bem-estar animal no contexto de turismo
Recentemente, ANVR – que é a associação equivalente na Holanda – lançou o mesmo tipo de recomendações, desenvolvidas em colaboração com a World Animal Protection. Estes documentos apresentam informação sobre bem-estar animal, sobre situações em que este pode ser posto em causa e sobre legislação. Também definem práticas inaceitáveis em três domínios importantes: 1) atrações turísticas com animais de cativeiro, 2) atrações culturais envolvendo animais e 3) atividades turísticas com animais no meio natural:

1. Práticas inaceitáveis em atrações turísticas com animais de cativeiro

• Exibir animais em restaurantes ou espaços de entretenimento, envolvendo más práticas.
• Criação ou comércio de animais em Santuários ou Orfanatos.
• Animais usados como adereços fotográficos, envolvendo más práticas.
• Atuações de animais, tendo por base comportamentos não-naturais e espectáculos onde os métodos de treino comprometem o bem-estar.
• Passeios de elefante e outras atividades que envolvem interação direta com elefantes.
• Caça de troféu.
• Polo com elefantes.
• Passeios de avestruz.
• Parques zoológicos não licenciados.
• Cirurgia ou modificação física da pele, tecidos, dentes ou ossos de um animal,
excepto para fins terapêuticos.
• Formas de eutanásia que não cumpram com as melhores práticas.

2. Práticas inaceitáveis envolvendo animais em eventos e atividades culturais

• Animais utilizados para mendigar (e.g.ursos dançarinos, serpentes encantadas ou primatas).
• Lutas com Ursos (Bear baiting).
• Indústria de bílis de urso.
• Poços para Ursos.
• Corridas e largadas de Touros.
• Lutas de galos.
• Criação de répteis, envolvendo más práticas.
• Lutas de crocodilos.
• Criação de tigres.
• Cirurgia ou modificação física da pele, tecidos, dentes ou ossos de um animal,
excepto para fins terapêuticos.

3. Práticas inaceitáveis em atividades turísticas com animais no meio natural

• Recolha não regulamentada de animais e plantas silvestres.
• Contacto direto e alimentação de animais.silvestres.
• Interação física com baleias selvagens e golfinhos iniciada por humanos.
• Passear leões, tigres ou quaisquer outros gatos selvagens.
• Comércio e venda de produtos de animais selvagens em perigo de extinção.
• Caça de Troféu.
• O uso de animais selvagens como adereços fotográficos sob qualquer forma, tais como selfies.

Conferencia sobre Ética e o Futuro da Medicina Veterinária

A Universidade de Utrecht, na Holanda, organiza de 19 a 20 de Maio de 2016 a conferência “Ethics and the future Veterinary Professional“. À luz dos avanços da Biomedicina, do interesse crescente do público pelas questoes de Bem-estar animal e dos desafios colocados por fenómenos globais como as alteraçoes climáticas, esta reunião pretende debater o papel da profissão veterinária num mundo em rápida mudança. Mais informaçoes podem ser encontradas aqui.

Esta é a terceira conferência internacional sobre ética veterinária a realizar-se na Europa. A primeira teve lugar em 2011, no Royal College of Physicians, em Londres e foi organizada pelo Royal Veterinary College. Foi uma reunião generalista e que abordou numerosos temas, como demos conta, na altura, aqui no animalogos. Desse evento resultou o livro Veterinary and Animal Ethics, da UFAW Animal Welfare Series.

Mais recentemente, em 2015, O Messerli Research Institute (Faculdade de Medicina Veterinária, Univeridade de Viena) organizou a conferência VETHICS FOR VETS – Animal Welfare and Veterinary Medicine, que se debruçou sobre as questoes éticas que os médicos veterinários oficiais enfrentam.

Food Futures – congresso da EurSAFE 2016 no Porto!


Submissão de trabalhos até dia 25 de Janeiro de 2016.
  • Temas:
    • Política alimentar, democracia, regulação e direitos individuais
    • Sustentabilidade, ambiente e produção alimentar
    • Ética e bem-estar animal 
    • Perspectivas críticas sobre a alimentação e a experiência humana (migração, cultura, assimilação cultural, resistência e dinâmicas sociais) 
    • Cenários prospectivos utópicos holísticos 
    • Modos de combate ao desperdício alimentar; 
    • Ética em nutrição e política alimentar. 

Mais informação no website do congresso.

Porque é o presépio vivo mais ético do que o circo?

Natal é tempo de circo em Portugal. 

Tempo então de palhaços, acrobatas, cavalos e…tigresInfelizmente, ainda é comum encontrarmos estes últimos nos circos portugueses, ao contrário de Inglaterra, por exemplo, onde a partir deste ano os circos estão proibidos de incluir animais de espécies selvagens nos espetáculos.

Ringling brothers over the top tiger

Mas porque será mais problemático ter um tigre do que um cão, ou pior ter um zebra do que um cavalo numa companhia de circo? A resposta está numa única palavra: domesticação. Cães e cavalos são versões domesticadas de espécies selvagens, ou seja, que durante um processo que levou milhares de anos e gerações de animais houve uma adaptação gradual à vida em comunidade com o ser humano. Como resultado deste processo, os cavalos e os cães de hoje têm um comportamento mais compatível com treino humano do que os equídeos e canídeos selvagens. São mais calmos e não se assustam tão facilmente.

E as suas características são também mais compatíveis com as condições de alojamento e maneio que podemos oferecer. Se viramos esta questão ao contrário e perguntamos quais os animais mais mal adaptados para uma vida em cativeiro, a resposta clássica é: os grandes carnívoros. São os animais que associamos com mais comportamentos anormais e pior bem-estar nos jardins zoológicos. Num estudo agora clássico, as investigadoras Georgia Mason e Ros Clubb tentaram perceber as características dos grandes carnívoros que os fazem tão pouco preparados param uma vida em cativeiro. Analisaram dados de estudos científicos de 35 espécies e encontraram um fator que, mais do que qualquer outro, determina se os animais terão problemas em cativeiro: o tamanho do seu território natural. Quanto maior o território, maiores ou mais frequentes os problemas com comportamento estereotipado e mortalidade infantil em cativeiro. E o tigre é uma das espécies com maiores territórios.


Szopka-Wyszków-3


Ao contrário dos circos, os presépios portugueses apenas contêm animais domésticos. Embora Papa Bento XVI considere a vaca e o burro no presépio uma invenção moderna, do ponto de vista de ética e biologia animal fazem muito mais sentido do que os tigres no circo!