O papel do Médico Veterinário na Tourada à Portuguesa

Cinco anos passados, trago à luz um artigo, publicado em 2010 na Veterinária Atual, onde exponho a minha visão sobre o papel da classe médica veterinária na Tourada à Portuguesa. À excepção da legislação (o Decreto Regulamentar n.º 62/91 de 29 de Novembro deu lugar ao Decreto-Lei n.º 89/2014 de 11 de Junho) o artigo é uma cópia fiel do orginal.

Pablo Picasso (1881-1973)
Corrida de Toiros: A Morte do Toureiro (1933)
Óleo sobre madeira, 31,2 x 40,3 cm
Musée Picasso, Paris
Ver descrição aqui.

Resumo

A corrida de touros tem surgido, nos últimos anos, como um tema fracturante na sociedade portuguesa. Se os activistas dos direitos dos animais defendem que o touro deve ser poupado ao sofrimento da lide, os aficionados contestam que é essa mesma lide que permite a sobrevivência do touro bravo (ou seja, da sua raça). A classe médico-veterinária está, por inerência das suas responsabilidades, envolvida na actividade tauromáquica e nunca tomou – que seja do meu conhecimento – nenhuma posição concertada na mediação deste confito. No entanto, se permanecermos alheados da discussão pública, arriscamo-nos a ser ultrapassados pelos acontecimentos e a ver o papel da nossa classe diminuido ou mesmo descredibilizado. Este artigo pretende enquadrar o papel do Médico Veterinário na Tourada à Portuguesa e dessa forma contribuir para uma reflexão mais aprofundada sobre esta matéria.

Introdução

A questão da legitimidade moral do espectáculo tauromático (vulgo corrida de touros ou tourada) não é nova. Ela remonta às origens da própria actividade (ERCS 2008) e corresponde a um choque sociológico enraizado onde colidem duas formas distintas de entender a ética animal. E se a visão dos activistas é, por vezes, reducionista pois concentra toda a actividade tauromáquica no sofrimento do touro na arena, a verdade é que defender o status quo porque a tourada é uma tradição secular (ou porque evita a extinção do touro bravo) corresponde a uma igual simplificação de raciocínio. Certo é que, na defesa do touro bravo, não basta esgrimir argumentos de um e doutro lado da barricada na esperança que o adversário soçobre. Enquanto a discussão sobre as touradas estiver tão polarizada em grupos de interesse – e manipulada pelos media – não é crível que o principal interessado na contenda, o touro, saia beneficiado. É, pois, necessário procurar um debate sério capaz de reunir consensos, e aqui deixo uma primeira contribuição.

A tourada contextualizada

Desde o mediático caso de Barrancos no virar do século (Capucha 2002), que o movimento anti-touradas tem merecido especial notoriedade entre a opinião pública nacional sem que isso signifique necessariamente que a corrida de touros esteja a perder popularidade. As estatísticas são, neste sentido, contraditórias (Público 2009). No entanto, não podem os aficionados ignorar o fenómeno social do activismo pró-animal como o fizeram no passado. Uma sociedade democrática assenta as suas premissas básicas num pluralismo de opiniões que é preciso compreender. A profissão veterinária é ela própria um bom exemplo: de masculina e rural passou em duas décadas para tendencialmente feminina e urbana, o que traz consigo uma riqueza de opiniões que importa ouvir. O pequeno, mas significativo, número de autarquias que proíbe os espectáculos tauromáquicos nos espaços por si tutelados, é bem a imagem de que a festa brava se encontra numa encruzilhada: ou continua surda aos gritos de revolta e assiste imóvel ao crescente mediatismo dos argumentos das organizações zoófilas (mesmo que, por vezes, desprovidos de profundidade) ou oferece o dorso ao ferro e promove a reformulação de algumas das práticas que constituem a lide.

Todos nós sabemos que a actividade tauromáquica é muito mais do que a lide. É um modo de vida que, dentro do mesmo raciocínio plural, merece ser respeitado. Mas, mesmo que tenhamos em consideração os anos de vida livre de que o touro goza, a defesa da tourada torna-se frágil quando analisada em termos de bem-estar animal. Embora a tourada goze de protecção jurídica (Decreto-Lei n.º 89/2014 de 11 de Junho), o “óbvio sofrimento dos touros” (Pereira 2003) não pode ser ignorado. O regime de excepção previsto pela lei nacional (artigo 1.º, n.º 3, alínea b), da Lei 92/95 de 2 de Setembro) legaliza o uso de instrumentos perfurantes nas touradas mas não legitima todo o tipo de asserções. Afirmar, em directo na televisão nacional, que o touro na arena não sofre (João Palha Ribeiro Telles, SIC, Aqui & Agora, 23 de Abril de 2009) é uma forma pouco séria de discutir a dimensão ética da corrida. O sofrimento existe, faz parte da faena e só assumindo este facto inelutável pode a indústria tauromáquica encarar de frente aqueles que tão agressivamente a acometem.

Apesar do bem-estar do touro ser comprometido desde a sua selecção para a lide até até ao abate, isso não significa que não possam ser introduzidas melhorias. Tendo em conta que a tourada não visa torturar o animal, é do interesse dos próprios aficionados que seja dado um primeiro passo no sentido de minorar a ansiedade e a dor a que o touro é sujeito no dia da lide. O problema é que, no momento presente, os detractores da indústria tauromáquica actuam como agentes agressores mais interessados em extinguir o seu modo de vida do que em discutir o que pode ser feito em matéria de consensos. Neste aspecto em particular, deve a classe medico-veterinária tomar a liderança na prossução de medidas concretas e pró-activas que beneficiem todos os intervenientes na corrida, particularmente o touro.

O papel do Médico Veterinário

O Médico Veterinário constitui o único interveniente nas actividades tauromáquicas que, gozando de absoluta independência de actuação e obedecendo a códigos de conduta moral, procura conciliar o respeito pelos interesses humanos com a defesa da saúde e bem-estar animais. Esta posição, de uma aparente ambivalência, expõe mais facilmente o Médico Veterinário ao criticismo público. Por isso é que, quer sejamos aficionados ou apologistas dos direitos dos animais – ou mesmo na ausência de opinião formada – não podemos ignorar o fenómeno social das touradas. Como profissionais de saúde animal devemos actuar à margem da polémica, procurando reunir a melhor evidência científica e assim contribuir para a construção de uma opinião pública informada e uma prática tauromáquica mais coerente com os valores da sociedade em geral. E por onde começar? Seguem-se algumas sugestões, que não pretendem ser mais do que pontos de reflexão para uma posterior discussão:

  1.  Promover uma maior transparência da Corrida:O Médico Veterinário assume um papel central nos espectáculos tauromáquicos, onde lhe compete assessorar o director da corrida, conforme o previsto pelo supracitado Decreto-Lei n.º 89/2014. O seu juízo é soberano e não podem restar dúvidas nem sobre a sua conduta nem sobre a motivação das suas decisões. Como muitos dos ataques sofridos pela tourada são fruto da ignorância sobre os métodos utilizados nos bastidores da arena, urge promover uma maior transparência das práticas que fazem parte da corrida como o transporte, a desponta e a embolação. Adicionalmente, o Médico Veterinário pode contribuir para a introdução de medidas que permitam minorar o desconforto das reses (ver adiante).
  2. Investir em projectos de investigação em touros de lide: Os colegas investigadores – em especial nas áreas do comportamento e do bem-estar animal – têm nas corridas de touros um manancial de informação enorme e que está ainda por explorar. Aliás, muito está para fazer em quase todas as áreas das ciências veterinárias no que diz respeito ao touro bravo. Para se avançar neste sentido é necessário abrir a tourada a estudos científicos rigorosos e daí ser fundamental a colaboração com os colegas responsáveis pelas corridas. Existe, por exemplo, a crença, comum entre os aficionados, de que o touro tem de sentir dor para investir. Não será que o touro investe apesar de sentir dor e que aí reside a suposta bravura que os ganadeiros procuram alcançar?
  3. Introduzir o conceito de 3 R’s nas Corridas: O conceito dos 3’Rs (Reduction, Refinement, Replacement). foi introduzido no uso de animais de laboratório em investigação biomédica há mais de 50 anos (Russell & Burch 1959) e pode ser adaptado para o contexto da tourada. Estudos que visem refinar (Refinement) os métodos de desponta e embolação; de recolha, transporte e alojamento; do tempo que dista entre a lide e o abate. A procura de alternativas (Replacement) menos traumáticas às tradicionais bandarilhas e à prova da tenta. E a redução (Reduction) do número de animais lidados, do tempo da lide ou do número de ferros a que cada touro é sujeito. 
  4. Reforçar o papel dos Médicos Veterinários Taurinos: Aos colegas especialistas em touros de lide cabe a importante missão de comunicar a ciência à indústria ganadeira. Eles são a linha da frente no diálogo entre o conhecimento científico e a tradição popular e devem assumir um papel activo na educação dos ganadeiros e participar na desmistificação de algumas das crenças comuns entre os aficionados. Como confessa o colega e aficionado Joaquim Grave (2000), “o mundo dos touros é bastante fechado e enferma de alguns tabus”. A missão complica-se porque o jargão tauromáquico é pródigo em termos, como “humilhar do touro” ou “entrega ao sacrifício”, que podem suscitar interpretações erróneas ou desfasadas da ecologia do animal.
  5.  Promover a educação para os valores no ensino da Medicina Veterinária: O ensino pré-graduado em Medicina Veterinária deve previligiar não só a componente deontológica (códigos normativos) mas também o ensino da ética e do profissionalismo. É necessário fornecer aos alunos as ferramentas decisionais que lhes permitam compreender o pluralismo de opiniões da sociedade contemporânea e defender as suas próprias opções éticas. A abordagem a questões como qual deve ser o papel do Médico Veterinário na tourada ou qual a justificação moral para defender a sua atitude em relação aos touros de lide devem fazer parte da sua formação base.
  6.  Criar-se uma plataforma de discussão dentro da classe:  Este artigo constitui uma reflexão introdutória sobre os passos que a classe veterinária pode dar no sentido de se envolver de forma responsável na problemática social e ética das corridas de touros. Estou ciente que algumas das sugestões deixadas não colherão fácil aceitação, nem serão porventura as mais adequadas. Por isso seria útil que se criasse, no futuro próximo, uma plataforma de discussão no seio da nossa classe – em congressos, publicações escritas ou usando as tecnologias de informação – onde o papel do Médico Veterinário na tourada à Portuguesa seja debatido.

Considerações finais

As competências e responsabilidades inerentes à nossa profissão fazem do Médico Veterinário um interlocutor privilegiado na procura de soluções práticas para o conflito social dos espectáculos tauromáquicos. Não devemos assistir de braços cruzados ao desenrolar dos acontecimentos, esperando que sejam outros a decidir por nós. Se nada fizermos, seremos avaliados pela nossa inércia. A actividade tauromáquica faz parte da paisagem cultural (rural e urbana) do nosso país e cabe à sociedade a última palavra, decidindo se de medidas como as que aqui foram propostas resulta uma festa mais humana – e que merece ser defendida – ou, pelo contrário, menos autêntica – e talvez inaceitável. Só discutindo pontos discordantes podemos, em concreto, ir ao encontro do único ponto que todos parecem defender: os interesses do touro de lide.

Referências
Capucha, Luís (2002) “Barrancos na ribalta, ou a metáfora de um país em mudança”, Sociologia – Problemas e Práticas, n.º 39, pp. 9-38
ERCS (2008) “Deliberação 13/CONT-TV/2008”, Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Lisboa, 3 de Setembro de 2008
Grave, Joaquim (2000) Bravo! Lisboa: Oficina do Livro
Pereira, António Maria (2006) “Ética e Touradas”, Crítica: Revista de Filosofia, Acesso por: http://criticanarede.com/html/ed130.html, em 11 Nov. 2009
Público (2009) “Destaque – Tauromaquia”, Jornal Público, nº 6975, 08/05/2009, pp. 2-3
Russell, W.M.S. & Burch, R.L. (1959) The principles of humane experimental technique. London: Methuen

Este texto foi publicado originalmente como:

M. Magalhães-Sant’Ana (2010) “Haverá lugar a consensos na Tourada à Portuguesa? O papel do Médico Veterinário”. Veterinária Atual – Revista Profissional de Medicina Veterinária, 25: 32-33.

Animalogos em congresso


Há duas semanas estivemos no congresso de UFAW – Universities Federation for Animal Welfare em Zagreb. Ou mais corretamente, estive, porque ao contrário de há 2 anos em que estivemos todos presente, fui sozinha em representação dos três animalogantes, para apresentar o nosso trabalho sobre quantidade e qualidade de vida (mais sobre isso abaixo).

Desde o primeiro em que participei (2001, em Londres), considero os congressos de UFAW uma prioridade profissional por vários motivos. São sempre excelentes, focando um tema com relevância e pertinência, com palestrantes de renome internacional. São inspiradores, tanto pela qualidade das palestras como pela diversidade da participação. Aqui encontra-se não só académicos, mas pessoas de todo o tipo de organismos governamentais e não-governamentais na área de bem-estar animal. Quem quer saber mais concretamente do que foi falado no congresso, encontra um relato no Twitter do UFAW.

Na nossa apresentação abordamos o dilema de quantidade e qualidade de vida, com base em três exemplos: a (redução em) longevidade da vaca leiteira, as formas de criar vitelos machos de raças de produção de leite e a tensão entre redução e refinamento na experimentação animal. O trabalho resulta do desafio que aceitamos em 2013, de contribuir para o livro Dilemmas in Animal Welfare (CABI Publishing, 2014).

Além das palestras, consegui aproveitar um bocado da hora do almoço para visitar o Croatian Museum of Naïve Art e a sua coleção que não podia ser mais tematicamente relevante para um congresso onde a relação humano-animal está em enfoque.

Qual o dever primordial do médico veterinário: o animal, os colegas ou a sociedade?

Como se compara o Código Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários (CD-OMV) com outros códigos de conduta europeus? Uma revisão sistemática de 5 códigos veterinários, publicada esta semana no Veterinary Record, encontrou oito temas em comum mas também diferenҫas substanciais. Ouҫa o podcast, leia o artigo ou o Editorial.
Enquanto noutros códigos de conduta a principal preocupaҫão da profissão veterinária é a defesa do bem–estar animal, no CD-OMV o termo ‘bem-estar’ é apenas mencionado duas vezes nos artigos introdutórios (art.2º, art.4º), isto num documento com cerca de 7800 palavras. Nele não há qualquer referência a tópicos essenciais na defesa do bem-estar animal como eutanásia ou Cinco Liberdades.
Como se pode atestar pela figura que acompanha a versão impressa do artigo (clique para aumentar), os deveres para com os animais ocupam pouco mais de 1% do CD–OMV, o que parece manifestamente pouco quando comparado com os mais de 20% do código de conduta britânico (RVCS-CPC). Ao invés, mais de 30% do CD-OMV é dedicado aos deveres para com colegas veterinários e mais de 20% aos deveres para com a sociedade (valores normalizados a 100%). Estes resultados parecem reflectir uma tradiҫão contractualista e antropocêntrica da classe veterinária em Portugal, onde os animais têm um valor maioritariamente instrumental face aos valores, e interesses, humanos
 Por outro lado, o CD-OMV enfatiza a prevenҫão de má conduta profissional e não tanto a promoҫão de boa conduta. O uso de termos como ‘não é permitida’ (artigo 8º), ‘absolutamente interdito’ (art.9.º; art.50), ‘vedado’ (e.g. art.11º ; art.12º ; art.15º, art.16º), ‘atitudes reprováveis’ (art.28.º) ilustram bem o pendor negativo e condenatório do CD-OMV. Uma estratégia diferente parece ter sido adoptada pelo código de ética dinamarquês (DDD-EK) onde todas as disposiҫões obedecem à mesma fórmula positiva “é considerada boa prática [ética]…”. Isto permite capacitar os médicos veterinários dinamarqueses na promoҫão de boas práticas em vez de procurar apenas evitar más práticas. Para além disso, os códigos de conduta negativos parecem entrar em conflito com o facto de as pessoas mais facilmente se envolverem em acções moralmente censuráveis por omissão (i.e. prejudicando por não fazer nada) do que por comissão (ou seja, prejudicando fazendo algo).
Este artigo científico, o primeiro do género sobre códigos de conduta veterinários, pode servir de ponto de partida para uma revisão construtiva do CD-OMV, capaz de abarcar a diversidade de pontos de vista sobre o estatuto moral dos animais dentro da profissão. Pode também promover um debate, dentro da profissão e fora dela, sobre os deveres do médico veterinário: tem o médico veterinário o dever primordial de defender o animal, os colegas ou a sociedade?

Podcast

Gostaria de ser cozido vivo? O dilema moral de um prato de caracóis.

Caracóis cozidos são uma iguaria muito apreciada em Portugal nesta altura do ano. Nesse sentido, o grupo activista Acҫão Directa lanҫou uma campanha em defesa dos caracóis, alertando para a dimensão moral do facto de estes moluscos serem cozidos vivos. Segundo a dita associaҫão “estes animais sentem e por tal sofrem nas circunstâncias em que são instrumentalizados apenas para satisfazer o palato de quem os procura como petisco”. A reacҫão das redes sociais – quase sempre ígnea, hiperbólica e intolerante – não se fez esperar, considerando a iniciativa para lá de ridícula e obrigando mesmo a associaҫão a reagir às críticas de que tem sido alvo.

O alerta lanҫado pela Acҫão Directa nada tem de ridículo. A evidência de estudos comportamentais é inteiramente consistente com a ideia de que alguns invertebrados, principalmente crustáceos (como as lagostas) e moluscos (como caracóis), experienciam dor. No entanto, é de salentar que eu uso o verbo experienciar, em vez do verbo sentir, porque a diferenҫa entre os dois não é apenas semântica. Na verdade, não basta dizer que um animal experimenta dor para que essa dor seja relevante em termos morais. Para que a dor conte moralmente o animal deve senti-la como experiência subjetiva aversiva (i.e. sofrimento), algo que não é de todo evidente no caso do caracol. Para além disso, a questão do sofrimento deve ser analisada em perspectiva e não de forma isolada. Ao contrário do Nuno Franco, não me afirmo como ‘bem-estarista’. Penso que a vida é muito mais do que sentimentos hedonistas de dor e prazer. Valores como o a dimensão ambiental, a responsabilidade social ou a motivaҫão do agente moral (ou seu carácter) são porventura elementos tão ou mais importantes no juízo ético.
Noutras ocasiões já me afirmei como omnívoro e no meu menú constam também os caracóis (ou constavam, pois na Irlanda não os encontro). A helicicultura (i.e. cultivo de caracóis) é uma forma de produҫão animal extremamente eficiente, consumindo muito menos recursos naturais (e.g. terra arável, materias primas) do que aqueles necessários por outras formas de agropecuária industrial. Os caracóis consumidos em Portugal são na sua maioria provenientes de Marrocos. Considerando a sua proximidade (Marrocos esta mais perto de Portugal do que Franҫa, outro país produtor de escargots), o benefício social para as populaҫões locais e a possibilidade de substituir outras formas de consumo proteico – que provavelmente causam maiores problemas de bem-estar, de sustentabilidade ambiental e social – são todas razões de peso para não me rever na campanha da Acҫão Directa.

Além do mais, os caracóis são uma excelente fonte alternativa de proteína. Um prato de caracóis pode facilmente substituir um bife, com muitos outros benefícios nutricionais. Segundo a revista Visão, além do alto teor proteico (13 a 15%) e baixo teor lipídico (0,3 a 0,8%), os caracóis são ricos em ácidos gordos polinsaturados e sais minerais, sobretudo magnésio, cálcio, ferro, cobre e zinco. Quem sabe de caracóis sabe o difícil que é cozinhá-los bem. Para garantir sabor, salubridade e higiene é necessário preservar a frescura do produto e é por isso é que os caracóis devem ser cozinhados vivos. Não existem métodos eficazes de occisão de moluscos e o abate de caracóis apresenta desafios acrescidos em virtude do elevado número de animais envolvidos, das suas reduzidas dimensões, da sua anatomia e resiliência.
Apesar de simpatizar com os motivos desta campanha, ela não conta com o meu apoio, porque não procura soluҫões ou sequer um debate sobre o tema. A procura de alternativas ao uso de caracóis vivos (nomeadamente através de métodos eficazes de abate) parece-me muito mais construtiva do que uma campanha contra o seu consumo.

The Ethics of Eating – Curso Livre

Começa hoje o curso livre da Universidade de Cornell, nos EUA, sobre a ética da alimentação, The Ethics of Eating. Os MOOCs (Massive Open Online Courses) são cursos online, gratuitos e disponíveis para quem quiser. Coursera e EDX são duas das maiores plataformas de MOOCs. As melhores universidades do mundo estão a investir  neste tipo de formação à distância, em que não é incomum ver cursos com dezenas de milhar de alunos. De forma a gerir tamanha multidão, estes cursos recorrem muitas vezes a peer assessment, avaliação por pares, em que os alunos avaliam trabalhos e comentários de outros alunos, cabendo aos docentes um papel de moderadores (além de geradores de conteúdos, é claro).
Inscrevi-me neste curso assim que soube dele e devo dizer que tenho grandes expectativas. Sei de experiência própria que não é fácil acompanhar um MOOC do início ao fim e manter o entusiasmo e dedicação. Um MOOC dura normalmente entre 4 e 6 semanas e exige, pelo menos, umas 4 horas de trabalho por semana. Este curso dura 6 semanas, sendo que a segunda e a terceira semanas são dedicadas aos animais, em especial à agropecuária industrial. Mas ainda o curso não começou e já dei de caras, através da sua página do facebook com um site muito estimulante: scoop.it/t/ethics-of-eating, que colige informação da imprensa internacional sobre ética na alimentação. Através dele fiquei a saber, por exemplo, de uma iniciativa espanhola de produzir Foie Gras ‘ético’, isto é sem alimentação forçada.

O MasterChef perdeu a cabeҫa

Desconheҫo as razões porque MLG e a sua entourage do programa MasterChef escolheram colocar no facebook uma cabeҫa de porco em cada um dos lugares destinados aos participantes, como forma de publicitar o próximo programa. Mas também por isso se torna um caso interessante para ser anasilado sob diversos pontos de vista.
Do ponto de vista veterinário, há uma boa razão para usar cabeҫas de porco. As cabeҫas de ruminantes (como bovinos, ovinos e caprinos) nao estão disponíveis já que, desde 1 de Outubro de 2000, os estados membros da UE sao obrigados a retirar da cadeia alimentar os tecidos animais mais susceptíveis de apresentarem um risco de encefalopatia espongiforme (incluindo o crânio). Das grandes espécies pecuárias, só restava o porco.
Em termos culinários, a escolha da cabeca de porco é particularmente feliz. Será um exercício extremamente interessante perceber de que forma os participantes lidam com tamanha iguaria. Orelhada, bochecha estufada com vinho tinto, lingua estufada com ervilhas, as possibilidades de cozinhar uma cabeca de porco sao praticamente infinitas. E, para os leitores omnívoros, saborosas.
Em termos de relaҫões públicas, as opiniões dividem-se. Ao contrário do que a peҫa jornalista indica, o facto de a fotografia ter inundando o facebook de comentários só pode ser uma boa notícia. Diz-se que não existe tal coisa como má publicidade, e eu sou forҫado a concordar já que pessoas como eu nunca saberiam da existência de tal programa, não fora esta rábula. Do ponto de vista de audiências, estou convencido de que dificilmente poderia haver melhor decisão.

No entanto, e recorrendo meramente ao senso comum, haveria boas razões para que a direcҫão do programa pensasse duas vezes antes de divulgar esta imagem. É que ela corre o risco de comparar os participantes a porcos. O porco é considerado pelas religiões monoteístas como um animal impuro, embora esse epíteto seja muito menos marcado na religião católica do que na judaica ou na muҫulmana (onde o animal é proscrito). Não importa. Colocar cabeҫas de porco nas bancadas, cuidadosamente alinhadas na direcҫão do espectador, é uma sugestão demasiado óbvia para ser ignorada.
Por fim, uma breve consideraҫão ao animal propriamente dito. Estas cabeҫas provavelmente provêm de um matadouro nacional e os animais a que pertenciam terão sido abatidos com elevados critérios de bem estar. Mas algo mais do que o bem-estar parece estar em causa. Para muitos, será dificil aceitar que animais sejam instrumentalizados desta maneira para uma mera peҫa de propaganda. Ninguém estaria a falar disto se, em vez da cabeҫa, aparecesse uma costeleta no prato. A face é a parte do nosso corpo que mais contribui para a nossa identidade. A mesma transposiҫão pode ser feita para os animais que, sendo expostos desta maneira, parecem ser privados de algo, mesmo depois da morte. Há quem lhe chame integridade e há quem lhe chame dignidade. E este caso parece ir ao encontro daqueles que defendem que proteger o bem-estar animal não chega para se defender os seus direitos.

NaturFun – O portal de compras com responsabilidade eco-social

NATURFUN “Animação” from Help Images on Vimeo.

“O portal NaturFun promove e comercializa produtos e serviços ambientalmente favoráveis a preços mais baixos e partilha as receitas com instituições de solidariedade social e com os próprios utilizadores do portal. O NaturFun intervém assim nos 3 eixos principais da sustentabilidade: ambiente, sociedade e economia.”
Partilho esta ideia, que me parece excelente. Gostei da honestidade do conceito de “ambientalmente favorável”, em vez do presunҫoso, e muitas vezes enganador, “sustentável” (embora também o seja). Fiquei com vontade de levar os meus filhos à Herdade do Freixo do Meio e pelo meio comer um cozido tradicional alentejano. Também aconselho a excelente biblioteca que o site oferece, assim como os cursos mais variados, que vão desde a Conservação da Fauna em Portugal, Iniciação à Aquaponia: Produção de Vegetais e de Peixe de Forma Natural e Sustentável e o Curso de Modo de Produção Biológico.

São óptimas sugestões que também podem ser boas prendas. Partilhem!

Os ‘animais de laboratório’ mais famosos

Por causa de um recente debate sobre se os animais de laboratório deveriam ter um nome (em vez de serem identificados por um código), a revista científica americana Science lanҫou um Quiz para testar o conhecimento dos seus leitores sobre os mais famosos animais alguma vez usados para fins científicos. O quiz tem perguntas interessantes e um timer, pelo que não dá tempo para ir dar uma espreitadela à Wikipedia à procura da resposta certa. No final, dá vontade de conhecer melhor quem eram estes animais e de que forma contribuiram para o avanҫo da ciência. No entanto, só um certo chauvinismo americano pode justificar que a cadela Laika não faҫa parte dasta lista (em vez disso, ficamos a saber que os primeiros animais que os americanos levaram aos espaҫo foram um par de macacos). Mais significativo é o facto de que na lista dos mais famosos aparecem espécies emblemáticas como golfinhos e chimpanzés, mas não há referência a um único rato ou ratinho, que compõem a esmagadora maioria dos animais usados em investigaҫão científica e aqueles que mais terão contribuido para o avanҫo da ciência e, por inerência, da humanidade. Assim sendo, pergunto: que outro animal sugeririam para esta lista?

Limpar os oceanos – The Ocean Cleanup

Há uns três anos atrás fiquei muito impressionado com a curta-metragem Midway, que retratava os terriveis efeitos da poluiҫão marinha. Chris Jordan, o realizador, embarcou numa aventura de dois anos a um dos lugares mais desolados da Terra – o atol de Midway, no meio do Oceano Pacífico Norte – onde testemunhou uma tragédia: a morte por inanição de milhares de albatrozes que confundiam o lixo flutuante (em especial plástico) por alimento. Jordan filmou como quem pinta naturezas mortas, compondo carcaças sem vida adornadas por letais pedaços de plástico colorido. O mesmo enquadramento visual para transmitir uma mensagem igualmente moralizante: que a poluição dos oceanos é, de facto, um importante problema ambiental.
A poluiҫão dos oceanos tem sido encarada mais como um problema local (sempre que há um derrame de crude ou uma descarga de resíduos industriais) do que propriamente como um problema global. Além disso, o tema da poluição, especialmente a poluição marinha, parece ter perdido o ímpeto para outros temas mais populares e “quentes” da agenda ambiental, nomeadamente as alterações climáticas e do aquecimento global. Porém, os efeitos dos plásticos nos oceanos são devastadores. Embora não sejam biodegradáveis, os plásticos são fotodegradáveis, o que significa que se vão desfazendo, por acҫão da luz, em particulas cada vez mais pequenas mas sem nunca desaparecerem do ambiente. Esses microplásticos são depois ingeridos e transmitidos pela cadeia trófica com consequências para a nossa saúde e a de outros animais que só agora comeҫamos a compreender.

Uma das ‘naturezas mortas’, de Chris Jordan

Estima-se que cerca de 300.000 toneladas de lixo plástico flutuem actualmente nos nossos oceanos. Muito deste material concentra-se em verdadeiras ilhas flutuantes de lixo (ou vórtices), em zonas remotas dos oceanos, e a sua remoҫão foi sempre vista como inviável. Mas um adolescente chamado Boyan Slat desenvolveu uma solução incrivelmente simples e viável para remover os cinco principais vórtices de plástico identificados pelos cientistas. Vejam a proposta de Boyan no seguinte Prezi:

Limpar o lixo dos oceanos é possível.
Saiba mais em The Ocean Cleanup e contribua para concretizaҫão deste projecto!