Cebus rubustus Kuhl, 1820
Macaco-prego, Brasil
Colecção Braga Júnior
Museu História Natural da Faculdade de Ciências
Universidade do Porto
Charles Darwin (1872)
Cebus rubustus Kuhl, 1820
Macaco-prego, Brasil
Colecção Braga Júnior
Museu História Natural da Faculdade de Ciências
Universidade do Porto
Charles Darwin (1872)
Entusiasmado com a oportunidade, começo como me foi ensinado (ou melhor, tacitamente aprendi): pelo princípio, evidentemente. Assim, anatomo-fisiologistas ilustres como Galeno, Vesalius, Harvey e Claude Bernard perfilam-se projectados numa tela brilhante ao meu lado, recurso que certamente cativaria mais os alunos há uns meros 5 anos, mas não hoje em dia, no tempo das salas de aula com quadros interactivos e aulas em “powerpoint”. O “quando”, “como” e os “porquês” mais relevantes da experimentação animal são abordados de seguida, com destaque para as espécies animais mais utilizadas. Falo do papel dos animais como modelos dos seres humanos, suas virtudes e limitações, manipulação genética e características de um modelo ideal (algo que não existe, certamente). Não há reacções, ninguém contesta, ninguém estranha. Muitos jogadores de póquer sonhariam poder manter durante tanto tempo um olhar tão incomodativamente inexpressivo. Nada que não estivesse já à espera desde o princípio.
A visão do melhor amigo do homem (e membro das famílias de muitos dos que nesse momento me escutam) nesse grau de sofrimento faz despontar nos seus rostos esgares de incredibilidade, ares reprobatórios, trejeitos de repulsa e olhares de tristeza. Ainda assim, na maioria dos casos, todos se abstêm de comentar em voz alta. Poucos ousam questionar a “autoridade científica” ou mesmo ética de alguém que supostamente saberá muito mais sobre aquele e outros temas do que eles (algo que, por si, já dava toda uma outra discussão). Não o fiz inocentemente, e noutro contexto teria um pouco mais de pudor em recorrer tão primariamente às emoções. Mas sei que a partir desse preciso momento o tema já não lhes é indiferente. Já podemos então falar de Ética.
Abordar algo tão complexo e multidimensional como a Ética Animal num tempo tão escasso poderá ser impossível de todo. Aliás, sei por experiência própria que cinco horas ou mesmo cinco dias poderão ser escassos para cobrir os aspectos mais relevantes desta temática. Mas vejo-me frequentemente na posição de tentar isso mesmo. Como fazer então que alguém que supomos nunca se ter interrogado sobre o tema – ou mesmo reflectido eticamente sobre os animais – possa adquirir uma visão genérica das principais questões e teorias afectas à Ética Animal e se sinta inclinado a discuti-las e motivado a emitir o seu juízo?
Evidentemente, começamos por admitir que a essa suposição é errada. Todos, sem excepção, têm não só a capacidade como a necessidade de fazer constantemente juízos de valor sobre as mais diversas situações (ou seja, pensar eticamente). Isso inclui a nossa relação com os animais, ainda que não pensemos muitas vezes nisso, de modo consciente. Observamo-los, caçamo-los, representamo-los na nossa arte, criamo-los como fonte de alimento, como família ou como modelos da nossa própria fisiologia.
Assim, partindo do princípio que todos podem raciocinar eticamente sobre os animais (e que de facto o fazem, ainda que a diferentes níveis), não deveria ser difícil encontrar uma base de entendimento entre interlocutores, assente na existência de valores universais. Acontece, no entanto, que estes não existem (muitos discordarão disto, mas peço que pelo menos para este tema em particular assumam esta premissa). Aliás, a primeira vez que, assumindo isso mesmo, procurei contextualizar o trabalho que realizo a alguém fora da área foi, no mínimo, desastrosa. Curiosamente, foi com o meu próprio pai.
Muitos cientistas poderão identificar-se com a ingrata experiência de procurar explicar aos pais o que fazem, em concreto. Já o “Grande Porquê” de fazerem o que fazem poderá ser mais fácil, seja ele contribuir – ainda que apenas potencialmente – para a descoberta da cura para uma doença, salvar o ambiente ou verificar se um dado composto é seguro. No meu caso, descobri que aquilo que o que me parecia auto-evidente – a imperiosa necessidade de melhor bem-estar para animais de laboratório – não o era necessariamente aos outros. Mais, descobri que muitas vezes se tornava mais fácil justificar os esforços para elevar os níveis de bem-estar deste animais através de argumentos instrumentalistas (como, por exemplo, melhorar o output científico por redução de variáveis como o stress) do que por razões de ordem ética, especialmente com pessoas da geração dos meus pais, o que inclui muitos académicos.
– “Mas então aquilo não é quase tudo com ratos?”, perguntou-me ele então um dia. Essa pergunta viria a ser-me colocada mais vezes, desde então, nomeadamente aquando das visitas de turmas do Ensino Secundário ao IBMC a seminários subordinados ao tema “Ética Animal e Ciência”. Curiosamente, também nessas visitas, muitas vezes alguém se antecipa à minha resposta e retorque: “e que diferença isso faz, também não sofrem?”. Outras perspectivas se vão então perfilando e vai-se tornando notório que falar das diferentes correntes filosóficas actuais e históricas da nossa relação com os animais se torna mais acessível porque as mesmas se encontram muitas vezes reproduzidas de diferentes formas na nossa audiência (sobre se isto é reflexo da acumulação das diferentes perspectivas ao longo da história que ainda se manifestam na consciência colectiva ou se antes ao longo dos tempos as mesmas sempre co-existiram, temo que não possa dar uma resposta em concreto).
Estas múltiplas visões poderão grosso modo ser enquadradas em cinco grandes perspectivas éticas (para saber em qual/quais nos enquadramos melhor, nada como dar um salto aqui) e isso proporciona-me algo que é precioso quando queremos encetar uma tarefa que se afigura difícil: um ponto de partida.
Há dois lados potencialmente perturbadores desta ideia: que nós somos animais e que os animais sentem. O primeiro foi o que mais perturbou os contemporâneos do Darwin. O segundo tornou-se matéria controversa sobretudo durante o século seguinte. No seu artigo The changing concept of sentience, Ian Duncan (professor catedrático de bem-estar animal da Universidade de Guelph, Canada) explica porquê. Durante os primeiros três quartos do século XX, o estudo do comportamento animal – seja como objecto em si próprio como na etologia, seja como modelo para mecanismos gerais como na psicologia experimental – foi fortemente influenciado pela tendência behaviorista. Como apenas podemos obervar o que é visível, a consciência e por consequência as experiências subjectivas são vedadas ao estudo científico que exige objectividade, foi o argumento apresentado.
Mas o interesse pelas emoções ou sentimentos dos animais ressurgiu com o conceito de bem-estar animal, sobretudo a partir do segundo quarto do século XX. No mundo científico, como diz Duncan, o gelo foi cobrado pelo etólogo Donald Griffin em 1975/76 com uma apresentação e mais tarde um livro que abordava a questão dos sentimentos subjectivos em animais. Desde então, a questão tem-se mantido central para os estudos de bem-estar animal, como argumenta Marian Dawkins, professora catedrática em Oxford:
‘Animal welfare involves the subjective feelings of animals. The growing concern for animals in laboratories, farms, and zoos is not just concern about their physical health, important though that is. Nor is it just to ensure that animals function properly, like well-maintained machines, desirable though that may be. Rather, it is a concern that some of the ways in which humans treat other animals cause mental suffering and that these animals may experience ‘pain’, ‘boredom’, ‘frustration’, ‘hunger’, and other unpleasant states perhaps not totally unlike those we experience.’
Marian Dawkins (1990)
From an Animal’s Point of View: Motivation, Fitness, and Animal Welfare
Gradualmente, os cientistas desta área têm vindo a aceitar que por muito que procuremos medidas objectivas dentro de campos de investigação conhecidos, dificilmente conseguimos livrar-nos da ligação com este fenómeno perturbadoramente intangível de experiências subjectivas, sentimentos ou estados mentais. Difícil de alcançar, inacessível aos conceitos da investigação padrão em medicina veterinária e ciências animais e largamente inexplorada mesmo em humanos, a consciência parece ser de facto, e como sugerido pela Marian Dawkins (2001) ‘o maior mistério que permanece em biologia’.