Marius – uma Girafa a mais no Zoo de Copenhaga

A notícia do abate da girafa (ou antes, do girafo) Marius no Jardim Zoológico de Copenhaga tem feito as manchetes dos jornais de hoje. O juvenil de 18 meses foi abatido com um tiro, necropsiado perante o olhar dos visitantes (incluindo crianças), esquartejado e dado de comer aos leões do zoo. Segundo a direcção do parque zoológico, não haveria espaço para mais um animal e o risco de consanguinidade caso o Marius viesse a acasalar seria elevado. O mesmo risco existiria caso o Marius fosse transferido para outro Zoo, como chegou a ser proposto.
É natural que muitos se insurjam contra esta violação dos direitos das girafas. A forma rápida, desapaixonada e funcional como o Zoo tratou do assunto choca alguns mas ajudou a impedir que a indignação crescesse e a pressão da opinião pública colocasse em risco a operação. Mas como é possível que uma instituição com responsabilidades em proteger animais selvagens, os trate de forma tão instrumental?
Para o compreender é preciso perceber o que é um Jardim Zoológico. Um Zoo moderno serve dois propósitos principais: plataforma de preservação de espécies selvagens, especialmente daquelas em risco de extinção, e estrutura educativa sobre zoologia, biologia, ambiente e conservação. Os animais são as peças mais importantes deste processo mas não são o seu fim. Por outra palavras, num zoo os animais são instrumentais para a finalidade de conservar a espécie a que pertencem e educar – e entreter – os visitantes. Os interesses das espécies (onde se inclui também os cohabitantes de Marius que já não terão de dividir o espaço com ele e os leões que o comeram) e os interesses dos seres humanos sobrepõem-se aos dos indivíduos. Pela imagem percebe-se que a necrópsia foi feita pública com propósitos didácticos e não de forma precipitada ou com o intuito de chocar. A mensagem que passa para aquelas crianças é a de que para com os animais só temos deveres indirectos: os animais não têm direitos por si próprios e podem ser usados como um meio para atingir um fim. Essa finalidade é ecocêntrica (a espécie) ou antropocêntrica (o ser humano). E isso ajudará a preservar a cultura dos jardins zoológicos.
Ainda assim, questões mais profundas se levantam: num contexto de espaço e outros recursos limitados porque deixaram os pais de Marius reproduzir-se? E porque deixaram Marius nascer? Quanto vale o nascimento de uma nova cria num zoo em termos de visitantes? Terá sido este o propósito de Marius, que agora juvenil já não serve? E qual a urgência em abatê-lo agora? Segundo a Encyclopedia of Life, a maturidade sexual em girafas ocorre pelos 3-4 anos de idade, mas os machos (em liberdade) raramente têm a oportunidade de procriar antes dos sete. É possível que a forma funcional como o Zoo tratou do assunto lhes tenha evitado maior contestação a curto prazo, mas também pode acontecer que esta forma contractualista de lidar com os seus animais lhes traga oposição acrescida a médio ou longo prazo.

Crudiveganismo – uma estranha forma de vida.

Esta história – que não inclui animais – soube-a pela Alexandra Prado Coelho, a jornalista do Público responsável pelas crónicas de culinária e hábitos alimentares. Francis Kenter é uma cidadã holandesa que vive numa comunidade animista, professando um estilo de vida que inclui o crudiveganismo (ou crudivorismo), isto é, o consumo exclusivo de alimentos de origem vegetal não cozinhados (pelo efeito do calor, portanto). A história não seria merecedora de atenção mediática não fosse esta mãe alimentar o seu filho, Tom, segundo os mesmos proverbiais preceitos e o caso ter ido parar aos tribunais por uma queixa de maus-tratos interposta pelos serviços de acção social. A crónica de Mikel López Iturriaga, no blog El Comidista do Jornal El País, desenrola o novelo da história.

O insólito caso foi seguido pela documentarista holandesa Anneloek Sollart durante vários anos, dando origem a dois filmes: Raw (Cru), de 2008 – quando Tom tinha 10 anos – e Rawer (mais cru), de 2012, com Tom já na adolescência. Segundo os médicos, Tom terá um crescimento 10-15 cms inferior ao esperado para um rapaz da sua idade e apresenta um quadro nutricional característico de crianças da África subsariana. A sua mãe, por outro lado, interroga-se porque é que o Estado quer retira-lhe a custódia do filho ao mesmo tempo que permite que milhares de pais alimentem os seus filhos com junk food, cujos malefícios para a saúde estão sobejamente demonstrados. Nas palavras de Alexandra Prado Coelho, este:

“É um caso que levanta uma série de questões. Devem os pais, por convicção de que estão a fazer o melhor para os filhos, ser autorizados a alimentá-lo de uma forma que os poderá prejudicar? Será legítimo o Estado intervir nestes casos? Tom será mais feliz a viver separado da mãe e a comer comida com a qual não concorda? Terá o rapaz sofrido uma lavagem ao cérebro desde pequeno ou terá capacidade para ter opinião própria neste assunto? E os pais que alimentam os filhos exclusivamente com junk food, devem ver-se também privados do poder paternal?”

Este caso está em contraste gritante com a epidemia de obesidade que grassa no mundo desenvolvido (e não só) mas as questões que coloca são semelhantes. Onde acaba a nossa liberdade como agentes (morais) autónomos em fazer o que entendemos pela nossa saúde e a dos nossos filhos e começa o dever da sociedade em pôr cobro a hábitos alimentares que considera inaceitáveis (e, portanto, imorais)? E onde está a linha que os separa?

Meat Atlas – factos e números sobre os animais que comemos

A ONG ambientalista Friends of the Earth (Amigos da Terra) publicou, em colaboração com a Fundação Heinrich Böll, o Atlas da Carne – factos e números sobre os animais que comemos. Dividido em 26 curtos capítulos ilustrados por 80 gráficos, trata-se de um relatório extremamente pedagógico e de fácil leitura.
O retrato, como seria esperado, não é nada abonatório para a indústria da carne. O mercado global de carne é guiado pelo preço e está cada vez mais na mão de mega-empresas como a americana Tyson Foods, a dinamarquesa Danish Crown e a brasileira JBS. O preço da carne ao consumidor tem vindo a descer em detrimento dos custos sociais, ambientais e de bem-estar animal.
Ainda assim, o relatório dos Amigos da Terra adopta uma postura conciliatória ao considerar que comer carne não resulta forçosamente em dano para o clima e para o ambiente. Pelo contrário – e estou a citar – o uso apropriado de terrenos agrícolas pelos animais pode até trazer benefícios ambientais. A solução para um consumo ‘saudável’ de carne passa pela adopção de esquemas de certificação ambiental e, claro está, pela diminuição da quantidade que comemos. O relatório introduz o conceito – que eu desconhecia – de  ‘flexitarian diets’, e que consiste em comer menos e melhor carne e mais proteína de origem vegetal.
De realçar que as preocupações dos Amigos da Terra são acima de tudo do foro ambientalista e não propriamente de bem-estar animal. Embora não dedique nenhum capítulo ao bem-estar animal, o relatório não ignora por completo este tema. No capítulo do abate, o relatório procura contextualizar as posições dos movimentos de bem-estar animal (reformistas) e de direitos dos animais (abolucionistas). As suas conclusões incluem, também, mais e melhores regras de bem-estar para espécies pecuárias.

Controlo de Animais Errantes na Praia de Faro

A Associação Animais de Rua (AAR), está a desenvolver o Projecto da Praia de Faro que visa controlar as populações de cães e gatos errantes naquela emblemática zona balnear da Ria Formosa. Já aqui elogiei o trabalho da AAR numa mensagem anterior e volto a fazê-lo. Este é um projecto pensado e estruturado, que conta com a colaboração, entre outros, da Dogs Trust e da Universidade Lusófona. Isso é bem visível na forma como o projecto inclui o recenseamento de todos os animais – com recurso a uma aplicação android especialmente desenvolvida para o efeito – e um inquérito à comunidade.

Para quem não conhece, a Praia de Faro é uma das ilhas-barreira que formam a Ria Formosa e aquela que mais pressão humana tem sofrido ao longo dos anos (e também a mais vulnerável). Mas a Praia de Faro não é só local de veraneio; nela também habita uma comunidade que vive da actividade piscatória (em especial mariscadores) que actua numa área protegida pelo estatuto de Parque Natural. Identificar, monitorizar, alimentar e esterilizar os animais errantes vai não só beneficiar o bem-estar destes mesmos animais como permitir controlar o seu efeito sobre as espécies selvagens e promover a relação homem-animal, nomeadamente para quem vive sozinho ou isolado, algo comum por esta bandas. E é por isso que este projecto é tão importante pois contribui activamente para a sustentabilidade ambiental e social da região.

Caso pretenda dar o seu contributo, faça-o por favor através do NIB da AAR (0065 0921 00201240009 31) e envie um email para o geral@animaisderua.org, mencionando que o mesmo se destina ao Projecto da Praia de Faro.

Estudar personalidade em peixes – entrevista a Catarina Martins

Manuel Sant’Ana: Olá Catarina Martins. O teu percurso académico tem sido bastante multidisciplinar incluindo temas sobre sustentabilidade em aquacultura, sistemas de recirculação e bem-estar em peixes. Uma parte importante da tua investigação diz respeito à personalidade nos peixes. Tu e a tua equipa do projecto Copewell publicaram recentemente um artigo científico na PLOS ONE em que oferecem evidências fortes de que as Douradas (Sparus aurata) exibem características temperamentais constantes ao longo do tempo e em diferentes contextos. De que forma é que as vossas conclusões podem ser importantes?
Catarina Martins: O estudo que publicamos é particularmente interessante por ter sido feito com a dourada que é uma espécie comercialmente importante no sul da Europa. Ao demonstrarmos que certas diferenças comportamentais são consistentes ao longo do tempo e também previsíveis com base noutros comportamentos podemos concluir que essas diferenças individuais não ocorrem por acaso. Pelo contrário fazem parte daquilo a que chamamos de “sindroma comportamental” ou seja um conjunto de comportamento que variam em conjunto. Isto poderá ter implicações relevantes em aquacultura já que a selecção de certos comportamentos pode conduzir à co-selecção de outros que fazem parte do mesmo sindroma. Torna-se também importante compreender que tipo de associação existe entre comportamentos e certas respostas fisiológicas ao stress. Por exemplo sabe-se que em certas espécies (também demonstramos isso na dourada num artigo recente no Applied Animal Behaviour Science) um peixe que demonstra níveis de cortisol mais baixos quando exposto a situações de stress é um peixe mais agressivo.
MS: O termo personalidade (que remete para o conceito de pessoa) é propenso a antropomorfismos. Curiosamente, há dois anos atrás foi publicado na mesma revista um estudo sobre a evidência de personalidade em anémonas, e do qual demos conta aqui no animalogos. Estaremos a falar da mesma coisa? Será esta característica transversal ao reino animal?

CM: Actualmente na literatura cientifica existem vários termos que são usados de forma indiscriminada como personalidade, sindroma comportamental, temperamento e estilos de adaptação (do inglês coping styles). A escolha de um termo específico tem essencialmente a ver com a área de investigação. Por exemplo em ecologia o termo “sindroma comportamental” é mais frequente enquanto em áreas mais aplicadas como em aquacultura é mais frequente usar-se o termo “coping styles”. Todos estes termos partilham de aspectos comuns: 1) todos reconhecem a importância da variação individual em comportamentos, 2) reconhecem que essa variação individual é consistente ao longo do tempo e 3) que alguns comportamentos podem ser usados para prever outros comportamentos medidos em contextos diferentes (exemplo: ha uma grande probabilidade de um peixe mais agressivo ser um peixe mais explorador em ambientes novos). Quanto ao termo personalidade em particular concordo que por definição está associado “a pessoas” pelo facto de incluir aspectos emocionais. Penso que nos últimos anos os investigadores se têm sentido mais confortáveis com o uso deste termo em peixes devido a vários trabalhos recentes que apontam na direcção de que os peixes também podem demonstrar emoções equivalentes ao medo e à dor. Se aceitarmos a componente emocional na definição de personalidade então penso que neste momento ainda não existem evidências de que a variação individual nas respostas a estímulos ambientais observadas nas anémonas se possa denominar “personalidade”.

MS: Na produção pecuária terrestre (vacas, galinhas, porcos) a ciência do bem-estar animal tem estado cada vez mais preocupada na promoção de experiências positivas e não apenas na minimização de experiências negativas. Em relação aos peixes de aquacultura, essa tendência também se verifica?

CM: O foco em aquacultura continua a ser o minimizar as experiências negativas. No entanto começamos a assistir a vários estudos no âmbito do enriquecimento ambiental que apontam na promoção de experiências positivas.

MS: Por fim, uma pergunta prática: na hora de escolher peixe (para consumo), que recomendações darias ao consumidor?

CM: Penso que é importante desmistificar a ideia de que o peixe de aquacultura é mau. A aquacultura é actualmente uma indústria muito regulamentada em que, na sua generalidade, a qualidade do peixe, quer em termos nutricionais quer em termos de segurança alimentar, é garantida. Considerando os benefícios para a saúde de consumir peixe aconselharia o consumidor a não se limitar a escolher apenas peixe provenientes da pesca.

Provedoria dos Animais em Lisboa

Foi com entusiasmo que soube da criação, no passado dia 18 de Junho, da Provedoria dos Animais da Câmara Municipal de Lisboa. Esta medida vem acompanhada da mudança de designação do Canil/Gatil de Lisboa para Casa dos Animais (com uma nova estrutura orgânica) e da criação do Grupo de Trabalho para a Casa dos Animais, que integra a recém-empossada provedora Marta Rebelo, o Director Municipal de Ambiente Urbano da autarquia, Ângelo Mesquita e a Bastonária da Ordem dos Médicos Veterinários, Laurentina Pedroso (que preside ao grupo).

Não penso que esta decisão do município de António Costa se trate de uma estravagância de uma tal esquerda progressista (embora isso caia bem ao seu eleitorado). O tema é sério e já aqui demos conta do interesse crescente na área jurídica do direito animal  (que não deve ser confundida com a área filosófica dos direitos dos animais), assim como de alguns dos seus conceitos fundamentais.
A provedora não apresentou ainda um plano de trabalho, estando a decorrer um período de consulta com as associações zoófilas a operar no terreno. Existe também um apelo para se formar o Grupo de Voluntários da Casa dos Animais de Lisboa, assim como para o Grupo de Juristas dos Animais de Lisboa. Quem estiver interessado pode contactar a provedora Drª Marta Rebelo pelo e-mail provedora.animaislisboa@gmail.com.
O meu entusiasmo é, ainda assim, limitado. Em primeiro lugar porque o papel da provedora parece cingir-se aos animais de companhia (vulgo cães e gatos); bem sei que o município de Lisboa é essencialmente urbano mas estou certo de que no maior município do país haverá mais do que cães e gatos para proteger ou gerir (recorde-se a polémica na Câmara Municipal do Porto sobre o controlo de animais errantes). Em segundo lugar, basta percorrer a página do Facebook da provedora para se perceber de que pouco valem as boas intenções na ausência de um enquadramento legal rigoroso. E por isso a provedora se vê muitas vezes limitada a um papel meramente consultivo. Por fim, um comentário pessoal. É bem visível que a Drª Marta Rebelo procura fazer o seu papel com brio e profissionalismo. Mas procurar responder pessoalmente por escrito a todas as solicitações de um município com quase 550 mil habitantes parece-me irrealista e quiçá ingénuo. Até porque muitas das perguntas feitas à provedora nada têm de ingénuo e parecem mais visar apontar-lhe o dedo do que procurar esclarecimentos genuínos (veja-se, p.e., a forma  defensiva – quase expiatória – como a provedora justifica a suas opções alimentares – 20 de Junho). São, por isso, imensos os desafios em termos de comunicação e transparência aqueles que a Provedora dos Animais enfrenta e que já lhe levaram a um desabafo após uma semana em funções (26 de Junho). Fora os demais desafios… Um bem haja!

Cães de apoio ao ensino propedêutico no ICBAS: um apelo do Inácio

Helpmyfriends from Inácio on Vimeo.
Um grupo de alunos e ex-alunos do ICBAS escreveu uma carta aberta ao Presidente do Conselho Directivo daquela instituição a alertar para as condições de alojamento e maneio dos cães de apoio ao ensino propedêutico em medicina veterinária.

O abaixo-assinado pode ser encontrado aqui.
Como antigo aluno de Medicina Veterinária e actual aluno de doutoramento em Ciências Veterinárias do ICBAS sinto uma enorme simpatia pelo Inácio e também por esta iniciativa. Quando fiz uma visita às instalações do novo ICBAS não deixei de ficar impressionado com a sua dimensão colossal, com as condições dos seus laboratórios e o planeamento do seu Hospital Veterinário. Mas uma coisa me deixou preocupado; o canil ocupava o último andar do edifício e não tive autorização para o visitar. Na altura questionei-me como era possível passear os cães e foi-me dito que uma área do terraço lhes estava destinada. Não deixa de ser sintomático que o vídeo que acompanha o abaixo-assinado também não exiba imagens dos animais (será que também não tiveram autorização para os filmar?) e ficamos a imaginar o que será olhar para os azulejos da parede durante todo o dia enquando ouvimos o ressoar de latidos vizinhos.
Os cães utilizados para ensino veterinário (não invasivo) não devem ser motivo de embaraço para a instituição nem armas de arremesso por parte de movimentos de libertação animal. Eles desempenham, a meu ver, um papel determinante na formação de médicos veterinários. Mas se me fosse permitida uma alteração ao abaixo-assinado, eu chamaria a atenção para a participação dos próprios alunos na melhoria das condições de vida destes animais. A responsabilidade pelo seu bem-estar não cai só na Direcção da escola nem nos dois funcionários do canil. Mas talvez isso já esteja a ser equacionado.

O consumo excessivo – Samsara


La surconsommation (o consumo excessivo), assim se chama o pungente vídeo que circula na internet. Trata-se de um excerto do documentário Samsara de 2011 (realizado por Ron Fricke), uma experiência visual  absolutamente assombrosa sobre as assimetrias do nosso maravilhoso, e ao mesmo tempo aterrador, planeta Terra. O filme percorre os cinco continentes e demorou quase cinco anos a ser filmado.

O excerto em causa parece passar-se na China e retrata o superlativo da massificação da pecuária industrial, fazendo depois a ligação para o consumismo e a obesidade. O realizador tem o cuidado de descrever (através da imagem já que o filme não tem comentários) aspectos de três das mais importantes formas de produção pecuária: a apanha mecânica de frangos de engorda (broilers), as celas de amamentação de porcas e a ordenha mecânica em bovinos leiteiros. Um quarto aspecto, o do trabalhador humano, também não é esquecido. O traveling lento da câmara de alta definição permite-nos deter sobre pequenos pormenores e qualquer um deles merecia um comentário demorado. As imagens muitas vezes aceleradas transmitem uma sensação de urgência que, aliada à escala quase sobre-humana dos espaços, nos impele a reflectir sobre os nossos hábitos de consumo e sobre as suas consequências. Mal posso esperar por ver o filme completo. 

O que há de errado em comer cavalo por vaca ?

Matadouro Romeno
Photo:Daniel Mihailescu – AFP
O escândalo da carne de cavalo que estalou no Reino Unido há duas semanas não dá sinais de abrandar. A troca, propositada, de carne de vaca por carne de cavalo em produtos transformados (hambúrgeres, lasanhas, recheios) é um problema que envolve toda a Europa e que revela as fragilidades do mercado europeu de produtos de origem animal. A carne de cavalo já foi entretanto detectada noutros países como a Alemanha ou a França, estando para já Portugal fora deste mercado negro que parece ter origem na Roménia.
Duas questões principais se colocam com esta crise: uma diz respeito à quebra do elo de confiança com consumidor, que deixa de ter razões para crer na informação que vem nos rótulos; a segunda, mais grave, prende-se com os potenciais riscos de saúde pública em comer carne cujo estado sanitário se desconhece. Um dos perigos associados ao consumo de carne de cavalo é a presença do anti-inflamatório fenilbutazona. O Ministro David Heath, da DEFRA, confirmou a presença do fármaco em 8 das 206 amostras testadas pelos seus laboratórios, mas em valores considerados residuais e que portanto não constituem um risco para a saúde pública. Mas outros riscos poderão ainda emergir.
O horror com que a presença de carne de cavalo foi encarada no Reino Unido tem razões históricas. Por um lado, este caso ameaça tornar-se o maior escândalo no sector agro-alimentar europeu desde a crise das vacas loucas  nas décadas de 80 e 90 do século passado, que também teve origem nas Ilhas Britânicas. Por outro lado, não é de desprezar o facto dos britânicos serem um povo de horse lovers. Para os britânicos o cavalo é o animal de estimação por excelência, e a sua presença tem uma importância – na paisagem e no imaginário colectivo – muito superior àquela que a maioria de nós lhe reconhece. Para muitos, portanto, comer cavalo é uma ideia aberrante, como para outros será comer cão ou outro animal de estimação.
Em Portugal não existe também o hábito de comer carne de cavalo, mas as razões parecem ser diferentes. A mim, não me faz confusão nenhuma comer um bife de cavalo mas já não concebo a ideia de comer gato por lebre. Como diz Miguel Esteves Cardoso no Fugas de hoje, “aquilo que mais nos deve horrorizar  não é a presença de carne de cavalo mas a distância insondável entre o consumidor e o animal (ou animais) cuja carne está a comer.” Como omnívoro que sou, não podia estar mais de acordo. O mesmo problema se põe, por exemplo, com o leite. Existem marcas, como a Auchan, que importam leite (a granel) de França. O produto é depois embalado em Portugal e é-lhe atribuido o selo de produto nacional. Ora nada disto é transparente. Eu não tenho nada contra o leite francês ou mesmo contra os cavalos romenos. O que eu quero é saber o que estou a comer e saber também, sem sombra de dúvidas, a origem e a forma como aqueles animais foram criados.