Direitos dos animais – uma perspectiva jurídica

De modo a melhor entender a discussão em torno do caso do cão que causou a morte a um bebé de 18 meses no início deste mês, o Animalogos gostaria de clarificar alguns dos conceitos que têm vindo a ser utilizados – por vezes de modo descontextualizado – na discussão. Assim, pedimos uma perspectiva sobre o tema a Orsolya Varga, pós-doc do Instituto de Biologia Molecular e Celular com background em medicina e direito, e um interesse académico em temas ligados à legislação sobre os animais. 

Anna Olsson: Orsolya, antes de mais podias explicar-nos o que é um direito legal? 

Orsolya Varga: A resposta é fácil: direitos legais são aqueles que existem sob as regras de sistemas legais. O nosso sistema legal é baseado no entendimento de direitos e responsabilidades legais das pessoas. A existência de direitos legalmente consagrados não é recente, do ponto de vista histórico. Por exemplo, o sistema legal romano clarificava quem tinha o direito legal de passar leis, quem podia julgar casos, quais os direitos dos cidadãos, ou das mulheres. Escravos não tinham direitos consagrados e que pudessem reivindicar, nem direitos baseados na cidadania.

Na legislação contemporânea a palavra-chave é o conceito de pessoa. Apenas uma pessoa, com personalidade jurídica, tem direitos e responsabilidades consagradas na lei. O conceito de pessoa foi a questão central durante a abolição da escravatura e a luta pelos direitos das mulheres, estando a personalidade jurídica do feto no centro do debate actual. Há hoje muita discussão em torno dos direitos do feto e direito à reprodução. Uma questão parcialmente semelhante é a dos direitos dos animais.

Há ainda algo que queria acrescentar. As leis naturais são diferentes dos direitos legais. Os direitos naturais são universais e inalienáveis, e não dependem de contingências da lei, sendo independentes de qualquer governo nacional ou internacional. Os direitos humanos são considerados direitos naturais. Os humanos nascem livres e iguais entre si. 

AO: Muitos comentadores têm a este respeito declarado que os animais não têm direitos, quase como se isso fosse um facto indiscutível. Há assim duas questões de fundo, que convém considerar separadamente. Primeiramente, do ponto de vista da teoria legal, podem os animais ter direitos, poderão ser entidades detentoras de direitos? 

OV: Muitos crêem que sim, outros não. Outros ainda consideram que a personalidade jurídica apenas deveria ser atribuída a alguns animais em particular. A principal questão aqui é que na visão tradicional os animais são propriedade humana. Esta abordagem é rejeitada por aqueles que advogam direitos para os animais e reclamam uma mudança para um paradigma não-antropocêntrico. Esta nova abordagem implicaria uma mudança fundamental nas relações entre humanos e animais, e afectaria radicalmente o modo como nós os tratamos.

Mas para responder à tua questão: sim, tecnicamente, os animais poderão ter direitos, num sentido limitado. Pessoalmente, não acho que dotar os animais de direitos fosse algo fácil de alcançar, do ponto de vista técnico.

Mas a extensão do conceito de pessoa a todos os animais colhe o apoio de alguns académicos. A teoria tradicional em direitos dos animais do filósofo Tom Regan assenta fundamentalmente no interesse que estes têm em evitar o sofrimento. Seguindo esta mesma linha, o jurista Gary Francione argumenta simplesmente que os animais requerem um só direito: o de não serem considerados e tratados como propriedade.

Uma campanha para uma lei ‘universal’ para os animais tem vindo a ser promovida pelo Animal Legal Defense Fund. A iniciativa deste grupo é a Animal Bill of Rights, que pretende conferir direitos naturais aos animais. Esta proposta de legislação, apresentada numa petição dirigida ao Congresso dos EUA, pretende proteger os animais, reconhecer que são seres sencientes, e atribuir-lhes direitos legais na sociedade humana. 

Um outro exemplo é o Nonhuman Rights Project, que tem procurado que seja reconhecido o estatuto de pessoa a certos animais, uma vez que apenas um ser dotado de personalidade jurídica poderá ser detentor de quaisquer direitos legais. Ainda que o projecto seja nos Estados Unidos, e com base na common law, o resultado terá impacto como mensagem universal. Os advogados têm preparado casos para apresentar em 2013. Eu espero pelo veredicto.

Acrescento que Steven Wise, o presidente do Nonhuman Rights Project, é um jurista muito influente na área do direito animal. Ele argumenta em ‘Drawing the line’ que alguns animais, e em particular os primatas, atingem os requisitos necessários para terem personalidade jurídica, e dever-se-ia por isso atribuir certos direitos e protecção. A sua argumentação fundamenta-se em observações científicas que demonstram, no seu entender, que chimpanzés, bonobos, elefantes, papagaios, golfinhos, orangotangos e gorilas se qualificam para esse estatuto. Ele propõe uma categorização complexa para os animais, mas não entrarei em pormenores, aqui. 

Mas gostaria ainda de dar mais um exemplo interessante de uma iniciativa legal deste género. A teoria de cidadania de Kymlicka (‘Zoopolis: A Political Theory on Animal’) divide os animais em três categorias: animais domésticos, que basicamente inclui os animais de companhia e os criados na agro-pecuária; animais selvagens; e animais que estão no limiar entre os dois grupos anteriores, como os pombos, esquilos e outros adaptados a uma vida entre os humanos, ainda que não estejam sob o seu cuidado directo. Cada diferente relação humano-animal irá pressupor implicações legais distintas. Animais domésticos seriam assim cidadãos, animais selvagens teriam soberania e animais-charneira seriam tratados como cidadãos. A parte mais importante desta sugestão é que os animais domésticos teriam o direito prima facie de partilhar espaços públicos, e causar dano a um cidadão constituiria um acto criminoso. De um ponto de vista legal, esta sugestão é arriscada. Uma vez que há acordos internacionais e organizações como a ONU que requerem uma intervenção de urgência em caso de massacre em massa num dado país, poder-nos-emos interrogar sobre o que esta perspectiva implicaria relativamente ao abate de um rebanho de gado. 

AO: Os animais têm direitos legais hoje em dia? 

OV: As actuais leis relativas aos animais tomam a perspectiva do bem-estar, e regulam usos específicos de animais. Estas leis são tolerantes ao sofrimento indissociável das práticas que envolvem a criação de animais para consumo, ou em investigação biomédica. A maior parte das leis nacionais apenas reconhece personalidade jurídica aos humanos, sendo os animais propriedade. Em contraste com a abordagem do bem-estar, vários países têm adoptado leis que contêm elementos de direitos legais dos animais, como o direito à vida, ou o da liberdade de tortura. Assim, os direitos dos animais existem de facto na legislação nacional de alguns países, mas não de modo sistemático, pois não reflectem os direitos humanos. Um exemplo bem conhecido é o dos direitos conferidos aos grandes primatas em Espanha, e que incluem o direito à vida, a protecção da liberdade individual e a proibição da tortura.

Como salientei, há uma grande diferença entre estes direitos dos animais e direitos humanos básicos. Os direitos humanos estão incorporados no sistema legal, mas também diferem em ‘profundidade’. Os direitos dos animais são referentes a necessidades biológicas: direito à liberdade da tortura, direito ao acesso a recursos naturais, etc. Os direitos fundamentais dos humanos são muito mais complexos: direito à privacidade, direito a viver, existir; direito a ter família, de possuir propriedade, de livre expressão, de segurança, de ter um julgamento justo, de ser considerado inocente até prova em contrário, de ser reconhecido como uma pessoa, direito ao trabalho, etc. 

AO: Parece-me que aquilo de que falaste aqui é mais se os animais têm ou não protecção legal, mas não tanto se têm ou não direitos. Ou ambas são a mesma coisa, de um ponto de vista jurídico? 

OV: Não há consenso, a este respeito. A protecção aos animais e os direitos dos animais sobrepõem-se bastante. Muitos consideram que as leis anti-crueldade reconhecem direitos porque os animais são protegidos pelo seu valor intrínseco e não pela perda financeira que a sua perda possa significar para os seus donos, por exemplo. Os animais são protegidos nas actuais leis anti-crueldade porque são seres sencientes, sendo claramente capazes de sofrimento e felicidade. Mas, na minha opinião, estas leis não constituem reconhecimento de direitos porque não clarificam o estatuto legal dos animais. Se o reconhecimento legal dos animais fosse igual ao dos humanos, os animais deveriam ser considerados como personalidades jurídicas e os humanos não poderiam ter acções para com eles que não pudessem ter com outros humanos equiparados. Nenhuma experimentação animal, nenhum consumo de carne, nenhuma excepção. Mas os direitos são um tema controverso na lei relativa aos animais, havendo no entanto iniciativas mais moderadas para adaptar o estatuto legal dos animais às leis para os humanos.

Há raças perigosas?

No meu entender, a resposta curta à pergunta em epígrafe será SIM. Para a resposta mais comprida, sugiro ao leitor que me acompanhe nas próximas linhas.

Parece-me evidente que há, de facto, cães que são perigosos. é necessário contudo reflectir sobre quais os factores que determinam a perigosidade de cada animal, e se a raça poderá ser um deles. A legislação portuguesa é clara nesse sentido, definindo um restrito grupo de raças como merecedoras de particular atenção. Assim, para além do conceito de “cães perigosos” – isto é, aqueles indivíduos comprovadamente perigosos, por terem atacado humanos ou outros animais – temos também ao nível legal “cães potencialmente perigosos”, nomeadamente aqueles que: 


Devido às características da espécie [???], ao comportamento agressivo, ao tamanho ou à potência de mandíbula,
possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais, nomeadamente os cães pertencentes às raças previamente
definidas como potencialmente perigosas em portaria do membro do Governo responsável pela área da agricultura,
bem como os cruzamentos de primeira geração destas, os cruzamentos destas entre si ou cruzamentos destas
com outras raças, obtendo assim uma tipologia semelhante a algumas das raças referidas naquele diploma regulamentar
São estas as raças: Cão de fila brasileiro, Dogue argentino, Pit bull terrier, Rottweiller, Staffordshire terrier americano, Staffordshire bull terrier, Tosa Inu. Contudo, o número limitado de raças contempladas e a dificuldade em definir  as tipologias das mesmas impõem dificuldades na aplicação da legislação. Para além disso, estas listas são sempre difíceis de justificar e interpretar. São feitas com base em que critérios (estatísticos? análise comportamental? morfologia do animal? pareceres de especialistas? de criadores?) e pode estar sujeita a grande subjectividade, pela força de factores geográficos, históricos, culturais, e até pessoais. 
Mas voltemos à questão inicial: haverá, de facto, raças potencialmente perigosas? Foi já defendido (e muito debatido)  neste blog se os factores morfológicos – como o porte e a força da dentada – não serão os principais factores determinantes para a perigosidade do animal.  Concordo em parte, pois o mais violento dos Chihuahuas não representará perigo de vida para ninguém. Contudo, e como já referi nos comentários que fiz a esse post  – escrito a propósito de um artigo de opinião de Mónica Roriz – há também factores genéticos do comportamento, muitos deles associados a algumas raças em particular, e que não podem ser ignorados. (vide Lockwood, por exemplo) 
Independentemente do seu temperamento, em nenhuma circunstância
o cão da esquerda apresentará perigo de vida para seres humanos.
Já  para o cão da direita, isso dependerá do seu temperamento. 
No clássico livro Genetics and the Social Behavior of the Dog, (1965) Scott and Fuller evidenciaram que diferentes raças tem diferentes graus – bem como tipos – de agressividade, sendo portanto a mesma resultado da selecção artificial dessa característica ao longo de séculos.
De leitura mais rápida, mas também muito útil para a compreensão do factor “raça” na agressividade é The Ethology and Epidemiology of Canine Aggression”  de  Randal Lockwood (e que disponiblizo mais abaixo neste post). 
Um exemplo que considero particularmente interessante neste artigo de Lockwood é a diferença entre o comportamento de um Staffordshire Terrier (Inglês ou Americano) cujos antecessores não tenham  sido seleccionados para combate há mais de 50 gerações, e o de um Pit Bull Terrier Americano de uma linhagem continuamente seleccionada  para combates. Ainda que fisicamente indistinguíveis, a diferença entre estes dois indivíduos ao nível da  tendência para a agressão inter-específica é grande, mostrando-nos como a genética canina pode ser manipulada por selecção artificial para a agressividade.  

 epidemiology of canine aggression randal lockwood pdf

Dito isto, podemos facilmente estabelecer uma relação linear entre raça e agressão? Como seria de esperar, tal não se afigura fácil, de todo. Primeiramente, porque a causa dos incidentes com cães é multifactorial.  Por outro lado, não há desde Scott e Fuller estudos sistemáticos significativos de avaliação do grau de perigosidade de cada raça, para os humanos (e sobretudo crianças e idosos, os mais vulneráveis, como reportado por Lockwood) ou outros animais. Para além disso,  restringir essa avaliação apenas a raças definidas irá ignorar as suas diversas variantes e crossbreeds. 

Então, o que fazer? Cada animal um caso, e é improvável que consigamos ter soluções “universais” para cada raça, ou mesmo cada indivíduo. Uma possível solução poderá passar pela contribuição dos veterinários para a caracterização do temperamento  de cada animal, do seu potencial para a agressividade (tendo em consideração factores como raça, idade, sexo, historial do animal, condições dos donos, ou outros) e das consequências de um eventual ataque, advertindo os proprietários sobre os cuidados a ter para evitar situações perigosas. Outras medidas poderão incluir o registo e acompanhamento destes animais pelas autoridades.

Independentemente de todos os cuidados que se possam ter com estes animais, tenho ao nível pessoal alguns problemas com a criação e aquisição deliberada de cães tendencialmente perigosos, principalmente por parte de quem não tem formação nem recursos para lidar com eles, não havendo grande controlo a esse nível. Para além disso, ainda que reconheça que os factores ambientais são também determinantes para a perigosidade de cada animal e no despoletar de situações de perigo, reconheço também que estes factores ambientais são muitas vezes desconhecidos, imprevisíveis e por isso difíceis de controlar.

Face a isto, e a nível pessoal, costumo recomendar a quem pretende partilhar a sua vida com um cão e possa escolher, que opte por cães de menor porte – com a vantagem de poderem ser mais longevos – e de trato tão dócil quanto for possível determinar pela raça e historial do animal, principalmente se viver com crianças ou idosos. Mas outras opiniões são bem-vindas…

O difícil conceito de direitos


Dois fenómenos relacionados, na esfera de debate publico em Portugal neste momento e que pelo tema pede comentário animalógico:   

I) A quantidade de subscritores a uma petição pública pedindo para deixar viver o cão que causou a morte de uma criança de 18 meses

Neste momento vai em mais que 65 000. É verdade que apenas é 0.5% da população portuguesa e que o acto de subscrever a uma petição on-line não exige muito esforço. Por outro lado, 4000 destes a subscrever a uma petição sobre, por exemplo, o tratamento de animais na lei portuguesa, seria suficiente para levar a uma apreciação no Plenário da Assembleia de Republica 

A petição em si é demasiado curta para permitir grandes conclusões sobre a base dos seus argumentos. De facto, parece mais baseada numa reação espontânea contra o que quem escreveu entende como injustiça no tratamento do cão do que numa coerente visão sobre o estatuto do animal na sociedade humana. Mas mostra que em Portugal em Janeiro de 2013, na plena crise económica, este assunto preocupa.   

2) O frenesim com que comentadores com espaço privilegiado respondem declarando que os animais não têm direitos.  

Isto não é um novo fenómeno. A primeira vez que o encontrei foi há tanto tempo que o formato era um recorte do jornal que já perdi. A mais recente anterior, do qual tomei nota, foi o Paulo Rangel numa entrevista no jornal Sol (ver ‘recorte digital’ aqui). A argumentação anda quase sempre a volta da consideração que os animais não podem ter direitos porque não podem ser responsabilizados pelos seus atos, ou não têm direitos porque só os seres humanos têm porque os seres humanos ocupam um lugar de excecionalidade (cuja justificação ora não é explicado, ora é baseado nesta capacidade cognitiva anteriormente referida). Tanto Rangel acima como Daniel Oliveira (no jornal Expresso, em comentário à petição) usa o segundo argumento, Henrique Monteiro (também no Expresso) tem uma explicação relacionada mas ainda mais simples: “não podem ter direitos, uma vez que o direito tem por objeto a regulação entre pessoas”. 

Bem, se fosse tão simples descartar o conceito de direitos dos animais, podíamos igualar a alquimistas os muitos académicos (filósofos e juristas) que dedicam horas de trabalho e páginas de escrita à questão. Não é, evidentemente, o caso. E por ser um assunto complexo e parcialmente fora do domínio dos animalogantes da casa, pedimos um comentário a uma especialista em direito e em ética animal, a ser publicado brevemente.  

Entretanto, aproveito para declarar que ao contrário do mito prevalecente e ao contrário do declarado na crónica do Henrique Monteiro, não existe uma Declaração de UNESCO dos direitos dos animais. A entrada lusófona da Wikipedia esclarece corretamente do que se trata: “uma proposta para diploma legal internacional, levado por ativistas da causa pela defesa dos direitos animais à UNESCO em 15 de Outubro de 1978”. Portanto, algo muito diferente do que a UNESCO a proclamar!

Bo Algers sobre a Conferência Global sobre Bem-estar Animal

Anna Olsson: Olá Bo Algers (Professor de Higiene e Bem-estar Animal na Universidade Sueca de Ciências Agrárias – SLU). Regressaste recentemente de Kuala Lumpur, na Malásia, onde participaste, na qualidade de investigador, na terceira Conferência Global sobre Bem-estar Animal, organizada pela OIE. No panorama global, é o bem-estar animal um tema importante?
Bo Algers: A protecção dos animais tornou-se numa questão cada vez mais importante também numa perspectiva global. Para a OIE, a organização internacional de saúde animal, que trata principalmente de doenças infecciosas em animais, esta questão tornou-se importante uma vez que para controlar doenças infecciosas é necessário muitas vezes matar um grande número de animais. Os métodos de abate têm sido questionados já que existem casos de animais que foram incinerados vivos. A OIE teve, por isso, de desenvolver padrões para o abate de animais em conjunto com o controlo de doenças. A organização também desenvolveu regras de maneio dos animais durante o transporte e abate e outras regras estão a ser desenvolvidas. Mas nesta conferência foi interessante perceber que, por exemplo, existe uma organização pan-Africana de bem-estar animal, que a Malásia (que organizou a conferência) está prestes a lançar a sua primeira lei de protecção animal e que há um interesse geral nestas questões, e não só da parte de órgãos governamentais, em muitos países em desenvolvimento.

AO:
Quais os principais pontos discutidos nesta conferência?

BA:
Esta conferência abordou, acima de tudo, questões ligadas às circunstâncias regionais, tais como os aspectos culturais e religiosos. Por exemplo, a questão do bem-estar animal durante o abate halal foi tema de um workshop dedicado. Muitos expressaram a necessidade de abertura e transparência durante a produção, transporte e abate para garantir que essas atividades são feitas de uma forma que a sociedade possa aceitar. Outra questão levantada pela OIE foi a das normas que podem ser consideradas como barreiras comerciais razoáveis no comércio internacional. A OIE defendeu que apenas as suas próprias normas possam ser consideradas motivos válidos. Mas muitos interessados defenderam um ponto de vista diferente, argumentando que os países com padrões mais elevados de bem-estar deveriam ser capazes de os usar em vez das normas da OIE. Nesta questão, há uma divisão entre, em especial, os estados membros da UE e outros países. Vários participantes de estados membros da UE argumentaram que, se se evita apelar a normas mais abrangentes, não haverá nenhuma motivação para avançar com a questão do bem-estar animal. A Suécia, entre outros países, pode ser um modelo importante na defesa desta questão no âmbito da OIE.
 

AO: Para mim foi um momento revelador quando ouvi os responsáveis por assuntos em bioética na UNESCO falarem sobre a reacção que tinham recebido de países em desenvolvimento: “Vocês discutem diagnóstico pré-natal e consentimento informado, para nós bioética centra-se em ter água limpa e cuidados básicos de saúde”. Imagino que haverá distâncias correspondentes no que diz respeito à saúde e bem-estar dos animais. Como se lida com isso numa discussão global?  

BA: Eu penso que muitos ficariam surpreendidos com a rapidez com que estes assuntos granjearam uma atenção global. E não é alheio o facto de ser precisamente quando os animais são transportados, manuseados e abatidos que pode haver consequências financeiras directas do mau trato aos animais, sendo a quantidade de carne produzida reduzida. Penso que isto é relevante quer para consumo interno, quer para exportação. Por isso para muitos pequenos e grandes intervenientes esta questão é importante. Ademais, aumentar o nosso conhecimento significa que o bem-estar animal é cada vez mais visto como parte da noção de “uma só saúde”. As discussões entre os cerca de 280 delegados de 72 países não pareceram de todo artificiais, mas antes muito relevantes.

Seminário sobre Bem-estar Animal – Coimbra

O Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos Veterinários, em parceria com a Direcção de Serviços de Alimentação e Veterinária da Região Centro – DGAV e com a colaboração da Escola Universitária Vasco da Gama, está a organizar um Seminário referente aos temas:

– RAÇAS POTENCIALMENTE PERIGOSAS: Comportamento;

– BOVINOS E SUÍNOS: Bem Estar animal na Exploração – Desafios em 2013;

– INSPEÇÃO SANITÁRIA: Abates de Emergência.

O evento realizar-se-á no dia 10 de Novembro de 2012, no Auditório da Escola Universitária Vasco da Gama, em Castelo Viegas em Coimbra.

Inscrições até às 16h00 do dia 09 de Novembro de 2012.

Serão os animais exóticos bons animais de estimação?

Texto escrito por Claudia Correia, Filipa Abreu e Maria da Paz, alunas da PG de Bem-Estar e Comportamento Animal do ISPA

O desejo de adquirir um animal diferente tal como um papagaio, salamandra, cobra, furão ou até mesmo um primata tem vindo a crescer, sendo actualmente considerado uma “moda” com os media a actuarem como um dos principais agentes de influência. O desafio de manter uma espécie exótica, o suposto estatuto social de ter um animal raro ou simplesmente a facilidade na sua obtenção contribuiram para que a comercialização destes animais tenha vindo a aumentar nos últimos anos em todas as partes do Mundo. E não falamos só em comércio legal, pois o tráfico destes animais é o terceiro maior negócio ilícito do planeta.

O tráfico de animais exóticos põe em perigo a biodiversidade do planeta e é uma das principais causas de extinção de espécies, uma vez que provoca uma diminuição da população animal até ao limite crítico para a sua sobrevivência. Estudos indicam que nove em cada dez animais que são vendidos ilegalmente acabam por morrer devido a captura e transporte inadequados e por vezes até cruel (ver figuras). Portugal é um dos países usados como rota, sendo muitos casos detectados pelo ICNB.

No comércio legal, os comerciantes são obrigados a ter um certificado de importação, em animais que não são criados no país, e a reger-se pelas normas dos anexos da CITES. Se por um lado há uns que defendem que a legalização de comerciantes e criadores poderá ser uma medida que contribuirá para a perservação e manutenção das espécies e acabar com o tráfico ilegal, outros acreditam que a melhor solução seria não comprar animais exóticos em qualquer situação e que esta medida é imoral, dando outras opções para combater este crime, por exemplo, apelando à sociedade civil (Do Wild Animals Only Belong In the Wild?).


Fonte: Padrone, J. M. B., 2004. O comercio Ilegal de animais silvestres: avaliação da questão ambiental no estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Pos-Graduação.

Mas será correcto o uso destes animais como animais de estimação?
São muitos os futuros donos que ao levarem um animal destes para suas casas não pensam nos riscos e problemas tanto para o animal como para si próprios. Adquirir um destes animais implica alguns riscos inerentes à saude pública, tais como transmissão de doenças e ameaças de ataque ao ser humano tendo em conta que estes animais são selvagens e o seu comportamento será sempre imprevisível. Para além disso, o bem-estar animal pode também ser comprometido se as condições físicas e o maneio não forem adequados. A inexperiência e falta de conhecimento dos compradores levam a situações de má nutrição, stress e solidão, que resultam em problemas graves de saúde, física e comportamental, e mesmo à morte. Muitas vezes por não atingirem as expectativas iniciais dos donos, por serem animais de elevada longevidade ou por atingirem dimensões maiores que inicialmente previstas, estes são doados a instituições ou abandonados, podendo pôr em perigo espécies autóctones.

No entanto, e não referindo apenas aspectos negativos da aquisição deste tipo de animais, as situações acima referidas podem ser minimizadas através do enriquecimento ambiental que consiste em criar um ambiente mais complexo e interativo de modo a estimular os seus comportamentos naturais e aumentar o nivel de bem-estar. Mas se a avaliação do comportamento dos animais é essencial para averiguar o seu bem-estar então quais serão as condições mínimas essenciais para que seja eticamente aceitável ter um animal deste tipo? E será, na vossa opinião, a legalização deste comércio uma solução para o problema?

Os animais não são palhaços

De Ana Isabel Campos, Ana Diamantina Barbosa e Liliana Silva, alunas do Pós-graduação em Comportamento e Bem-Estar Animal, ISPA.

No decurso da última actualização da legislação para animais de circo em Portugal, achamos pertinente lançar um olhar sobre este assunto em prol do bem-estar dos animais de circo. Esta legislação limita a utilização dos animais de circo, uma vez que os detentores destes animais terão que os registar às autoridades competentes. Fica também proibida a aquisição denovos exemplares e a reprodução dos que já têm.

Como seria expectável, foi umaquestão que gerou muita polémica, não havendo consenso. Por um lado, os directores de circos com animais argumentam ” (…) temos circo com e sem animais e o primeiro tem sempre mais público” e, apelando ao público infantil, o circo “(…) mostra os animais a muitas crianças que nunca viram um elefante ou uma zebra” (Filomena Cardinali).Por outro lado, temos as associações de protecção animal a apoiar a legislação,apesar de defenderem que esta é “bastante moderada”, já que a lei “não tem uma implicação directa para os animais que já estão nos circos…”, até porque muitos deles ainda viverão muitos anos.

Campanha contra circos com animais
Serão os argumentos dados pelos detentores destes puramente económicos, tradicionalistas e a sua preocupação com o bem-estar dosanimais baseia-se apenas se afectar os lucros? Ou, como afirma Filomena Cardinali “Os nossos animais são muito bem tratados, fazem parte da família docirco”. Por muito boas que sejam as intenções dos detentores destes animais, consideramos que continua a ser uma violação das liberdades dos animais: nenhum animal teve o livre arbítrio para escolher estar num circo, são mantidos em condições necessárias de espaço mínimas e apesar de alguns circos usarem técnicas de reforço positivo para treinarem os animais, chega-nós mais frequentemente imagens de um chicote, espigão ou bastão nas mãos dos tratadores do que um saco com guloseimas.


Mesmo com as novas restrições, há espécies ainda permitidas pela legislação, nomeadamente animaisdomésticos. Não é lógico, argumenta Miguel Chen: “Porque sofre mais um tigre (…) que um cavalo?”. Tem razão? São comparáveis as condições necessárias para manter um cão ou para um leão? Há de se lembrar que os animais domésticos têm milhares de anos de contacto com o Homem enquanto os animais de circo, de especies selvagens mesmo criados e nascidos em cativeiro, não passam a ser domesticos. No entanto, a utilização de animais domésticos não é ausente de problemas: os problemas de espaços escassos de alojamento, viagens longas e frequentes e metodos de treino baseados aplicam-se também a estes animais. Não esquecendo o sofrimento dos animais, na base da criação desta legislação está também a segurança pública.Há indícios de abandono de animais selvagens na via pública e de ataques quer a tratadores,quer ao público.

Pessoalmente, concordamos com a implementação da nova legislação como primeiro passo para a protecção dos direitos destes animais. E já existem iníciativas mais radicais. Em certos municípios de Portugal, como em Sintra e Cascais, circos com animais são proibidos, e o mesmo já aconteceu ao nível nacional em por exemplo Inglaterraa e Bolívia. 

Como alternativa, queremos chamar a atenção aos circos sem animais que são um exemplo de valores positivos, em que a criatividade fala mais alto do que a dignidade perdidados animais, como é o caso do Cirque du Soleil. Embora a directora criativa deste circo não seja contra a exibição de animais em circos, esta encontra-se preocupada com o bem-estar destes animais tendo em conta que “Ao contrário do ser humano, um animal não toma a decisão de ser artista de circo porque não tem essa capacidade de escolha” e ainda afirma que “Se não puder haver animais no espectáculo, então o ser humano vai ter que desenvolver muito mais a sua criatividade. E isso é óptimo!”.


O CNECV pronuncia-se sobre a Ética da Experimentação Animal

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida emitiu recentemente o parecer 62/CNECV/2011, relativo aos aspectos éticos da Experimentação Animal. Foi com surpresa que tomei conhecimento do mesmo, uma vez que constitui um desvio da habitual linha de intervenção deste organismo, habitualmente dedicado à avaliação dos desafios e riscos apresentados por novos desenvolvimentos médicos e biotecnológicos para a sobrevivência, segurança e dignidade humanas, uma abordagem na linha do conceito de Bioética proposto  por V.R. Potter (1970) (que mais tarde a ampliou), ainda enraizada na Ética Médica clássica.

Tendo a experimentação animal por objectivo o benefício da humanidade e estando os “custos éticos” deslocalizados para outras espécies – habitualmente fora da esfera de consideração do CNECV –  tem este parecer especial relevância, uma vez que, a par com o anterior parecer acerca da biologia sintética, vem alargar a esfera de intervenção do CNECV para outros domínios da “nova” bioética, que abarcam dilemas éticos noutros ramos das Ciências da Vida com consequências ambientais e sociais, como a Ética Animal.

Segundo o CNECV, este parecer foi suscitado pela “crescente consciencialização da generalidade dos cidadãos acerca do valor de que se revestem todas as suas formas de vida e especificamente a vida animal, bem como da responsabilidade que assiste à sociedade na sua protecção“. É ainda reconhecida a pertinência deste parecer, no contexto da publicação da Resolução da AR n.º 96/2010 para criação de uma rede nacional de biotérios e promoção dos 3Rs; e do actual momento, em que Portugal se prepara para transcrever para a legislação nacional a Directiva Europeia que regula o uso de animais para fins científicos.  

Parte assim este documento, à primeira vista, de uma motivação contratualista de obrigação para com os interesses da sociedade (humana!) no tema, mais do que por um sentido de obrigação moral para com os animais; algo perfeitamente legítimo, até considerando as habituais competências do CNECV. Contudo, a apreciação do problema ético deixa transparecer uma consideração pelos interesses dos próprios animais.

Murganho com um gene que afecta o crescimento do pêlo
suprimido (esq.) junto a um congénere  normal (Fonte)

A justificação da experimentação animal é desde logo reconhecida na nota introdutória, sendo este uso de animais referido como o “que suscita mais e melhores argumentos para manter inalterável um amplo e fácil acesso à utilização de animais”. No entanto, consideram ser também o que, “em termos gerais, pode causar mais elevados níveis de dor, sofrimento, desconforto, prejuízo e eliminação de animais”. 

Estas são, na minha opinião, concepções erróneas do actual uso de animais em biomedicina. Por um lado, não creio que a experimentação em animais seja sempre  justificável, nem considero que dar “amplo e fácil acesso” ao uso de animais seja uma política que conduza a uma eficaz implementação dos 3Rs. Por outro lado, muitas  outras actividades humanas obrigam a grande ou prolongado sofrimento dos animais – como a produção intensiva de animais para consumo, ou a lide taurina, entre outros – ao passo que muitos estudos em animais não implicam stress ou sofrimento relevante. Mesmo em  estudos em doenças severas, a implementação de boas práticas de bem-estar pode reduzir consideravelmente o sofrimento dos animais (por vezes ao ponto de não haver sofrimento) e proporcionar melhores condições de vida. Deve-se admitir, contudo, que falta conseguir que essas práticas sejam reconhecidas e implementadas universalmente. 
O documento faz uma breve (e, compreensivelmente, um pouco simplista) resenha histórica do uso de animais como fonte de conhecimento biomédico, da antiguidade até aos dias de hoje, fazendo referência aos movimentos de contestação ao uso de animais e aos primeiros esforços legislativos para a regulamentar. De salientar o facto da manipulação genética surgir como questão eticamente relevante, ainda que não seja assumida uma posição clara para esta questão. 
Mais interessante é a parte dedicada ao contexto socio-político da investigação em Portugal e ao “atraso” do país relativamente à regulamentação e ética da experimentação animal. Este atraso é apresentado como uma oportunidade para “experimentar vias de execução [da nova legislação] que assegurem o bem-estar dos animais que não terão necessariamente que ser rígidas e abrangerem todo o território nacional, mas que podem começar com experiências piloto com a participação, por exemplo, das universidades ou dos Laboratórios Associados” uma proposta que, confesso, não compreendi de todo. 
A problematização ética é de seguida apresentada com clareza, resumida como sendo um conflito entre “o bem-estar dos animais e os benefícios decorrentes da prossecução da investigação científica”. À clássica visão antropocêntrica que vê animais como meios através dos quais os humanos alcançam fins, e não como fins em si mesmos, é contraposta  a filosofia utilitarista de Jeremy Bentham (séc. XVIII), que coloca os animais como merecedores de consideração moral pela sua capacidade de poder sofrer e sentir prazer. É ainda perspectivada a visão (no parecer denominada como “zoocêntrica”, um termo que consideramos não ser apropriado) dos contemporâneos e influentes filósofos Tom Regan e Peter Singer que, não obstante as suas diferenças, apontam para um valor da vida animal que não depende da consideração humana, sendo-lhe intrínseca.  Perante este  conflito entre a necessidade da investigação científica e a protecção dos animais, “realidades distintas, mas ambas percepcionadas como um bem e um valor em si mesmo“, coloca o Conselho como questão prática a necessidade de encontrar um equilíbrio entre estes dois valores
Sem surpresas, os 3Rs de Bill Russell e Rex Burch são apresentados como um compromisso entre estes dois valores e um caminho para o progresso melhorar o bem-estar animal e diminuir o número de animais utilizados, realçando-se o papel preponderante destes princípios na idealização da recente Directiva Europeia (2010/63/UE), da qual descrevem os pontos mais relevantes e reformistas, principalmente para Portugal, consideravelmente atrasado na legislação, regulamentação e supervisão do uso de animais em ciência.

Uma representação do papel dos 3Rs na melhoria do paradigma da experimentação animal
(Fonte: FRAME)
Algo que diferencia documento de outros semelhantes é a análise de alguns pontos da Directiva 2010/63/EU à luz de questões relevantes na ética médica, a qual, sem dúvida, é a área de maior relevância para este organismo. Assim, é realçado o contraste entre a inclusão de animais no último terço do tempo da gestação no âmbito da regulamentação da directiva e a crescente liberalização do aborto, que constituiu uma menor protecção da vida embrionária humana*. Também a crescente restrição ao uso de  animais merece critica do CNECV, caso a procura por alternativas levar a um aumento do uso de células estaminais germinais embrionárias humanas, que levanta questões éticas específicas.

* A mais recente legislação portuguesa (de 2007) permite a interrupção voluntária da gravidez por escolha da mulher apenas até às 12 semanas, e em caso de malformação grave até às 24 semanas, estando a partir daí  (o que inclui o 3º trimestre) todos os fetos viáveis protegidos por lei. Ademais, a directiva não proíbe o uso de formas fetais, mas apenas inclui estas na sua regulamentação. O comentário exposto pela CNECV, assim, parece ser mais uma constatação, em abstracto, do existente contraste entre a crescente protecção da vida pré-natal animal, face à diminuição dessa protecção nos fetos humanos. 

Quanto ao parecer emitido propriamente dito, o mesmo aponta, na generalidade, para a necessidade de uma rápida e eficaz transposição da Directiva 2010/63/EU e dos princípios dos 3Rs consagrados na mesma, propondo algumas medidas que agilizem a sua efectiva aplicação na prática. Sugerem acções do tipo “hard power”, nomeadamente uma maior supervisão e fiscalização de todos os  intervenientes no uso de animais em ciência (prevendo sanções a quem não cumpra a regulamentação) e a recusa de financiamento a quem não der garantias de boas práticas. Como medidas de “soft power”, sugerem a promoção de melhores práticas através de formação para os 3Rs, informar os investigadores sobre a legislação mais recente e consciencializá-los para os aspectos éticos do seu trabalho. 
Estas propostas, em termos gerais, não trazem nada que não esteja já contemplado pela actual legislação europeia, ou que não seja já uma prática corrente nos centros de investigação europeus com melhores padrões de bem-estar animal e que em alguns institutos de excelência em Portugal se tem procurado seguir. Este documento, contudo, vem dar uma voz credível e influente à mudança que urge implementar no país a respeito do bem-estar de animais de laboratório e mais legitimidade aos membros da comunidade científica em Portugal que, através da sua actividade, têm procurado ser agentes activos dessa mesma mudança.