A comunidade científica ainda não resolveu definitivamente a questão de quando, onde e como foram domesticados os primeiros cães a partir do lobo cinzento, o Canis lupus.
Têm sido encontrados
esqueletos de lobos junto a vestígios humanos com até cerca de 500.000 anos, o que significa que estes co-existiram com várias espécies do Género
Homo, incluindo o
Homo Erectus, e muito provavelmente foram caçados pela sua carne e pelagens.
Estudos do ADN canino e do lobo sugerem que a divergência genética entre estes terá surgido há mais 100.000 anos, ou seja,
várias dezenas de milhares de anos antes dos primeiros humanos modernos chegarem à Europa e terem extinguido animais como o tigre-dentes-de-sabre ou o mamute. Esta data ultrapassa largamente a idade dos mais antigos registos arqueológicos de proto-cães, que remontam até -36.000 anos. Uma possível explicação é que poderá ser impossível distinguir entre vestígios de lobos e dos primeiros cães, cujas diferenças poderão não ter sido ao nível da morfologia, mas sobretudo ao nível do comportamento, que tem uma base biológica e, consequentemente, genética.
É provável que
crias órfãs de lobo tenham frequentemente sido adoptadas e criadas por humanos como um costume cultural n
o Paleolítico. Tal não significava contudo verdadeira domesticação, mas antes adestramento de animais selvagens, que assim que começassem a manifestar maior agressividade (o que é previsível num animal selvagem), seriam afastados ou mortos. Apesar de haver quem considere que foi este hábito que levou ao surgimento do cão, é mais consensual a teoria que o processo inicial de domesticação se tenha dado por “auto-domesticação”, ou seja, por força da vantagem reprodutiva daqueles melhor adaptados – por serem mais tolerantes à presença humana e/ou terem uma menor distância de fuga, por exemplo – para viver de restos de comida deixados pelas primeiras aldeias. A ser verdade, não deixa de ser curioso que tenha sido o cão, e não o homem, o primeiro a “inventar” a domesticação.
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Foto de Robert Clark para a National Geographic (é evidente aqui a Neotenia resultante do processo de domesticação, tendo o cão características físicas marcadamente infanto-juvenis) |
A domesticação propriamente dita resulta de um processo de modificações genéticas, morfológicas e comportamentais de uma determinada espécie por acção do homem. Assim, para conseguir as respostas, deveremos estudar no seu conjunto os indícios genéticos, paleoarqueológicos e biogeográficos.
A revista Nature de 18 de Junho revela que, não obstante ser consensual entre os geneticistas em que aspectos genéticos os cães e os lobos diferem, há grandes divergências relativamente a quando e como se deu o processo de domesticação, e qual a relação temporal entre essas alterações genéticas e o processo de domesticação. Isto é, se foram um efeito da domesticação, ou a sua causa inicial (a tal “auto-domesticação”), ou se tal variou consoante os traços genéticos e as circunstâncias históricas e geográficas em questão.
Indo ao encontro da hipótese que o advento da agricultura no Neolítico serviu de catalisador para o processo de domesticação propriamente dito, Erik Axelsson e Kerstin Lindblad-Toh propuseram este ano num artigo que o aparecimento há 10.000 anos de genes para a digestão do amido – que terá permitido viver comensalmente de restos de alimento e colheitas dos seres humanos – terá ditado a separação destes canídeos dos seus antecessores exclusivamente carnívoros, dado subsequentemente origem à sua domesticação.
Greger Larson, arqueogeneticista da Universidade de Durham
contesta veemente esta conclusão, dados os registos arqueológicos de ossos similares aos de cães modernos que precedem em vários milhares de anos a data proposta por Axelsson e Lindblad-Toh (distinguir ossos de cão e de lobo é no entanto tão
mais difícil quanto mais recuarmos no tempo), situando assim o momento da domesticação no Paleolítico Superior. Larson argumenta – e tendo a concordar com ele – que não há razão para pensar que a domesticação do cão não possa ter precedido o aparecimento destes genes em particular, pelo que seria infundado apontar este acontecimento, ainda que importante, como equivalente ao início da domesticação.
Atendendo às provas arqueológicas, a gradual aproximação dos lobos ao homem deu-se provavelmente em acampamentos semi-sedentários de caçadores-recolectores, e portanto num período pré-agrícola. O advento da agricultura poderá ter tido, não obstante, um importante papel na diversificação das diferentes linhagens de cães, uma especialização para tarefas como guardar rebanhos, ajudar na caça ou proteger a comunidade.
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| Diferentes raças caninas, fotografadas por Robert Clark para a NatGeo (fonte) |
Mas há quanto tempo se iniciou o processo de domesticação, afinal?
Dados recentes publicados por cientistas chineses (
Wang et al, 2013) fazem recuar a domesticação do cão até há -32.000 anos na China, região onde actualmente não existem lobos selvagens, mas que t
inha já sido proposta como provável origem para o cão. Creio, no entanto, que a existência de um momento e local exacto para a domesticação de lobos em cães seja algo
difícil de aceitar para a generalidade da comunidade científica, no seio da qual é mais ou menos consensual que este processo foi bastante complexo, tendo ocorrido mais do que uma vez ao longo da história, em mais de que um local e a partir de mais que uma população de lobos. Ademais, desde os anos 90 que estudos genéticos
apontam para a possibilidade de um frequente cruzamento de cães com diversas populações locais de lobos (e, portanto, de diferentes sub-espécies) ao longo dos tempos, o que poderá ter sido uma das causas para a enorme variedade genética encontrada nestes últimos. Isto é corroborado por um artigo recente (ainda em fase de pré-publicação, mas disponível em versão preliminar no
arXiv), e que propõe o início da divergência genética entre lobos e cães para um período situado entre – 11.000 a -16.000 anos.
Face a esta controvérsia, assiste-se agora a uma autêntica corrida entre equipas de investigadores para serem os primeiros a apresentar dados que compararem material genético extraído de fósseis antigos de cães e lobos paleolíticos. A
competição será aguerrida, uma vez que espécimes de fósseis deste tipo são muito raros, mas é consensual que esta abordagem trará uma nova luz a esta complexa questão.