A violência contra os investigadores não é uma brincadeira…

…a não ser para a PETA, claro. 
“Alguma vez lhe apeteceu esmurrar um investigador que use animais? Tem aqui a sua oportunidade!”. É assim que organização pelos direitos apresenta na sua conta de TwitterCage Fight, um jogo onde o jogador toma o lugar de um conhecido lutador de artes marciais que tem que agredir investigadores grotescamente caricaturados, em “laboratórios” apresentados como  masmorras sangrentas onde animais vão para serem torturados. 
Três cenários são apresentados (excluindo o nível final dentro de um ringue octogonal): uma universidade, uma instalação militar e um laboratório de uma companhia farmacêutica. Põe assim a PETA tudo “no mesmo saco”, colocando ao mesmo nível a investigação biomédica para benefício da saúde e segurança de humanos (e outros animais) e os testes de armas em animais levados a cabo nos Estados Unidos e outros países. A estratégia não é nova: associa-se uma prática que a generalidade das pessoas considera a priori inaceitável (como o uso de animais para fins militares) a outras mais de carácter e interpretação mais complexas – do ponto de vista ético, político, social e científico – de modo a sugerir que as últimas, por arrasto, são equiparáveis à primeira.

     
Cage Fight
Para evitar constrangimentos legais – ou não fosse nos Estados Unidos – surge no início do jogo o inevitável disclaimer, onde é ressalvado que agredir cientistas na vida real ainda é ilegal [ênfase meu]. O tom de desilusão da PETA não passa aqui despercebido.

Logo a seguir, um momento de autopromoção (é a PETA, não poderíamos esperar outra coisa), da parte de uma modelo pixelizada que felicita o lutador pela vitória no combate promovido pela organização. O que se segue é uma sucessão de situações absurdas, ofensivas e inacreditavelmente ignorantes, como se pode observar nas imagens. A mensagem que se pretende transmitir faz parte da “cassete” repetida ad nauseam por activistas dos direitos dos animais (inclusive em Portugal, como já reportei aqui e aqui): os investigadores são pessoas sádicas,  violentas, insensíveis e egocêntricas que torturam animais às escondidas e sem outro propósito que não o proveito próprio. A certa altura, depois do lutador eliminar o cientista, este grita em agonia “ai, o meu financiamento” (“my grant money!“, no original). 
Não me vou estender muito sobre a falsidade deste tipo de discurso, que já abordei antes (e foi já também abordada num post recente do Speaking for Research sobre este jogo). Para além disso, estas são imagens que falam por si. Mais importante é salientar que a violência contra os investigadores por parte de activistas radicais não é uma brincadeira, mas antes uma triste realidade (já abordada aqui e aqui). Casas e automóveis vandalizados e incinerados, ameaças, agressões, envio por correio de lâminas contaminadas com HIV ou destruição de laboratórios são apenas algumas das violentas estratégias usadas contra investigadores, suas famílias e instituições científicas. 
Como seria de esperar, a PETA nega que este tipo de iniciativa seja uma apelo à violência, algo de estranhar numa organização que vê maus tratos aos animais (e a sua promoção) nos mais variados jogos para crianças. Mas que diriam eles de um hipotético jogo “caça ao activista”? 
Apenas mais uma adenda: depois de jogar o jogo, apercebo-me que no mesmo a libertação dos animais é facultativa, mas a eliminação de todos os cientistas é obrigatória. 

Conferência Internacional em Alternativas à Experimentação em Animais – Dia Dois

O segundo dia seria dedicado inteiramente à temática das alternativas, tendo Horst Spielmann –  uma das pessoas mais respeitadas ao nível mundial na área do  desenvolvimento e validação de alternativas aos testes em animais – ficado encarregue de dar início às “hostilidades”.
Horst Spielman
Spielman fez uma apresentação esclarecedora do caminho até agora percorrido no desenvolvimento de alternativas aos testes toxicológicos em animais, alertando para os mais importantes desafios. De destacar a sua constatação que a harmonização dos testes toxicológicos desde os anos 80 e o resultante fim da repetição dos mesmos salvaram muitos mais animais que todas as alternativas até hoje desenvolvidas.

Enumerou os diversos centros para os 3Rs na Europa, e salientou a importância de desenvolver e validar alternativas para a os testes toxicológicos obrigatórios, cuja esmagadora maioria ainda requer o uso de animais (as alternativas até hoje desenvolvidas correspondem apenas a 3% do uso de animais em toxicologia). A iniciativa REACH, que pretende identificar e caracterizar cerca 30.000 compostos, torna o desenvolvimento destas alternativas ainda mais urgente, abrindo uma oportunidade que é largamente ignorada em Portugal.  Descreveu ainda diversos métodos alternativos, indo desde os testes em culturas de células aos modelos matemáticos para prever a toxicidade (ou a ausência dela, como no Halle’s RC model). Spielman não tem o carisma de Marc Bekoff, ou mesmo de Andew Knight. Contudo, deu à conferência uma contribuição lúcida, científica, pragmática e verdadeiramente informativa, dando-lhe assim credibilidade.  O seu  optimismo é algo contido, mas é, não obstante, optimismo.

De seguida, João Barroso do SeCAM (Services & Consulattion on Alternative Methods, sediado na Suiça) deu uma perspectiva do actual panorama político na UE, relativamente ao uso de animais em testes toxicológicos, e que para os cosméticos estará definitivamente banido a partir do próximo mês de Março deste ano. Foi algo penalizado pela abrangência da apresentação anterior, cujo conteúdo se sobrepôs um pouco à sua apresentação, mas apresentou não obstante vários testes alternativos e o objectivo futuro de integrar estes métodos para um maior valor preditivo.

Paulo J. Pereira (CNC-Coimbra) de seguida  abordou o potencial do uso de modelos in vitro em investigação básica (que representa mais de 60% do total de animais utilizados) e Ana Paula Pêgo (IBMC.INEB) mostrou como as conquistas da engenharia de tecidos na sua aplicação em medicina podem também ser usadas aproveitadas na forma de métodos não-animais em investigação biomédica.

A sessão da tarde focou-se sobretudo no uso de modelos in silico (isto é, modelos informáticos) em biomedicina. A abrir, Vanessa Diaz apresentou a iniciativa Virtual Physiological Human, um ambicioso projecto que pretende avançar o desenvolvimento e integração de modelos virtuais de processos fisiológicos de modo obter uma simulação que permita descrever e prever fenómenos fisiológicos de interesse. Seguidamente, Paulo Paixão centrou-se no uso de modelos informáticos com aplicação em farmacocinética.

Uma associação beneficente que
investe na ciência

Dando aos participantes algum descanso da  complexidade técnica das apresentações anteriores, Andrew Bennett (por troca com Mark Cunningham, que apresentou no 1º dia) apresentou o FRAME’s Alternatives Laboratory que dirige e o trabalho que este vindo a desenvolver nas últimas duas décadas, bem como os seus actuais projectos.  A particularidade deste laboratório, sediado  na Universidade de Nottingham, é ser directamente financiado e gerido por uma associação beneficente, uma abordagem que muitas associações deste tipo poderiam seguir, pondo o dinheiro onde ele é realmente necessário: na ciência e na inovação, sendo assim agentes activos de mudança.

O uso de alternativas ao uso de animais no ensino foi o tema de Nick Jukes, da Interniche e Luísa Bastos (INEB).

Longe de afirmar que um ensino de qualidade de Biologia ou Medicina Veterinária pode ser conseguido sem o contacto com animais, Jukes salientou antes que este deve ser conduzido num contexto natural. Assim, aspirantes a biólogos devem tomar contacto com os animais no seu habitat e os estudantes de Veterinária devem ter tanto contacto quanto possível com o tratamento de animais em contexto clínico, mas não na artificialidade de um
laboratório.

Poster apresentado sobre o Projecto Rodentia

Na sessão de posters apresentei um projecto que se situa um pouco entre estas duas situações, e que colocou em salas de aula de 1º ciclo animais de laboratório em espaçosos e enriquecidos habitats artificiais. Os benefícios didáticos foram diversos e os animais apresentaram-se sempre de boa saúde e bem-estar, o que abre lugar à possibilidade de ceder roedores de laboratório (algo já aqui abordado)  a escolas, desde que não seja necessário eutanasiá-los por razões humanas ou científicas e que sejam devidamente acompanhados.

Confesso que, de todas as apresentações, a de Jukes foi provavelmente a que mais me convenceu, pelo enorme número de argumentos válidos com que reforçou a sua apresentação. No referente ao tema central, mostrou algumas simulações interactivas da dissecação de animais, mas a abordagem com maior potencial que apresentou foi sem dúvida o do uso da realidade virtual no treino de cirurgias, que permite de modo muito realista treinar veterinários nas mais diversas situações, bem como a repetição de  procedimentos sem nunca sacrificar animais.

Luísa Bastos, de seguida, tomou como ponto de partida a crescente utilização de simuladores em ensino Medicina, não só de estudantes, mas também de profissionais. Os dados que apresentou mostraram de modo muito convincente que estes métodos podem ser uma grande mais-valia na formação de médicos veterinários, melhorando o nível de  preparação destes profissionais.

No final destes dois dias, fica desta conferência uma boa impressão do trabalho realizado ao nível nacional e internacional no sentido de diminuir o uso de animais em ciência e no ensino. O que contudo mais sobressai são as actuais limitações neste domínio e o longo caminho ainda por percorrer. Este tipo de eventos dão  um contributo positivo para uma maior consciencialização destes factores e para a colaboração entre as diversas partes interessadas, pelo que espero que as próximas edições sejam mais participadas, de preferência com cientistas das mais variadas áreas, ao invés das mesmas caras do costume. 

Conferência Internacional em Alternativas à Experimentação em Animais – Dia um

Como já anunciado aqui, a Sociedade Portuguesa para Educação Humanitária (SPEdH) organizou em Almada a 26 e 27 de Janeiro  a International Conference of Alternatives to Animal Experimentation. Esta associação que é recente e dependente do trabalho de voluntários, montou uma conferência bem organizada que contou com interessantes apresentações por oradores nacionais e estrangeiros com trabalho relevante.

Marc Bekoff
A conferência abriu com Marc Bekoff, um conhecido etólogo e crítico da experimentação em animais. A sua apresentação, contudo, não se focou muito no uso de animais em ciência, mas antes nas suas emoções, uma vez que “minding animals implies taking care of other animals and attributing minds to them”. Um ponto recorrente na sua apresentação foi insistir que reconhecer vidas emocionais aos animais nada tem de antropocêntrico, uma vez que não estaremos a atribuir características que os humanos têm e os animais não. Deu como exemplos estudos que sugerem que várias espécies animais são capazes de sentimentos como empatia, ou “aversão à inequidade” (um sentido de justiça/injustiça?). Argumenta assim que sabemos o suficiente sobre as características cognitivas, emocionais e (possivelmente) morais dos animais para que os deixemos de tratar como “whats”, mas sim como “whos”.

Sensivelmente metade da sua apresentação centrou-se num tema recorrente da sua investigação, nomeadamente o “brincar” e a importância que esta actividade tem para o desenvolvimento cognitivo, emocional e mental dos animais, bem como a cimentação das relações sociais.

Ao nível da experimentação animal, pintou um cenário que, podendo ser verdadeiro nalguns contextos não considero de todo representativo da actividade científica com animais. Bekoff não é contudo um radical, e aceita que o progresso no desenvolvimento de alternativas – que considera terem uma maior validade científica – seja um processo gradual, e que não vale a pena ditar opiniões “from an ivory tower when there is a real world out there”.   

Andrew Knight apresentando
o seu recente livro
Foi seguido por Andrew Knight, que na sua apresentação resumiu o seu livro “The costs and benefits of Animal Experiments“. Neste defende que a maior parte da investigação com base em animais não se traduz em benefício para os seres humanos, algo que fundamenta nalgumas revisões sistemáticas feitas nos últimos anos. Deu ainda exemplos de algumas drogas testadas em animais e depois comercializadas, mas que tiveram de ser retiradas do mercado pela sua perigosidade para os humanos. Neste lote incluiu a Talidomida, uma droga receitada a grávidas para combater o enjoo mas que causava malformações nos fetos. 

Na generalidade, os dados que apresentou correspondem de facto à informação de que hoje dispomos do valor preditivo dos testes de eficácia de drogas em animais para os seres humanos. Omitiu, no entanto, que estes dados não constituem prova da falta de validade dos modelos animais, mas que são antes   reveladores de experiências mal desenhadas e mal conduzidas, sobrestimação da eficácia das drogas e um enviesamento resultante da publicação de dados positivos pelas revistas científicas, em detrimento de resultados contraditórios por outros laboratórios. Eu não pude deixar de ressalvar isso na sessão de comentários e questões, acrescentando que é  revelador o facto de, das drogas de facto eficazes e seguras no mercado, cerca de metade serem também usadas noutras espécies em medicina veterinária. Comentei ainda que a Talidomida é um caso paradigmático de falta de testes em animais, uma vez que não se tinha verificado a sua perigosidade em fêmeas prenhas. Aliás, e como Horst Spielmann depois acrescentou, foi este caso que levou à obrigatoriedade de extensos testes com animais para aferir da segurança de medicamentos. 

Seguir-se-ia Andrew Bennet, que por problemas com o vôo foi adiado para o segundo dia,  tendo por isso trocado com Mark Cunningham, que mostrou novas e interessantes abordagens in vitro e in silico para a compreensão da epilepsia, provenientes respectivamente de  tecidos e dados retirados de humanos. 

Na segunda sessão – “The new paths of Europe, for Citizenship and Ethics” – Marcelle Holloway, em representação da Comissão Europeia, fez uma resenha da nova directiva 62/2010/EU, e da importância central dos 3Rs na mesma. De seguida, Ana Paula Martins, da DGAV, traçou o passado e actual cenário legislativo e regulador em Portugal, admitindo os atrasos e as várias falhas da autoridade competente na regulação da experimentação animal, fruto de uma crónica falta de recursos e de pessoal. No entanto, e como já o tinha mostrado nas várias apresentações que tenho assistido recentemente, mostra-se optimista quanto ao impacto positivo que as novas regras terão na melhoria das condições de bem-estar animal em Portugal. Não revelou muito sobre o modo como a directiva deverá ser transposta para a legislação nacional (algo que já deveria estar feito em Novembro, mas cujo atraso não é exclusivo para o nosso país), tendo referido contudo que a anterior directiva de 1986 tinha sido transposta sem alterações para a lei nacional. 

O Animalogos representado no ICAEE

Seguidamente, temas como a validação de alternativas pela ECVAM, a disseminação de informação sobre os 3Rs por centros nacionais (algo que Portugal carece) e o Projecto Toxoma Humano foram abordados por, respectivamente, Claudius Griesinger, Daniel Butzke e Mounir Bouhifd.

O dia terminou com as sessões de posters científicos, um deles sendo da autoria dos contribuidores do Animalogos e que, precisamente, fazia referência ao blog como plataforma de debate sobre a questão animal, e o seu uso como recurso didáctico e de avaliação no ensino.

Em conclusão, um dia preenchido e promissor, de um evento que reflecte a crescente preocupação pelo (bem-estar do)s animais usados em ciência. 

Novas iniciativas portuguesas na promoção de alternativas à utilização de animais em biomedicina

O tema da experimentação em animais tem vindo a ganhar crescente relevância em Portugal, ainda que esteja longe do nível de controvérsia que se observa noutros países, como o Reino Unido, Suiça ou alguns países escandinavos.

Começam assim a surgir algumas iniciativas para a promoção de alternativas ao uso de animais em biomedicina, com a particularidade de serem da parte de instituições não-académicas, como é a Sociedade Portuguesa para a Educação Humanitária (SPedH) e o Biocant Park.

O primeiro será o workshop “Alternativas à utilização de animais em estudos pré-clinicos”, uma iniciativa do  Biocant Park (Cantanhede, Coimbra), e ao abrigo do projecto europeu ShareBiotech, a realizar a 10 de Dezembro.

Segundo a organização, esta workshop parte da identificação deste tipo de iniciativas como uma das necessidades mais prementes, num questionário dirigido a grupos de investigação. O workshop focar-se-á essencialmente na divulgação de abordagens em estudos pré-clinicos sem o uso de animais, sendo uma oportunidade para a indústria, investigadores e clínicos discutirem e traçarem linhas de acção no sentido de desenvolverem potenciais alternativas ao uso de animais nesta área.

Uma outra iniciativa será o International Conference Of Alternatives to Animal Experimentation, organizada pelo SPedH, e que tomará lugar a 26 e 27 de Janeiro de 2013, em Almada. O programa contará com influentes oradores portugueses e estrangeiros nas áreas da filosofia, da investigação biomédica e até da política. Estão também abertos à submissão de abstracts para posters até 30 de Novembro.

Da minha parte, tenho particular curiosidade neste último evento, nomeadamente no que diz respeito ao “tom” de toda a conferência, dado os organizadores se alinharem próximos da perspectiva dos “direitos dos animais”, e pela qual se regem também alguns dos principais convidados. Terá contudo também a participação de cientistas com diferentes visões, pelo que poderemos ter um interessante e equilibrado debate. 

Animal Mosaic – outra forma de comunicar o Bem-estar Animal

Sob a égide da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla inglesa), ANIMAL MOSAIC é o mais recente site dedicado ao Bem-estar Animal. O site propõe ser uma plataforma de debate e fonte de informação sobre o mundo animal e da forma como as questões de bem-estar se relacionam com outras preocupações globais.
Das muitas fontes de informação disponíveis, é de destacar a versão renovada da ferramenta Concepts of Animal Welfare, que anteriormente só estava disponível em CD-ROM.  Esta pode ser uma boa maneira de se iniciar no multifacetado mundo (científico e filosófico) do Bem-estar Animal. Outra ferramenta importante é o Sentience Mosaic, que se vem assim juntar ao já existente Animal Sentience da Compassion in World Farming, outro site de uma ONG dedicado à consciência animal. O Sentience Mosaic providencia um Fórum de discussão sobre temas de senciência, consciência e cognição animais (e já com algumas entradas).

Ambas as ferramentas, no entanto, devem ser usadas com um alerta: as visões nelas expressas não reflectem todo a panóplia de opiniões existente no universo do Bem-estar Animal. Elas são o reflexo das estratégias e campanhas levadas a cabo pela WSPA. Na qualidade de organização líder mundial em protecção animal, a WSPA veicula uma mensagem marcadamente antropomórfica do comportamento animal, como aliás se pode perceber pelo vídeo, e que não é partilhada por todos os cientistas e filósofos.

Do negacionismo científico e outras falácias

No que diz respeito ao uso de animais como modelos em ciência, considero a perspectiva abolicionista  como filosoficamente legítima. A mesma deriva de um conceito de direitos animais que, na linha de pensamento de filósofos como Tom Regan, vai pedir “emprestado” ao Kantismo o conceito de dignidade intrínseca e inviolável  dos seres humanos e o “estica” para incluir todos os animais sencientes.
Concordando-se ou não, a honestidade intelectual de Regan a este respeito é inquestionável. O seu apelo à abolição do uso de animais em ciência é indiferente aos eventuais benefícios médicos (ou outros) que possa ter para humanos ou mesmo para outros animais. Estabelecendo um paralelo com o que se passou com a experimentação médica levada a cabo em humanos pelos nazis, Regan argumenta que há fins que em circunstância alguma justificam os meios. 
Já Peter Singer, filósofo utilitarista e o autor mais influente para os adeptos dos direitos dos animais, admite haver circunstâncias nas quais os benefícios da experimentação em animais poderão justificar os custos (para os animais). Ao invés de uma abrupta mudança de direcção ética da parte de quem providenciou as bases filosóficas do actual movimento para a “libertação animal”, é antes o resultado lógico da sua coerência com a filosofia utilitarista que preside à sua obra seminal, Animal Liberation, como já clarificado pelo próprio (que considera tais circunstâncias raras e excepcionais) e comentado por Regan (vide aqui).
Face a estes exemplos de coerência, é difícil de compreender o porquê de muitos apologistas dos direitos dos animais optarem pelo negacionismo científico para argumentar a sua posição. Assim, ao invés de assentarem o cerne da sua argumentação no pressuposto moral que o sofrimento dos animais  nunca é justificável (seguindo Regan), partem para um pseudo-balanço utilitarista entre custo e benefício que está comprometido à partida, ao considerarem que é cientificamente inválido (e inclusive fraudulento) usar animais como modelos de seres humanos, ou mesmo de outros animais.
Ora isto contradiz a evidência do contributo da experimentação animal teve no incrível progresso médico e científico dos últimos 100 anos, e nunca antes visto na história da humanidade (para alguns dos exemplos mais relevantes, ver aqui). A título de exemplo, consideremos que das 102 ocasiões em que Prémios Nobel em Medicina ou Fisiologia foram atribuídos desde 1901, em 81 ocasiões foi para premiar trabalho científico conduzido em vertebrados não-humanos, enquanto que noutras quatro laurearam investigadores que se basearam directamente em resultados obtidos de experiências com animais levadas a cabo por outros grupos. Uma outra medida indirecta do impacto que o progresso biomédico – em larga medida assente na experimentação em animais – teve no século XX é o aumento da esperança média de vida, que em alguns países desenvolvidos duplicou entre 1900 e 2000, continuando ainda a crescer (ver, por exemplo, Oeppen and Vaupel 2002Kirkwood 2008Kinsella and He 2009).
Há, evidentemente, limitações associadas ao uso de cada modelo animal, sendo necessário que os investigadores estejam a par das mesmas, bem como das melhores práticas em bem-estar animal, desenho experimental e métodos alternativos. Mas daí a acusarem os investigadores de “fraude científica”, como frequentemente o fazem activistas  dos direitos dos animais, vai um enorme, e infundado, passo.

O uso de animais assenta no pressuposto evolutivo de todas as espécies vivas partilharem traços fisiológicos, genéticos e comportamentais – entre outros – entre si, uma semelhança tanto maior quanto maior a proximidade filogenética entre as espécies em questão.

Um forte argumento – e o qual partilho – para a necessidade de salvaguardar o bem-estar dos animais é o facto destes, e principalmente os vertebrados, poderem sentir dor, prazer, stress, isolamento, angústia, “depressão” ou “alegria”, de modo análogo aos humanos. Isso deriva de partilharem connosco as estruturas e fisiologia neuroendócrinas – bem como as restantes – necessárias para a manifestação desses estados cognitivos e emocionais, o que por sua vez constitui também um forte argumento científico para a validade do seu uso como modelos em ciência. Assim, optar por apenas ver a parte que legitima o seu ponto de vista, defendendo que os animais “são iguais a nós” e depois ignorar essa semelhança quando se trata de alegar que não podem servir de modelos de seres humanos ou outros animais é uma clara manifestação de negacionismo científico ao serviço da causa animal.

Numa apresentação nas TED conferences, Michael Specter alertou para o perigo que o negacionismo científico, em geral, representa para a sociedade, a qual convido todos os animalogantes a assistir.

“You are not entitled to your own facts”, nas palavras de Specter

Tudo isto vem a propósito da mais recente petição levada a cabo pelo Partido pelos Animais, pela “substituição da experimentação animal por alternativas”.  Aparte a minha enorme curiosidade em saber como se pode alcançar tão ambicioso desígnio por intermédio de petição, interrogo-me também até que ponto as alegações presentes no texto que acompanha a petição são resultado de um – até certo ponto compreensível – enviesamento cognitivo e ideológico, e quanto será fruto de deliberada desonestidade intelectual. 
Ainda que devesse presumir, a priori, boa fé da parte dos membros do dito partido, o(s) cabeçalho(s) em destaque na sua página web [entretanto retiradas mas ainda presentes na página de Facebook do partido, aquiaqui aqui] não me deixam grande margem para lhes outorgar o benefício da dúvida e passo a explicar porquê.

Primeiro, é explorada a ligação afectiva a cães e chimpanzés no sentido de apelar a uma imediata reacção emotiva, “esquecendo-se” que em Portugal não se faz investigação biomédica em nenhuma das duas espécies. Aliás, “esquecem-se” também de dizer que o uso de grandes símios em investigação é proibido em toda a União Europeia. Ignorância ou desonestidade?

Lembro que as mais recentes estatísticas revelaram que o somatório de todos os primatas de todos os tipos constituíram apenas 0,08% do total de animais usados em investigação, sendo o seu bem-estar sujeito a um conjunto de regras e fiscalização rigorosíssimas. Outros mamíferos não-roedores perfizeram  0,05% do total, sendo o seu uso subordinado aos mesmos critérios de exigência. Para esclarecimento da importância dada ao tratamento ético dos animais em investigação, preocupação pelo seu bem-estar, valorização de métodos “alternativos” e relevância da experimentação animal, aconselho uma leitura atenta à mais recente legislação comunitária que regula o uso de animais para fins científicos.
Nestes anúncios não se coíbem de colocar nos potenciais signatários o ónus da responsabilidade pela “tortura, desmembramento e morte lenta e dolorosa de milhares de cães, ratos e macacos”, uma chantagem emocional inaceitável da parte de um partido que almeja respeito e credibilidade. Um enorme tiro no pé político, portanto, para além de uma gravíssima campanha difamatória dirigida à comunidade científica. Sendo tortura entendida como o acto de infligir dor severa com a finalidade de castigar, forçar a obtenção de informação ou simplesmente como acto de crueldade, devia a comunidade científica desafiar publicamente o PAN  a substanciar essa acusação, bem como muitas outras patentes na petição.
Quanto ao texto da petição em si, não conseguiria fazer uma análise detalhada a todas as incongruências, meias-verdades e falsidades aí presentes, sem estender em demasia o tamanho deste post. Por isso reservo-os para os comentários. 

RSPCA e a criação de cães – entrevista ao James Yeates

Em Março passado, o Animalogos anunciou que a RSPCA (Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals) estava a fazer uma petição para se parar de criar cães. Pedimos a James Yeates, médico veterinário e chefe do departamento de animais de companhia desta organização, mais pormenores sobre esta campanha:
Anna Olsson – Com todo o respeito pelo tom provocatório, querem realmente dizer que toda a criação de cães deve ser suspensa? Ou deveria incidir mais sobre alguns tipos de criação?
James Yeates – Quero começar por esclarecer o apelo feito pela RSPCA. Não se trata de eliminar toda a criação canina per se – os cães são centrais nas sociedades humanas e nós amamo-los. É antes prevenir a reprodução de cães que não terão boas vidas em lares responsáveis. Isto envolve trabalhar com vista a reduzir a criação de cães com problemas de saúde, seja por doença genética ou por más práticas de criação. Também envolve tentar reduzir o número de cães criados, especialmente aqueles criados sem suficiente reflexão sobre o seu destino – quer por desleixo (quando pessoas irresponsáveis adquirem animais não castrados) ou para lucro egoísta (quando as pessoas querem ganhar dinheiro como se os animais fossem apenas uma fonte de receita). Também se trata de assegurar que os cachorros (e gatos, e coelhos) são vendidos e comprados de forma responsável pelas pessoas certas, e que estão 100% comprometidas (e capazes) em satisfazer as necessidades dos animais durante as suas vidas inteiras – que pode ser de dez ou vinte anos.
AO – Em muitos meios, comprar um cão de raça de um criador certificado pelo Kennel Club é visto como sendo posse responsável de um animal. Por outro lado, considerando-se o vigor do híbrido [robustez e melhor saúde em animais com alta diversidade genética] versus problemas de endogamia, os cães cruzados tendem a ser mais saudáveis e a viver mais do que os cães de raça pura. Na verdade, na última edição do principal livro de texto sobre bem-estar animal, Paul Hocking, Rick d’Eath e Joergan Kjaer afirmam que a “perseguição doentia de uma determinada aparência estética em diferentes raças de cães e gatos” leva a uma negligência “injustificada dos benefícios do cruzamento entre raças”. Então, quem é que deve realmente parar de criar cães?
JY – Nós pretendemos ver as práticas de criação de raças puras melhoradas. A RSPCA está muito atenta às puppy-farms [“fábricas de cahorros”] e também às patologias específicas de cada raça, que foram objecto de detalhada análise científica nos últimos anos. Estamos a financiar um projecto que visa obter taxas de prevalência deste tipo de patologias em contexto clínico. Lançámos também a Campanha Born to Suffer [“nascido para sofrer”] com base nas evidências disponíveis. A suposta ligação entre “pedigree” e “qualidade” é, essencialmente, infundada. Claro que existem criadores responsáveis mas a etiqueta “pedigree” realmente só se refere ao parentesco, e não à qualidade. “Pedigree” sugere “previsível”, na medida em que se refere a um conjunto restrito de genes com algumas características “fixas”, mas esta previsibilidade inclui problemas de saúde igualmente previsíveis, tais como problemas respiratórios e dolorosas patologias oculares e ortopédicas, devidos a características exageradas ou a doenças genéticas.
Em vez de protegermos o rótulo de “pedigree” – que de facto protege os maus criadores que lucram por pouparem nos cuidados de saúde – devemos apoiar práticas de criação e criadores responsáveis. Isto significa que para a associação entre pedigree e qualidade ser verdadeira é necessário impedir que os cachorros dos maus criadores possam ser registados.
 Em relação aos cães cruzados (mestiços), com o seu vigor híbrido, somos certamente a favor. Em especial se forem adoptados e não comprados, é esperado que ajudem a reduzir a sobrepopulação canina e as taxas de eutanásia. Alguns cães cruzados também podem ter doenças hereditárias (e estamos preocupados com o “design” de híbridos de raças puras), mas nunca ouviu o termo “doenças características da mestiçagem” como ouço “doenças características da raça”. Com base nas evidências actuais, tanto científica como da prática veterinária, eu preferiria ter um cão cruzado (e tenho dois).
AO – Actualmente, os veterinários portugueses afirmam estar a assistir ao efeito da crise económica em que as pessoas não podem pagar o tratamento de seus animais de companhia e em que o abandono e os pedidos de eutanásia têm aumentado. Passa-se algo semelhante no Reino Unido?
JY – Até ao momento os nossos números têm tido oscilações ligeiras. Mas cada vez mais temos de nos concentrar nos animais especialmente vulneráveis, ou seja, aqueles resgatados pelos inspectores da RSPCA ou apreendidos pela polícia em processos judiciais accionados pela RSPCA, o que pode alterar os nossos números de eutanásia. O que eu posso dizer em relação à eutanásia (que é outra das nossas petições) é que a RSPCA, de facto, eutanasia animais potencialmente adoptáveis devido aos elevados números que acolhemos. O que consideramos ser a atitude correcta mas a circunstância errada, daí o nosso apelo em reduzir a necessidade de fazê-lo (que está, naturalmente, ligado ao apelo da sobre-população).

Traduzido do inglês por Manuel Sant’Ana (segundo a antiga ortografia).

Pig Business – O Filme


Os filmes em formato de documentário têm-se tornado cada vez mais um veículo previlegiado pelos grupos activistas para denunciar sistemas de produção animal intensivos e globalizantes. “Pig Business” (Director: Tracy Worcester, UK, 2009) é um produto desta estratégia que denuncia os investimentos feitos pela empresa norte-americana Smithfield na Polónia de forma a conquistar o mercado europeu de carne de porco. O filme – com legendagem de português do Brasil – está disponível na íntegra no You Tube.

Sem querer de forma alguma desvalorizar a relevância do tema, penso que a narrativa é por vezes demasiado linear e parece deixar de fora aspectos importantes na compreensão da dinâmica global de alimentos de origem animal. O filme recorre, em especial, à vox populi como forma de legitimar a demonização de todas as empresas de suinicultura que, de alguma forma, procuram o lucro, enjaulam animais, poluem o ambiente, propagam doenças, violam directivas europeias e esmagam os pequenos produtores. Da mesma forma, quando a realizadora quis mostrar um exemplo do pequeno produtor (30:05), não foi capaz de escapar ao esteriotipo da exploração familiar que vive em harmonia com a natureza a criar meia dúzia de animais e cuja triste condição se deve tão somente à incapacidade em competir com os preços praticados pelas grandes indústrias. Aí o filme parece atirar sobre todas as formas de globalização de forma indiscriminada, o que lhe rouba credibilidade sem acrescentar substância. A entrevista com um responsável da Smithfield (43:18) – que deveria ser um ponto alto da investigação da autora – cai no ridículo quando ela começa por comparar as fezes de 10 milhões de porcos com as de 100 milhões de pessoas.

Interessante foi a exibição de imagens de jaulas de reprodutoras numa suinicultura intensiva portuguesa (49:20) e que inaugura a questão do bem-estar animal, que ainda assim merece um tratamento superficial (qual a diferença das etiquetas “freedom food“, “free range“, “organic” ou “outdoor“? Podemos – ou devemos – colocá-las a todas dentro do mesmo saco?). Só no final (53:45), a autora procura contextualizar a política alimentar europeia mas limita-se a fazer uma entrevista de rua a um parlamentar anti-sistema sem a equilibrar com uma voz de dentro do sistema europeu que, mal ou bem, dita as regras.

Qual a sua opinião sobre este filme? E sobre a suinicultura intensiva?

A declaração de Basileia – informação, debate e transparência contra a intolerância

 A 29 de Novembro, e em resposta aos actos de violência por parte de grupos extremistas defensores dos direitos dos animais, juntaram-se em Basileia 50 cientistas de topo alemães e suíços para redigir e assinar a Declaração de Basileia, recentemente em destaque na Nature News.

Da esquerda para a direita: Prof. Michael Hengartner, Reitor da Faculdade de Matemáticas e Ciências Naturais da Universidade de Zurich; Prof. Dieter Imboden, president do National Research Council of the Swiss National Science Foundation e Prof. Stefan Treue, Director do German Primate Center, Göttingen

A mesma fundamenta-se na importância que a informação transparente e pormenorizada pode ter no esclarecimento da opinião pública acerca do uso de animais em biomedicina. No seu preâmbulo, faz-se uma pequena resenha dos argumentos que, no seu entender, justificam o uso actual de animais para dar resposta a problemas emergentes da saúde humana e de outros animais.

Os signatários comprometem-se, entre outras coisas, a apenas usar animais quando estritamente justificado, no menor número possível e de acordo com as mais escrupulosas medidas de preservação do bem-estar animal e do ambiente, fazendo ainda esforços na promoção do entendimento da ciência por parte do público e da classe política.

É também devidamente vincado que a educação científica nas escolas, bem a informação dos media e a promoção de um debate informado são da maior importância, que não é possível separar investigação básica da aplicada, que o uso de animais em biomedicina não deva ser travado, que novas leis e regulações sejam promulgadas como resultado de um entendimento objectivo, democrático e factual e que condenem quem a pretexto dos direitos dos animais transgride a lei e promove actos de violência.

Todos os cientistas cujo trabalho se relaciona de alguma maneira com o mundo animal são convidados a subscrever esta declaração (instruções aqui).

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? – O debate possível ( PARTE 3)

[Partes 1 e 2, respectivamente, aqui e aqui]

Seguidamente, tem a a palavra Rita Silva, Presidente da Direcção da  Associação Animal. A pessoa afável e calma que se apresenta com um caloroso sorriso contrasta com o teor do resumo que apresenta. No mesmo, um cenário dantesco e horripilante do uso de animais em ciência é pintado com imagens grotescas de cabeças rebentadas por martelos, ossos quebrados, colunas partidas e eléctrodos no cérebro (estes, já agora esclareça-se, não causam dor, uma vez que o cortex não possui terminações nervosas) que se perfilam para ilustrar um título já de si sugestivo: “Violência em nome da Ciência”, executada sem anestesia em “pelo menos 65% dos casos”, asseguram.

A sua exposição é, contudo, muito menos gráfica e de teor bastante mais moderado. Na mesma, condena o uso de animais sobretudo com base em argumentos éticos, e não tanto científicos, uma abordagem que inteligentemente a salvaguarda de potenciais investidas reactivas duma plateia de futuros ou actuais cientistas, que sabe não serem o seu público. Não deixa, no entanto, de lembrar o que no passado foram [qualquer coisa como] as trágicas consequências humanas do uso de modelos animais. Fala nas alternativas, no caminho da modernidade e do que é o grande interesse económico que faz perpetuar o uso de animais, não obstante o facto do mesmo ser, no seu entender, obsoleto. Condena ainda o uso de animais na investigação em cosméticos e promove a base de dados da “Animal” em alternativas e da sua lista de de produtos “amigos dos animais”. Não obstante o meu dever de isenção, temo ter inconscientemente abanado a cabeça em reprovação de muito do que oiço. Muito do que diz é uma reprodução de falácias repetidas ad nauseam em sites “anti-vivissecção” (termo, no meu entender, infeliz) facilmente refutáveis, mas que são tidas como verdadeiras por parte de quem não tem acesso (ou não quer ter) ou capacidade para entender informação cientifica, objectiva e isenta. Não conheço nenhum cientista que use animais por interesse económico, sei que não há qualquer composto em produtos cosméticos que não tenha sido já testado em animais e humanos e que as companhias que alegam não o fazer usam produtos já extensivamente testados há muitos anos atrás.  Conheço todos os casos de alegada falta de validade do uso de animais repetidamente evocados, de modo deturpado ou completamente erróneo.

Confesso-me desiludido. Se, por um lado, os argumentos científicos ou económicos não são devidamente explorados e fundamentados, por outro esperava um aprofundar das questões éticas subjacentes ao uso de animais, dado esse ser o principal argumento. Nem uma coisa nem outra, portanto.

Como cientista, devia-me sentir ultrajado por estas alegações. Engulo, contudo, o orgulho ferido e procuro ver que há alguma razão por detrás destas acusações. Há ainda uso de animais desnecessário e injustificadamente severo. Sinto que, não obstante terem sido os 3Rs propostos há 50 anos, a sua implantação estar ainda na infância, por variadíssimas razões que não cabem aqui. E coloco a pergunta [a propósito da inclusão dos 3Rs na nova directiva europeia]:

– “Como vêem os 3Rs? Progressistas? Nefastos por legitimadores do uso de animais?”

– “Importantíssimos”, oiço de um lado, desejando por dentro que todos os cientistas assim pensassem.
– “Só o Replacement nos interessa” – oiço do outro lado. Contudo oiço ainda que, até o mesmo ser completamente atingido, devemos Reduzir e Refinar. Luz ao fundo do túnel! Afinal há diálogo possível.

Apesar de muitas vezes o debate entre cientistas e activistas seja frequentemente difícil, é possível falarmos a mesma linguagem: a da razão, do respeito e do compromisso. Não o chegamos a alcançar verdadeiramente neste debate, mas não havia tempo nem representatividade de ideias suficientes para isso. Mas é algo que devemos alcançar, já que estamos “condenados” a partilhar o mesmo Planeta.

O tempo dedicado às perguntas do público é desperdiçado, na sua maioria. Infelizmente, o conhecimento superficial do tema e o desejo dos alunos de manifestar o seu apoio ou reprovação do que ouviram faz perder a oportunidade de trazer a lume as questões mais prementes. Nas suas respostas, as palestrantes aproveitam para reiterar as suas mensagens: de um lado, a experimentação animal como científica e moralmente justificável e os 3Rs e a lei como garante da elevação ética da conduta dos investigadores; do outro, o uso de animais como totalmente injustificável, pouco válido e promovido por interesses alheios à ciência. Aplausos aqui e ali, para apoiarem uma ou outra postura (sendo a prof. Fátima um pouco mais popular, até porque “joga em casa”).

No remate, a Rita Silva aproveita para uma vez mais chamar a plateia a atenção para o sofrimento animal e da urgência em mudar de paradigma. A prof. Fátima tira mais um coelho da cartola: – “quem concorda com o uso de animais para testar produtos como champô para o cabelo?” – e penso para mim, “eu concordo em usar produtos testados, mas não vejo motivo para testar mais produtos”. No entanto, antes mesmo de se poderem contar as opiniões, remata da seguinte forma: “eu também não, não há necessidade”.  Fico confuso, pois tenho a certeza que está mais mais do que ciente da importância de usar produtos seguros (ainda que não sejam necessário mais produtos de higiene). Oiço aplausos. Percebo a sua intenção: apesar de o fazer de um modo um tanto ou quanto demagógico, quer assegurar à audiência que os animais não são usados para “futilidades”. Ficamos bem na fotografia. Mas quem me dera que a mesma retratasse com fidelidade a realidade.

Este é o debate possível. Mas um debate, apesar de tudo. Balanço positivo, portanto.