A semântica, a Lei e a ilegalidade do sexo na Flórida

O entendimento que temos da condição humana e do nosso lugar na natureza e no mundo transparece na interpretação semântica que fazemos de termos comuns como sendo o de “animal”. Quando usamos o termo “animal” sem contextualização, a maioria irá a priori julgar que nos referimos às espécies animais não-humanas. Esse uso do termo “animal” com o significado de “os outros animais” é o mais recorrente nos media, na literatura e no nosso dia-a-dia. Coloquialmente, até pode ser usado como um insulto.

E até aqui tudo bem, uma vez que o significado de qualquer termo é legitimado pelo seu uso corrente com esse sentido por uma dada população, reforçando-se o mesmo numa espécie de ciclo virtuoso (ou vicioso, consoante o caso ou a interpretação). O problema é quando essa interpretação traz consigo uma concepção de humano como uma espécie biologicamente afastada ou superior das demais. Como professor de Biologia, muitas vezes identifiquei nos alunos esta mesmíssima concepção dos seres humanos como uma espécie superior, um pináculo da evolução (inclusive nos manuais) muito distante do restante Reino Animal. E isto da parte de pessoas que aceitam a evolução como um facto.

A evolução humana, representada como um percurso linear dos “macacos” até ao Homem

O uso do termo “animal” para nos referirmos aos “outros animais” é claramente compreensível. Podemos mesmo entender esta “concepção alternativa” (um termo do “eduquês“, muito caro aos professores de Ciências) do que é um ser humano em pessoas com menor cultura científica, tal não é admissível na linguagem legal, técnica e científica, onde não pode haver margem para definições vagas ou interpretações dúbias.

A “Árvore da Vida”, com a posição dos humanos salientada por Andrew, do SFC.

A árvore da Vida de Haeckel do seu livro The Evolution of Man (1879), com o Homem como culminação e fim último da evolução, uma ideia partilhada por vários evolucionistas da época, e uma visão criticada por Darwin.
Assim, não se percebe o fraseamento desta recente lei do Estado da Flórida: 

An act relating to sexual activities involving animals; creating s. 828.126, F.S.; providing definitions; prohibiting knowing sexual conduct or sexual contact with an animal; prohibiting specified related activities; providing penalties; providing that the act does not apply to certain husbandry, conformation judging, and veterinary practices; providing an effective date.

Com esta lei, que pretende (e muitíssimo bem) proibir uma prática violenta contra animais não-humanos, como é a zoofilia, o Estado da Flórida baniu acidentalmente toda e qualquer prática sexual entre seres humanos, também.

Claro que esta é uma interpretação exagerada com base num tecnicismo, mas não deixa este fraseamento de ser sintomático desta “concepção alternativa” do que é um ser humano, digo eu. Não nos esqueçamos que estamos a falar de um estado norte-americano (à semelhança de outros) onde o ensino da evolução nas escolas é um tema controverso, tendo-se esta controvérsia  avivado (ver, por exemplo, aqui, aqui, ou aqui) com um projecto lei recente para mudar o modo como a evolução é ensinada nas escolas (entretanto rejeitado). Não admira, assim, que 40% dos americanos acreditem no “strict creationism”: Adão e Eva, Criação em sete dias por uma divindade e há menos de 10.000 anos, fixismo das espécies e por aí fora (várias entidades religiosas, contudo, já declararam a compatibilidade entre o evolucionimo e a crença religiosa).

Ainda hoje, apenas 16% dos Americanos acreditam na evolução sem intervenção divina. (Fonte: GALLUP)

 
Assim sendo, também não é de estranhar que o Southern Fried Science comece por apontar que esta nova lei resulta da pena de “elected officials [that] fail basic taxonomy, promote anti-science curriculum, and consistently attempt to undermine the fundamental underpinning of all biology“, lançando a  questão; “what happens when they start trying to legislate from this flawed view of reality?” 

Também curioso é que esta lei que proíbe a zoofilia, salvaguarda a sua prática em certos procedimentos de husbandry (conjunto de práticas de maneio, manutenção dos animais), conformation judging (avaliação de um animal em concursos, de acordo com o nível de “conformidade” com um padrão dito ideal de fisionomia, estutura, porte, postura, locomoção, caracteres sexuais, reprodução etc.)  e práticas veterinária. Será que alguma prática de profissionais que trabalham com animais (referir-se-iam talvez à inseminação artificial, à palpação uro-genital ou o trabalho do “apontador” durante o cruzamento de equinos) pode de alguma maneira ser confundida com zoofilia?

Como nota final, não resisto a transcrever o alerta de um dos autores do supracitado blog SCS , que com uma boa dose de humor e ironia adverte:  “If you’re living in Florida on October 1, 2011 and would like to have sexual intercourse with a consenting adult, please check with your veterinarian or local livestock breeder first to make sure you abide by  ”accepted animal husbandry practices, conformation judging practices, or accepted veterinary medical practices”

Qvid Ivris?

Direito animal

Direito animal , ou “Animal law”, é o ramo de direito que se preocupa com o estatuto legal dos animais e a prática legal em casos envolvendo animais. É praticamente inexistente em Portugal e não tem grande expressão nas faculdades de direito europeias mas está em forte crescimento nos EUA: Tanto que a revista Science dedica um News Focus ao assunto.

As recently as 2000, only a handful of law schools in the United States offered courses in animal law. Now roughly 120 do. These include several of the nation’s premier law schools, including
Harvard, Stanford, and Columbia.

Este movimento nasceu em resposta a actual situação legal nos EUA onde – diferente do que no cenário europeu – poucos animais estão legalmente protegidos.

many [who teach and study animal law] take issue with a legal system that treats animals as property and provides few mechanisms for protecting their interests in court.

O que está a acontecer legalmente tem paralelos com o que conhecemos da Europa no sentido de introdução de regras para o alojamento e tratamento de animais de produção. Neste ambito, alguns estados aproximam-se da legislação da União Europeia.

In 2008, for example, California voters approved a ballot measure that will outlaw cages that restrict the movement of egg-laying hens, calves raised for veal, and pregnant sows

E o estatuto legal dos outros animais não é uma precupação unicamente da Europa e America do Norte.

From Science Magazine 1 April 2011

Mas há caracteristicas particulares do movimento actual que refletam as diferenças politicas e legais entre EUA e Europa. Há noutro lado do Atlantico um maior enfase nos direitos individuais, mesmo quando o individuo é peludo ou tem asas ou barbatanas. David Favre do Michigan State University College of Law defende que os animais devem “have the right to sue”, ter o direito de levar (ou ter alguem a levar) o seu caso a tribunal. E um outro dos juristas notáveis da area, Steven Wise, está a juntar evidências para testar o sistema.

Getting a judge or jury to consider these arguments is the goal of NHRP [Nonhuman Rights Project] Since 2007, Wise has recruited more than 50 volunteers, including lawyers and sociologists, who are working to identify potential plaintiffs and determine which jurisdictions are most likely to be sympathetic to their arguments and which legal strategies are most likely to be effective. He estimates that they’ve spent a cumulative 20,000 hours analyzing dozens of legal and sociological issues in all 50 states.

The first case will likely involve an animal being held in substandard conditions: perhaps a dolphin kept in a small pool at an aquarium or a chimpanzee confi ned to a small cage at a zoo or research facility. NHRP will file a lawsuit in trial court, probably using habeas corpus or another
common law writ, de homine replegiando, used centuries ago in slavery cases.

If the trial court dismisses the case, Wise says he will appeal all the way to the state’s highest court.

Dado que os EUA aplica case law (jurisprudencia, ou seja uma decisão particular de um tribunal pode mudar a maneira como a lei é interpretada em geral), um caso de sucesso do Wise poderá ter consequências vastas. Neste sentido, o movimento parece mais confrontacional do que a visão europeia em que o desenvolviemnto da legislação expande a protecção dos animais sem lhes conferir direitos. A protecção dos animais contra sofrimento parece mais compatível com um uso humano dos outros animais do que a defesa dos direitos dos animais.

O pastor ausente

A convivência entre humanos e animais não se limita às situações em que os animais estão em cativeiro, acontece também no contacto com os animais selvagens ou assilvestrados. Um artigo do Público de sexta-feira dia 18 de Março, infelizmente não acessível on-line, relata a preocupação dos agricultores em Paredes de Coura com o impacto dos cavalos garranos. Mais do que preocupar-se, a Vessadas, Associação para o Desenvolvimento Agrícola e Rural das Terras de Coura está a processar o Estado por não controlar os garranos. Afirma-se que o problema tem a ver com o ‘pastor ausente’: “um novo tipo de pastoreio que surgiu nas últimas duas décadas. Passou a existir um novo tipo de ’criador’ de gado, que não é agricultor. Não exerce qualquer actividade produtiva que possa suportar os animais, nem possui qualquer estrutura de curral que permita conter os animais. O ‘pastoreio’ consiste numa visita semanal ou quinzenal à zona onde se abandonaram os animais, normalmente realizada em viatura todo o terreno ou mota.”
Não conheço o fenómeno além do que leio no jornal, não posso confirmar se a descrição da situação é verosímil. Mas a leitura leva-me a pensar num outro encontro entre espécies diferentes, o Homo sapiens rural e o Homo sapiens urbano. Criada num meio agrícola, vivendo agora na cidade, penso que sou uma híbrida entre as duas, o que me faz reflectir bastante sobre o seu difícil encontro. Muito do trabalho de conservação, em Portugal e não só, é caracterizado por uma tensão entre as preocupações da população local que convive com as especies a ser protegidas e as preocupações de conservação que na maior parte das vezes vêm de fora. Isto é muito evidente no caso do lobo na zona de Douro e Trás-os-Montes, um caso que espero poder explorar mais ao longo dos próximos tempos cá no animalogos.
Não sei de onde vem o pastor ausente ou onde mora, mas tudo indica que não é lá, na terra onde vivem os seus animais e onde vivem outros agricultores. Esta constatação incomoda. O garrano não tem uma vida fácil. O agricultor de pequena escala do Norte de Portugal também não. A última coisa que precisam são intervenções de origem urbana que agudizam a confrontação.

2011 – Ano Mundial da Medicina Veterinária


Por ocasião da fundação da primeira faculdade de medicina veterinária em 1761 em Lyon, França, comemora-se este ano o Ano Mundial da Medicina Veterinária. São 250 anos de história de uma profissão que significa muito mais do que apenas ser médico de animais. A OIE (World Organization for Animal Health) criou uma série de pequenos vídeos que evidenciam o importante papel que o Médico Veterinário desempenha na sociedade, em todas as suas áreas de intervenção, desde a Saúde e Bem-estar Animal à Saúde Pública e Segurança Alimentar.

Passerelle – Joana Vasconcelos

Joana Vasconcelos
Passerelle (2005)
Cães em faiança, ferro metalizado e cromado, motor, quadro de comando e protecção, pedal e PVC
230 x 366 x 205 cm
Colecção da Artista
Exposição “Sem Rede”
Museu Berardo, 01/03 – 18/05/2010

Não é possível ficar-se indiferente à obra da artista plástica Joana Vasconcelos (n. 1971, Paris). As sua peças são feitas para nos desafiar, recorrendo a três mecanismos principais: a sobre-dimensão, a transmutação do contexto funcional dos materiais utilizados e o convite à interacção directa com o público.

Em Passerelle (2005), somos convidados – através de um pedal à nossa disposição – a desencadear um mecanismo giratório que suspende cães em faiança presos pelo pescoço por grossas coleiras de couro. Ao aceitar fazê-lo estamos a contribuir para o processo criativo – e ao mesmo tempo destrutivo – que justifica a própria obra. Quando, em Maio último, visitei a exposição “Sem Rede” no Museu Berardo eram já mais os cacos que jaziam no chão do que os animais suspensos na engrenagem. Só havia dois cães inteiros; todos os outros se apresentavam mais ou menos quebrados.

Passerelle abre-se a interpretações várias, nomeadamente no que diz respeito à nossa relação com os animais e ao uso que deles fazemos. A homologia existente entre o mecanismo giratório e a linha de abate de um matadouro é evidente. Não se tratam, no entanto, de galinhas mas de antes de imagens esteriotipadas de cães de raças populares como o Dálmata, o Collie ou o Boxer. São portanto ícones, que representam mais do que as suas raças e mais do que a espécie canina da mesma forma que uma modelo numa passerelle é a representação iconográfica da beleza feminina.

O facto de caber ao visitante a opção de fazer desencadear o mecanismo remete-nos para a responsabilidade inerente às decisões quotidianas que envolvem o uso de animais. Os cacos que se vão amontoando na base da peça impelem o público a confrontrar-se com as consequências das suas acções. Podemos não ter o hábito de comer cães, é certo, mas não deixamos de lhes produzir dano de inúmeras formas.

Talvez nada disto tenha motivado a artista. Mas a riqueza de uma obra de arte está na multiplicidade de interpretações que permite.

Meat is murder?

Por Professor Peter Sandøe, Danish Centre for Bioethics and Risk Assessment


“Meat Is Murder” – dizem alguns amigos dos animais mais radicais. Terão eles aqui um argumento válido? Será eticamente aceitável matar animais só porque gostamos de comer carne? Esta questão irá provavelmente fazer com que algumas pessoas se engasguem com o seu bife, costeletas ou perna de frango.


O actual debate ético sobre a produção de carne centra-se em como os animais vivem e são abatidos. É assim, hoje, mais ou menos consensual que matar animais para consumo é aceitável desde que os mesmos tenham vivido uma boa vida. No entanto, é fácil demonstrar que as nossas atitudes perante o abate de animais são mais complexas do que isto. Imaginemos o caso de uma pessoa que a cada primavera compra um cachorrinho e o leva para a sua casa de verão. O filhote vê todas as suas necessidades atendidas e vive uma boa vida até que a pessoa, no final do verão, o leva ao veterinário para ser morto antes de regressar ao seu apartamento na cidade. A maioria acharia anti-ético tratar um cão dessa maneira, mas qual a diferença em comparação com o abate de suínos sustentado no facto de terem tido uma vida boa enquanto durou?

Alguns poderiam dizer que precisamos de carne para sobreviver, mas que podemos perfeitamente viver bem sem um cachorro. A estes pode-se retorquir que se pode viver fácil e saudavelmente como vegetariano, e que à maior parte das pessoas na nossa parte do mundo não faria mal comer menos carne do que a que comem agora. Por outro lado, o enriquecimento da vida de alguém com o tempo passado com um cachorro pode ser equiparado à felicidade de comer um bife mal passado ou um porco no espeto.

Se envolvermos o relacionamento com os nossos congéneres seres humanos na reflexão ética, as coisas não se tornam menos complicadas. É um ponto fundamental da ética predominante a ideia que matar deliberadamente pessoas não é aceitável. Em geral, o acto de matar premeditadamente é aceite apenas em casos de extrema urgência, como por exemplo num cenário de guerra. No entanto, é considerado um crime tirar a vida a pessoas, salvo em situações de auto-defesa. No que diz respeito à morte, portanto, nós estabelecemos uma nítida distinção ética entre os seres humanos e animais. Então, qual será a diferença eticamente relevante entre matar um ser humano e abater um porco? Há quatro respostas comuns para esta pergunta.

A primeira resposta é a de que cada ser humano tem uma personalidade única, enquanto os animais não têm individualidade sendo, por assim dizer, “dezenas de criaturas”. Mas vivendo de perto com cães ou gatos, por exemplo, descobre-se que eles não são idênticos. Cada animal tem os seus hábitos específicos, excentricidades e outras características individuais. Que alguns animais de produção sejam vistos como anónimos, provavelmente tem a ver com o seu grande número e o facto de serem mantidos de uma maneira que não permite muito contacto humano com o animal. A primeira resposta não se sustem, por si, quando analisada atentamente.

Outra resposta é a de que os animais, ao contrário das pessoas, vivem no momento, não tendo portanto qualquer desejo de continuar vivendo. O abate de um animal não é contra a vontade do animal. No entanto, a maioria das pessoas expressam um forte desejo de viver e têm planos de vida que vão muito além do momento actual. Portanto, o assassinato de um ser humano geralmente entra em conflito com o seu desejo de viver e com os seus planos concretos para o futuro. A fraqueza dessa resposta é que não é válida para todas as pessoas. Existem algumas que, tal como os animais, vivem “no momento”, como por exemplo crianças muito pequenas e algumas pessoas com deficiência mental. Se é correcto matar animais porque eles vivem no momento, também é correcto matar estas pessoas. Alguns poderão tentar resolver este problema dizendo que estas pessoas, contrariamente ao que sucede com os animais, têm o potencial para serem indivíduos plenamente desenvolvidos. Esta solução tem como consequência que o aborto induzido deva ser considerado eticamente inaceitável, uma vez que um feto humano é também, potencialmente, um ser humano plenamente desenvolvido.

As duas outras respostas têm a ver com as consequências do abate dos animais.

 A terceira resposta é a de que matar seres humanos acarreta graves consequências para os enlutados. Em primeiro lugar, o assassínio de humanos leva a sentimentos de luto e perda. Em segundo lugar, a morte sistemática de pessoas levaria a medo e horror generalizados. Estas consequências também sustentam a que nos oponhamos ao matar de crianças pequenas e pessoas com deficiência mental. O abate de gado não tem – ou tem apenas num sentido muito limitado – um impacto tão adverso.

A quarta resposta baseia-se nas consequências para os animais. Muitos animais existem apenas na medida em que humanos beneficiam dos mesmos. Sem a possibilidade de abater animais de produção, estes seriam de valor muito limitado para os seres humanos e, assim sendo, a grande maioria dos mesmos não existiria, de todo. Como a alternativa é a de que os animais não existiriam, e dado que uma vida curta e boa é melhor que vida nenhuma, o abate de animais não surge como eticamente incorrecto. Em contraste, o aceitar que se matem pessoas não levará a que se criem mais pessoas.

As três últimas respostas, na minha opinião, conjugam-se para justificar como pode ser eticamente aceitável matar animais sem que isso torne, por sua vez, aceitável o assassínio premeditado de pessoas.
Esse raciocínio tem seu preço. A tradicional distinção entre o animal, que existe para nós, e seres humanos, cuja vida é em princípio inviolável, já não é credível. A diferença na avaliação ética de matar, respectivamente, animais e pessoas, baseia-se em equilibrar as consequências e não em diferenças principais.

Também é importante notar que pode haver outras perspectivas éticas sobre a morte de animais do que aquelas aqui apresentadas. Alguns, por exemplo, argumentam que os animais superiores têm direito à vida e, portanto, é nosso dever viver como vegetarianos (ou melhor dizendo, vegans) e deixar os animais continuarem a viver suas próprias vidas até que morram de morte natural. Esta ética dos direitos dos animais estará em forte contraste com a nossa cultura, onde comer e utilizar os animais é algo profundamente enraizado. Mas isso não faz com que essa visão esteja errada. Já foi também um valor profundamente enraizado na nossa sociedade que os homens tinham mais direitos que as mulheres. Isso não significa que os primeiros defensores da igualdade das mulheres estivessem errados. Estavam apenas a lutar contra poderes muito fortes.

O texto original foi publicado no Weekendavisen 17 de Setembro de 2010. A presente versão foi traduzida e revista por Anna Olsson e Nuno Franco com ajuda do Google Translator.

A declaração de Basileia – informação, debate e transparência contra a intolerância

 A 29 de Novembro, e em resposta aos actos de violência por parte de grupos extremistas defensores dos direitos dos animais, juntaram-se em Basileia 50 cientistas de topo alemães e suíços para redigir e assinar a Declaração de Basileia, recentemente em destaque na Nature News.

Da esquerda para a direita: Prof. Michael Hengartner, Reitor da Faculdade de Matemáticas e Ciências Naturais da Universidade de Zurich; Prof. Dieter Imboden, president do National Research Council of the Swiss National Science Foundation e Prof. Stefan Treue, Director do German Primate Center, Göttingen

A mesma fundamenta-se na importância que a informação transparente e pormenorizada pode ter no esclarecimento da opinião pública acerca do uso de animais em biomedicina. No seu preâmbulo, faz-se uma pequena resenha dos argumentos que, no seu entender, justificam o uso actual de animais para dar resposta a problemas emergentes da saúde humana e de outros animais.

Os signatários comprometem-se, entre outras coisas, a apenas usar animais quando estritamente justificado, no menor número possível e de acordo com as mais escrupulosas medidas de preservação do bem-estar animal e do ambiente, fazendo ainda esforços na promoção do entendimento da ciência por parte do público e da classe política.

É também devidamente vincado que a educação científica nas escolas, bem a informação dos media e a promoção de um debate informado são da maior importância, que não é possível separar investigação básica da aplicada, que o uso de animais em biomedicina não deva ser travado, que novas leis e regulações sejam promulgadas como resultado de um entendimento objectivo, democrático e factual e que condenem quem a pretexto dos direitos dos animais transgride a lei e promove actos de violência.

Todos os cientistas cujo trabalho se relaciona de alguma maneira com o mundo animal são convidados a subscrever esta declaração (instruções aqui).

Diferentes culturas, diferentes éticas?

Texto escrito por Bárbara Oliveira, Fátima Sousa, Irina Pereira e Raquel Matos, alunos do curso de Pós-Graduação em Bem-Estar Animal, ISPA

Ao comentarmos esta questão somos levados a pensar que o seu conteúdo está intrinsecamente associado às diferenças culturais dos povos e, como tal, podemos inferir que os valores éticos também podem mudar com as variações culturais. Esta pergunta reveste-se de um conteúdo gigantesco quando pensamos nas várias escolhas alimentares de diferentes civilizações.

Analisemos a situação sobejamente conhecida do uso de cães e gatos na alimentação dos povos asiáticos. Do ponto de vista ocidental, a ideia de comer animais domésticos, como o cão e o gato, com os quais (tradicionalmente) se criaram fortes laços afectivos, origina repulsa e, em muitos casos, indignação, uma vez que não são percepcionados como alimento. Estas espécies, como seres sencientes que são, poderiam ser alvo do mesmo “tratamento” que as espécies pecuárias sem originar grande controvérsia, não fossem as relações emocionais que os entrelaçam com os humanos.

Noutra perspectiva, e colocando de parte qualquer teoria relacional, será muito diferente o consumo de carne canina ou felina do consumo de qualquer outra carne? Até que ponto a moralidade de alguém ou algum povo pode ser posta em causa pelo tipo de carne que consome? Onde se enquadra, por exemplo, o consumo de carne de cavalo nesta escala?

Tal como no Ocidente as pessoas podem ficar chocadas pela maneira como os cães são tratados nas culturas orientais, onde são utilizados como fonte de alimento, levando-nos a pensar que ética e que moralidade terão esses povos, questionamos o que pensarão os habitantes da Índia sobre as civilizações ocidentais, onde os bovinos são tratados sob controlo humano, para depois servirem de alimento, enquanto, que para eles são considerados animais sagrados?

Face a esta reflexão, questionamos – diferentes culturas, diferentes éticas? Não, entendemos que não. A ética, como princípio filosófico, é a mesma. A aplicação prática desta é que difere de cultura para cultura. A moralidade impressa a todos os “actos” com animais é divergente, e isso sim, depende da cultura dos vários povos. Talvez a grande questão se coloque não no tipo de carne consumida, mas as condições em que estes animais são mantidos e abatidos.

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? – O debate possível ( PARTE 3)

[Partes 1 e 2, respectivamente, aqui e aqui]

Seguidamente, tem a a palavra Rita Silva, Presidente da Direcção da  Associação Animal. A pessoa afável e calma que se apresenta com um caloroso sorriso contrasta com o teor do resumo que apresenta. No mesmo, um cenário dantesco e horripilante do uso de animais em ciência é pintado com imagens grotescas de cabeças rebentadas por martelos, ossos quebrados, colunas partidas e eléctrodos no cérebro (estes, já agora esclareça-se, não causam dor, uma vez que o cortex não possui terminações nervosas) que se perfilam para ilustrar um título já de si sugestivo: “Violência em nome da Ciência”, executada sem anestesia em “pelo menos 65% dos casos”, asseguram.

A sua exposição é, contudo, muito menos gráfica e de teor bastante mais moderado. Na mesma, condena o uso de animais sobretudo com base em argumentos éticos, e não tanto científicos, uma abordagem que inteligentemente a salvaguarda de potenciais investidas reactivas duma plateia de futuros ou actuais cientistas, que sabe não serem o seu público. Não deixa, no entanto, de lembrar o que no passado foram [qualquer coisa como] as trágicas consequências humanas do uso de modelos animais. Fala nas alternativas, no caminho da modernidade e do que é o grande interesse económico que faz perpetuar o uso de animais, não obstante o facto do mesmo ser, no seu entender, obsoleto. Condena ainda o uso de animais na investigação em cosméticos e promove a base de dados da “Animal” em alternativas e da sua lista de de produtos “amigos dos animais”. Não obstante o meu dever de isenção, temo ter inconscientemente abanado a cabeça em reprovação de muito do que oiço. Muito do que diz é uma reprodução de falácias repetidas ad nauseam em sites “anti-vivissecção” (termo, no meu entender, infeliz) facilmente refutáveis, mas que são tidas como verdadeiras por parte de quem não tem acesso (ou não quer ter) ou capacidade para entender informação cientifica, objectiva e isenta. Não conheço nenhum cientista que use animais por interesse económico, sei que não há qualquer composto em produtos cosméticos que não tenha sido já testado em animais e humanos e que as companhias que alegam não o fazer usam produtos já extensivamente testados há muitos anos atrás.  Conheço todos os casos de alegada falta de validade do uso de animais repetidamente evocados, de modo deturpado ou completamente erróneo.

Confesso-me desiludido. Se, por um lado, os argumentos científicos ou económicos não são devidamente explorados e fundamentados, por outro esperava um aprofundar das questões éticas subjacentes ao uso de animais, dado esse ser o principal argumento. Nem uma coisa nem outra, portanto.

Como cientista, devia-me sentir ultrajado por estas alegações. Engulo, contudo, o orgulho ferido e procuro ver que há alguma razão por detrás destas acusações. Há ainda uso de animais desnecessário e injustificadamente severo. Sinto que, não obstante terem sido os 3Rs propostos há 50 anos, a sua implantação estar ainda na infância, por variadíssimas razões que não cabem aqui. E coloco a pergunta [a propósito da inclusão dos 3Rs na nova directiva europeia]:

– “Como vêem os 3Rs? Progressistas? Nefastos por legitimadores do uso de animais?”

– “Importantíssimos”, oiço de um lado, desejando por dentro que todos os cientistas assim pensassem.
– “Só o Replacement nos interessa” – oiço do outro lado. Contudo oiço ainda que, até o mesmo ser completamente atingido, devemos Reduzir e Refinar. Luz ao fundo do túnel! Afinal há diálogo possível.

Apesar de muitas vezes o debate entre cientistas e activistas seja frequentemente difícil, é possível falarmos a mesma linguagem: a da razão, do respeito e do compromisso. Não o chegamos a alcançar verdadeiramente neste debate, mas não havia tempo nem representatividade de ideias suficientes para isso. Mas é algo que devemos alcançar, já que estamos “condenados” a partilhar o mesmo Planeta.

O tempo dedicado às perguntas do público é desperdiçado, na sua maioria. Infelizmente, o conhecimento superficial do tema e o desejo dos alunos de manifestar o seu apoio ou reprovação do que ouviram faz perder a oportunidade de trazer a lume as questões mais prementes. Nas suas respostas, as palestrantes aproveitam para reiterar as suas mensagens: de um lado, a experimentação animal como científica e moralmente justificável e os 3Rs e a lei como garante da elevação ética da conduta dos investigadores; do outro, o uso de animais como totalmente injustificável, pouco válido e promovido por interesses alheios à ciência. Aplausos aqui e ali, para apoiarem uma ou outra postura (sendo a prof. Fátima um pouco mais popular, até porque “joga em casa”).

No remate, a Rita Silva aproveita para uma vez mais chamar a plateia a atenção para o sofrimento animal e da urgência em mudar de paradigma. A prof. Fátima tira mais um coelho da cartola: – “quem concorda com o uso de animais para testar produtos como champô para o cabelo?” – e penso para mim, “eu concordo em usar produtos testados, mas não vejo motivo para testar mais produtos”. No entanto, antes mesmo de se poderem contar as opiniões, remata da seguinte forma: “eu também não, não há necessidade”.  Fico confuso, pois tenho a certeza que está mais mais do que ciente da importância de usar produtos seguros (ainda que não sejam necessário mais produtos de higiene). Oiço aplausos. Percebo a sua intenção: apesar de o fazer de um modo um tanto ou quanto demagógico, quer assegurar à audiência que os animais não são usados para “futilidades”. Ficamos bem na fotografia. Mas quem me dera que a mesma retratasse com fidelidade a realidade.

Este é o debate possível. Mas um debate, apesar de tudo. Balanço positivo, portanto.

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? – O debate possível ( parte 2)

Antes de proceder a uma análise do próprio, debate, acho pertinente começar por remeter o leitor para os resumos das oradoras neste debate.

Debate
by nunohfranco

Falta no resumo da Prof. Fátima Gartner a alusão que fez ao uso de modelos espontâneos de animais em contexto clínico (que até Rita Silva aprovou), a qual pode ser uma mais-valia em várias áreas de investigação, mas que tem imensas limitações para que possa ser usada de modo generalizado em biomedicina. Uma ressalva que faltou, todavia, o que pode ter dado aos alunos a ideia que esta abordagem pode resolver os problemas éticos do uso de animais.
 
Da leitura dos resumos, denota-se a importância que a Prof. Fátima ao esclarecimento da opinião pública, de mostrar o lado humano dos investigadores, da importância do seu trabalho, da existência de regulação do uso de animais e da preocupação existente da comunidade científica do uso de animais. A sua apresentação cobriu, aliás, tudo isso, com o bónus de ter sido apresentada de um modo apaixonante e muito convincente. Eu, se fosse um dos alunos espectadores, teria ficado mais do que satisfeito com a elevação ética dos cientistas, com os benefícios do seu trabalho e daria graças por ser alguém devidamente esclarecido e não pertencer a esse grupo de”activistas” que, afinal, apenas pretendem atrasar o progresso científico com as suas ideias “radicais”.

Como cientista a trabalhar na área da ética e do bem-estar animal, contudo, estou longe de ficar convencido. Começou a Prof. Fátima – depois de ressalvar que a sua visão era fundamentada na sua própria experiência profissional – que era o dever de qualquer cientista responsável garantir o respeito pelos 3Rs. O problema, no entanto, é que nem todos agimos como os tais “cientistas responsáveis”, por falta de conhecimento, sensibilidade ou por outros factores alheios ao nosso controlo. É um facto. Nem todos estão suficientemente sensibilizados para o dever ético de reduzir o sofrimento ao mínimo. Muitos outros não sabem como o fazer. Nem todos sabem justificar porque usam um determinado modelo animal, para além do facto de muitos outros o fazerem na mesma área (só a questão cultural do uso de animais dava pano para mangas). Muitos desconhecem a melhor maneira de delinear uma experiência com animais, seja ao nível do desenho experimental estatístico ou não estatístico, e usam animais a mais, ou a menos, e muitas vezes com resultados adulterados por não controlarem devidamente as diferentes variáveis (atenção que isto nada tem que ver com a validade de usar animais como modelos dos seres humanos, a qual faz todo o sentido de um ponto de vista evolutivo, desde que consideremos as devidas distâncias filogenéticas). 

Quanto à legislação, a mesma apenas tem utilidade se houver mecanismos de supervisão do seu cumprimento. E esta supervisão está longe de ser satisfatória, embora a este respeito os institutos de investigação cada vez substituem às entidades governamentais nessa supervisão e aconselhamento sobre o uso de animais, o que é louvável

Mas, resumindo, ainda há muita investigação em animais que é injustificada (por redundante ou desnecessária), infrutífera (por má escolha do modelo ou falhas no desenho experimental) e não respeitadora dos 3Rs. Quero muito acreditar na existência da comunidade científica retratada por Fátima Gartner, mas sei que ainda estamos longe desse paradigma. E a professora também sabe isso. Mas acredito que as coisas mudam para melhor e que há trabalho excelente no desenvolvimento e implantação dos 3Rs. Há muito a fazer na sensibilização e formação dos cientistas, aqueles que, em última instância são os verdadeiros responsáveis pelo bem-estar dos animais. A formação tem um papel importantíssimo. Para o ilustrar, deixo-vos aqui a opinião de cientistas que participaram em cursos de Ciências de Animais de Laboratório (categoria C – FELASA), uma ano depois dos mesmos:

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Mas há ainda o lado da história da Associação Animal para contar. E que fica para a terceira parte.