
O meu primeiro emprego em bem-estar animal foi no que é hoje a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). Tinha acabado a minha formação na área e estava desejosa de a pôr em prática. Entrei para a recém-criada Divisão de Bem-Estar Animal, liderada pela Drª Selene Veiga, a quem ouvi defender posições avançadas sobre bem-estar animal – o que na altura não era vulgar entre veterinários, mais focados no uso instrumental dos animais, sobretudo para consumo de carne. Ela falava com consideração moral e prática não só de animais de pecuária, mas também de laboratório, de companhia e até de animais selvagens. Foi com estes últimos que me pôs a trabalhar, em face da minha formação de base. Com ela aprendi que nem sempre é justo rotular os veterinários pela imagem que alguns, mesmo que na altura muitos, criam da profissão e aprendi também o valor da colaboração e da multidisciplinaridade. Há mais de 20 anos atrás.
Pelas mãos daquela experiente veterinária e das que se seguiram, a divisão ganhou forma, expandiu-se nos tópicos com que trabalhou, ajudou a aplicar e fiscalizar um grande pacote de leis que nos chegaram da União Europeia. Criaram-se estratégias de formação de técnicos, produtores e tratadores. Os funcionários da divisão desdobraram-se em deslocações pelo país para mapearem a situação das pecuárias, dos canis, dos parques zoológicos e dos laboratórios que usavam animais. Falhou muita coisa, com certeza que sim: por fragilidades técnicas, humanas, de conceitos e de recursos. Ao longo do tempo, diversas políticas e carências mantiveram lacunas que num sistema administrativo mais eficiente e modernizado poderiam ter sido ultrapassadas. O que é certo é que, naquele tempo, o bem-estar animal ganhou uma morada, um conceito prático e respeito. Ganhou um conjunto de técnicos que se conseguiram fazer ouvir até hoje junto de interlocutores difíceis e que nenhum político a discorrer sobre animais realmente conhece na prática.
Hoje chegámos a um ponto em que, segundo a Ministra da Agricultura, a atual DGAV tem que se dedicar à alimentação, isto é, aos animais de pecuária. O Ministério do Ambiente que se dedique aos outros – isto junto com as políticas de ambiente, ordenamento do território, cidades, transportes, mobilidade, clima, conservação da natureza, energia, geologia e florestas, e tantos outros temas muito pouco afins com animais de companhia. O PAN, por quem tenho respeito e concordância quanto a vários pontos de vista filosóficos relativos à proteção animal, entendeu focar-se na DGAV como bode expiatório da tragédia dos canis de Santo Tirso. O Governo respondeu precipitadamente na mesma linha e encenou uma mudança de estratégia, sem qualquer consideração pelos reais problemas que bloqueiam uma ação mais efetiva por parte da DGAV e outras entidades, como as Câmaras Municipais. Esperemos que aquilo que começou por ser uma indignação generalizada contra os maus-tratos a animais não venha a ficar para a história como a situação que fez o atual Governo desfazer o único departamento oficial dedicado a bem-estar animal e que mais contribuiu para o melhorar em Portugal.
Leonor Galhardo – Bióloga, consultora de bem-estar animal
(uma versão deste artigo foi originalmente publicada no Jornal Expresso online)