Frans de Waal: comportamento moral em animais.

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Fanz de Waal é um conceituado primatologista e etólogo que ficou famoso, entre outras facanhas científicas, por demonstrar a importância da reconciliação na agressividade dos chimpanzés. Para o fazer, De Waal teve de recorrer um grau moderado de antropomorfismo, isto é, teve de se basear naquilo que se passa nas relações entre seres humanos para construir a sua hipótese em chimpanzés, que se veio a verificar.

No vídeo que aqui vos deixo, De Waal parece recorrer um nível mais elaborado de antropomorfismo para construir a hipótese de que (pelo menos alguns) mamíferos apresentam comportamentos morais, tais como empatia, cooperação, justiça e reciprocidade. Embora as experiências sejam muito apelativas, até pelo rigor com que são realizadas, eu tenho relutância em fazer a mesma leitura dos seus resultados. Talvez eu tenha um preconceito behaviorista na medida em que considero não ser possível medir a moralidade de uma acção ou comportamento apenas através da sua observação. É meu entender que se não temos acesso às motivações que dão origem ao comportamento, não vale a pena fazer afirmações sobre a sua moralidade. Porque não o podemos confirmar; um comportamento que apenas aparenta ter motivações morais não é em nada diferente de um comportamento de facto baseado em princípios morais. E por isso, considero as conclusões de de Wall como “antropomorfismo sentimental”, ou aquilo que Kennedy (1992) apelida de “mock anthropomorphism”.

Mas houve outra coisa que me chamou a atenção neste vídeo: eu sou da opinião que a ciência deve ser divertida, mas não consegui deixar de sentir algum incómodo com as observações risíveis de De Waal sobre os vídeos e as correspondentes gargalhadas da plateia, que reagia como se estivesse a ver uma comédia. Não penso que isso contribua para a credibilidade do estudo da etologia cognitiva.

Ó seu zoocêntrico!

Quando no século XVI Copérnico apresentou o seu – então revolucionário – modelo do sistema solar, iniciou-se uma batalha entre uma visão geocêntrica (a então predominante) e uma visão heliocêntrica (a de Copérnico). No contexto astronómico, os termos fazem todo o sentido: o que se discutia era se a terra circulava a volta do centralmente localizado sol ou o sol a volta da centralmente localizada terra.
 O Modelo Heliocêntrico de Copérnico (esq.) e o modelo
Geocêntrico (dir), vigente  no  Séc. XVI (Fonte)
Numa tentativa de sistematizar as diferentes percepções éticas do mundo vivo, alguns autores referem-se a um outro conjunto de centrismos: o antropocentrismo, o zoocentrismo, o biocentrismo e, às vezes, ainda o ecocentrismo. Destes quatro, tropeço sempre no zoocentrismo – e sobretudo no uso deste termo para descrever a ética de Peter Singer e Tom Regan (como é o caso no recente parecer do CNECV, abordado no post anterior).
Vejo três problemas com este uso do termo.
O menos grave é que a analogia com a astronomia é algo coxa, uma vez que a questão é mais “Quem está incluído no círculo moral” do que “Quem está no centro do círculo moral”.
Capa do  “The Expanding Circle”, de Peter Singer,
onde o autor defende a ampliação do nosso círculo de
consideração moral para incluir os animais senciente.
Mais problemático é que o termo convide a uma interpretação errada, porque estamos habituados a usar o termo “zoo” para falar dos outros animais. Mas nós, os animais humanos, ainda cabemos no círculo moral que Singer ou Regan estabelece. Só não podemos é contar com a posição central (e elevada) que o antropocentrismo nos confere.

Mas o mais grave de tudo é afirmar-se que a ética de Singer ou Regan se centra nos animais. Para este autores, os portadores de interesses (Singer) ou direitos (Regan) não são todos os membros do reino animal, mas antes os que têm a capacidade de sentir, os sencientes.

Por isso, se insistimos em falar em centrismos, e em tentar encontrar um em que podemos inserir Singer e Regan, o melhor termo será provavelmente senciocentrismo.

O Elo Homem-Animal e a Lâmina de Ockham

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Não é uma história inédita – faz lembrar o famoso caso de Hachiko – mas esta passa-se em Portugal nos dias de hoje: um cão que acompanhou a dona na sua última viagem ao Centro de Saúde e que não arreda pé desde então. Com uma música delicodoce a acompanhar, como convém neste tipo de histórias a puxar ao sentimento, a reportagem visa mostrar como o elo homem-animal (Human-Animal Bond) pode ser tão forte que ultrapassa as fronteiras da própria vida.

Gostava, porém, de desafiar esta explicação, empírica e complexa, e aplicar a Lâmina de Ockham (Occam’s Razor) para propor uma outra explicação mais simples para este tipo de comportamento. Sabemos que o cão tinha o hábito de fazer este percurso e tudo indica que se estabeleceram padrões comportamentais que permitiram ao animal fixar o que fazer a seguir. Entre estes comportamentos adquiridos estaria o regresso a casa, assim que a dona saísse do Centro de Saúde. Não será que, ao invés de “sentir a falta” da dona e por isso se recusar a abandonar o local, o animal está simplesmente bloqueado pela ausência do estímulo que lhe indica que chegou o momento de voltar para casa? Isto é, quem nos garante que a permanência no local é um acto consciente e não apenas uma resposta inconsciente à ausência de um estímulo?

P.S. Podem ficar os animalogantes descansados já que o cão foi adoptado por alguém que viu a reportagem.

A minha anémona tem mais personalidade do que a tua

Source: Sciencemag.com Credits: Martyn Gorman

Um estudo científico publicado o mês passado na PLoS ONE, vem defender que as anémonas, animais marinhos invertebrados de vida adulta sedentária, possuem personalidades diferentes. Os investigadores da Universidade de Plymouth, no Reino Unido, não têm dúvidas em afirmar que “ao invés de se restringir a determinados grupos, a personalidade pode ser uma característica geral dos animais e ser particularmente acentuada em espécies com sistemas nervosos simples.”

Embora o estudo evite fazer considerações sobre se esta descoberta deve influenciar a forma como tratamos as anémonas, não deixa de ser pertinente questionar sobre se a posse de personalidade é uma característica suficiente para se ser considerado como sujeito moral. Um ser com personalidade é um ser capaz de tomar opções baseadas em estímulos sensoriais. E em termos de bem-estar, as opções de um animal devem ser tidas em conta.

As anémonas pertencem ao Filo Cnidária, o mais simples dos filos do Reino Animalia que possuem verdadeiros tecidos e orgãos especializados. Em 2008, na minha tese de Mestrado em Bioética, defendi que a consideração moral deveria incluir os seres invertebrados e que, essa consideração teria início nos cnidários por serem os primeiros animais com tecidos muscular e nervoso. Considero ser esta a fronteira que separa aqueles que sentem (muito ou pouco) dos que não sentem (nem podem sentir) e a divisão mais ou menos arbitrária que filósofos têm proposto para a senciência ao longo dos anos tem aqui um determinismo biológico que, a meu ver, não pode ser ignorado. A presença de características individualizantes (ou personalizantes ?) em anémonas vem desta forma reforçar a minha opinião.

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 3

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética
(Ver Parte 1 e Parte 2)

Qual é o mal de experimentar num ser-vivo prestes a ser eutanasiado?
Quanto ao bem-estar, em princípio não haverá tanto comprometimento como na hipótese anterior, já que, pelo menos, não haverá sofrimento continuado, como no caso do pós-operatório, ou de experiências repetidas.
O valor da vida não é também ameaçado pelo procedimento em si, pois a eutanásia encontra-se eminente independentemente da experimentação.
Relativamente à dignidade do ser-vivo, continuamos numa zona cinzenta. Provavelmente, neste caso, a dignidade será implicada num grau intermédio, quando comparado com as duas situações anteriores.
E então, onde ficamos?
De uma forma resumida, penso que a experimentação num ser-vivo que está prestes a ser eutanasiado, pode ter menos implicações no bem-estar e na vida, quando comparada com a experimentação num ser-vivo saudável, mesmo que este tenha sido concebido para a experimentação. Por sua vez, a utilização de cadáveres acarreta ainda menos possibilidades de comprometer o ser-vivo, julgando por estes três valores em jogo no nosso tabuleiro.
Para finalizar, gostaria de ressalvar a existência de muitos outros factores e valores que devem ser atendidos e bem pesados, para uma mais útil discussão sobre esta matéria, factores e valores que não são vislumbrados pelo objectivo deste texto. Exemplo disso é o benefício da experimentação, na forma de resultados, para a Ciência, para a humanidade, para o indivíduo, podendo incluir também o ser-vivo utilizado na experiência. Outro exemplo é o impacto social que a instrumentalização poderá ter, no aumento ou diminuição do respeito pela vida. Outro, ainda, é a incapacidade parcial de um cadáver em simular as condições em vida; ou de um animal que vai ser eutanasiado em oferecer certos resultados a longo prazo. Mais, a necessidade de no caso de investigação científica os indivíduos testados apresentarem-se normalizados, não implicando desvios nos resultados, e não ameaçando a segurança e a sanidade da equipa em experimentação.
Para finalizar mesmo, proponho que se questione se a utilização de um animal de rua que vai ser eutanasiado, não poderá ser incluída num dos 3 R´s propostos para melhorar o uso de animais na experimentação científica e, para melhor rigor, em qual deles: Refinement, Replacement ou Reduction.

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 2

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética

(ver Parte 1)

Qual é o mal de experimentar num ser-vivo saudável?


Poderemos afirmar que não existirá sofrimento inerente ao uso para experimentação? Mesmo que o ser-vivo seja criado e mantido para esse fim, em condições unanimemente consideradas apropriadas, pode advir sofrimento da experiência, nomeadamente, e especificando, para experimentar técnicas cirúrgicas, e respeitando os protocolos ideais, vai existir um distúrbio inevitável no bem-estar, pelo menos, pós-operatório (dor, enjoo, confusão mental). Parece-me que o bem-estar será comprometido na experimentação, independentemente de o ser de uma forma significativamente importante, independentemente de ser ou não justificável, pelo acrescento que trará à Ciência.

Relativamente à vida, ela poderá estar mais ou menos ameaçada, dependendo muito do que é experimentado, de que forma, do número de vezes, ou por quem é praticada a experiência.

Quanto à dignidade, continuará a existir pouca clareza, mas parece-me que a implicação da instrumentalização no bem-estar e na protecção da vida, torna esta questão mais inclinada para um dos lados: talvez a dignidade do ser-vivo esteja a ser mais lesada, se a experiência implicar uma ameaça ao seu bem-estar e à sua vida, independentemente de o ser de uma forma significativamente importante, independentemente de ser ou não justificável, pelo acrescento que trará em termos de conhecimentos ganhos. (continua)

O caso das galinhas cegas

Texto escrito por Ana Margarida Costa, Diva Oliveira e Sónia Saraiva, alunas no Curso de Pós-Graduação em Bem-Estar Animal, ISPA

O sofrimento põe de forma inequívoca em causa a integridade e dignidade dos seres sencientes. Se podemos diminuir a dor ao custo de outros aspectos da integridade fisica, será um objectivo desejável?

Vemoso caso das galinhas cegas. Aqui, Costa et al. (2001)* dá-nos conta da utilização da técnica do corte de bico para prevenção do canibalismo e picacismo entre galinhas poedeiras em sistemas de produção intensivos, sendo estes comportamentos predominantes entre galinhas com plumagem castanha. Estes problemas têm uma origem multifactorial englobando as condições de criação, de alimentação e de manutenção tornando difícil o seu controlo.

O corte do bico constitui um procedimento doloroso para as galinhas e pode resultar numa privação sensitiva permanente e definitiva. Uma solução alternativa consiste na reprodução selectiva a partir de uma mutação espontânea que origina galinhas cegas que não mostram tendência para nenhum dos comportamentos apontados. Não existe alteração na produção precoce de ovos e apesar de haver uma diminuição de cerca de 25% de consumo de alimento, como são menos activas mantêm os seus níveis de peso. No entanto, como a visão é um dos sentidos mais importantes para as aves, há um risco considerável que as galinhas cegas deixem de ter os comportamentos normais da espécie como o “banho-de-pó” e têm dificuldade em alimentar-se.

Aparentemente, o procedimento de cortar o bico por ser doloroso põe em causa o bem-estar animal, parecendo ignorar qualquer código moral e ético da relação homem/animal. Segundo J. Bentham (1748-1832) quando se preocupa com o bem-estar de alguém não interessa se ele pensa ou raciocina, mas sim se sente ou consegue manifestar de algum modo o seu sofrimento mesmo sem falar. À primeira vista parece evidente existir apenas uma preocupação economicista, uma vez que o canibalismo causa a morte de alguns animais acarretando prejuízo para a exploração. Contudo, pode estar presente também uma preocupação ética animal, na medida em que existe o desejo de minimizar o sofrimento que os animais causam uns aos outros. Este caso suscita assim alguma ambiguidade, levantando algumas questões. O que provocará maior dor, o canibalismo e picacismo, ou o corte do bico? Ou será que um enriquecimento do meio ambiente seria suficiente para evitar os comportamentos agressivos?

A reprodução selectiva de modo a originar galinhas cegas, numa lógica puramente utilitarista constituiria um bem e deveria ser incentivada, ao passo que, do ponto de vista da integridade psicofísica do animal, representaria uma forma de mutilação, impedindo o uso de um dos orgãos para o fim que evoluiu. Além disso, sob o ponto de vista do bem-estar animal existiu uma interferência humana que impede o animal de ter uma vida própria dos da sua espécie. E seguramente, os ancestrais selvagens das galinhas usavam a visão para a generalidade dos seus comportamentos, desde a procura de alimento até à fuga de predadores. Tom Regan lembrou que se “os animais são sujeitos à vida” têm direito à sua própria vida e não àquela que achamos melhor para eles. O maneio de animais de produção e de consumo em explorações intensivas, que P. Singer (1975) descreve como “a granja-fábrica”, justifica-se, se considerarmos que a humanidade necessita de proteínas animais. No entanto, nessas explorações, é essencialmente contemplado o factor custo/benefício a par dos aspectos técnicos, económicos e de rentabilidade da produção, sendo descurados os aspectos étnicos e morais no maneio e utilização dos animais, o que nos leva de imediato a questionar se será ou não lícito e moralmente aceite manipulá-los de acordo apenas com os interesses dos seus proprietários.

A questão ética de adaptar os animais às condições de manutenção através da criação selectiva ou do corte do bico, tem como alternativa adaptar tais condições às necessidades nos animais. Pensamos que a relação homem/animal, do ponto de vista ético seria mais equilibrada se fosse de facto possível melhorar as condições ambientais e sociais. Tal seria possível melhorando e enriquecendo as instalações e os espaços de permanência das galinhas, de modo a que estivessem menos animais em cada espaço e que estes pudessem manifestar comportamentos normais de vida livre. Desta forma, contribuir-se-ia para a diminuição dos níveis de stresse e de ansiedade nestes animais que despoletam comportamentos de agressividade como o canibalismo e o picacismo.

A ética empresarial sobrepôs-se assim à ética animal.


*Costa et al 2001 BIOÉTICA PARA AS CIÊNCIAS NATURAIS, compilação de conferências e casos de estudo do FLAD/NSF International Bioethics Institute, coordenado por Humberto D. Rosa

Of mice and men

If there is any literature-derived cliché in the scientific world that studies the two species, it is precisely this title. But in this very case, I can’t resist it. The human nature as John Steinbeck captures and describes in just over a hundred pages is also the one who is so clearly visible in a hot, if not rancorous Internet discussion going on right now. In what is expected to be a scientific forum.

The topic is the research report on pain and facial expression in mice that I wrote about here in early June. A few days ago the US-based Principal Investigator’s Association asked its – and ultimately of course, a number of additional – readers if this study was consistent with existing animal welfare rules and whether there were ethical questions which should have been raised before the trial was approved and published. Of course these are not unreasonable questions to ask about a study of pain in animals.

But to ask the readers of an open web forum to act as judges in a case of whether an experiment on animals should be approved is opening a snake’s nest. At the international level there are few research issues as infected as this one. This was evident within a few hours after the question was asked, and having prepared myself to write as fact-based as possible an analysis of the question I simply choked on what had already been said. Those who take the time to scroll down through the posts will understand why. But it is worth the trouble to do it, because what follows is a unique combination of ill-invectives and critical analysis that clearly indicates how widely differing perceptions and misperceptions that exist of the animal experimentation issue. And for the researcher interested in understanding what research communication is all about, there is a lesson to be learned about how more or less critical thinking non-scientists view what is an important research issue and a reasonable method to study it. As well as how researcher colleagues tackle the task of engaging in a rancorous debate.

I myself am somewhat hesitant about whether I should be writing this post at all, because I think I will continue to reflect on this for a long time to come, and what I write now is not necessarily what I will think in a couple of months. I’m not quite convinced that it is right to draw attention to the original discussion either. As many researchers have already expressed, the issue was wrongly addressed and, above all not appropriately presented. The study is published in a journal that is not Open Access, which means that those readers who do not have access to Nature Methods must rely on the description of the study presented by Principal Investigator’s Association, and which is insufficient and probably misleading on at least one central and very critical point: the how severe the pain was that the mice were exposed to.

Of course it is a huge paradox to expose animals to pain in the name of animal welfare research. This isn’t really the right description of the study in question either because the researchers are not primarily motivated by animal welfare concerns but by their research interest in pain psychology more generally. But the questions they ask and the findings they present are central for animal welfare research in a manner that is not quite easy to explain to those who are not familiar with the subject. For who seeing the world through the glasses of common sense would doubt that animals can feel pain? And how simplistic can researchers be to think it is a question worth asking?

Why then is the question of pain expression in mice important? Because the answer takes us a little bit closer to the possibility of measuring the immeasurable – that is, animal subjective experience. This, or more precisely consciousness, is what one of the world’s pioneering animal welfare scientists – Oxford behavioural biologist Marian Dawkins – described as the one major remaining mystery in biology. And it sits right in the center of animal welfare research. Whether it justifies the current study is another issue that science media will continue to discuss over the coming weeks. I will update with links.

Os peixes pensam?

“O que responderia se um jornalista lhe perguntar se os peixes pensam?”

Foi a ultima pergunta a ser colocada nas 3 horas de provas de doutoramento da Leonor Galhardo que defendeu hoje no ICBAS (Universidade do Porto) a sua tese com o título Teleost welfare: Behavioural, cognitive and physiological aspects in Oerochromis mossambicus.

“Sim, os peixes pensam”, respondia a (então) doutoranda, explicando que com isto queria dizer que no sentido de ter um processamento mental do seu ambiente e uma experiência subjectiva dele, os peixes pensam.

Deixamos os nossos parabens à Doutora Leonor Galhardo – e para quem tiver mais paciência do que a hipotetica jornalista segue o resumo da tese.

O bem-estar de peixes tem sido predominantemente associado a um funcionamento fisiológico equilibrado, tal como avaliado através de medidas de stress. No entanto, aquilo que os animais sentem acerca das suas próprias circunstâncias constitui o cerne do conceito de bem-estar, o qual depende pois da assunção de que os animais são sencientes e detêm algum grau de consciência. Dados recentes de neuroanatomia, cognição e comportamento, revistos no Capítulo 1, sugerem fortemente que o conceito de senciência pode ser alargado aos peixes. Assim, o estudo do bem-estar dos peixes não se deve continuar a restringir ao stress, antes exigindo o desenvolvimento de métodos para avaliar estados mentais, bem como uma melhor compreensão dos aspectos psicológicos enquanto partes de mecanismos de ajuste. Em resposta a alterações do ambiente, os peixes processam a informação mentalmente e desenvolvem mecanismos de ajuste com o objectivo de manterem a alostase. Os objectivos da presente tese consistem na identificação de indicadores importamentais e fisiológicos que informem indirectamente sobre os estados mentais dos peixes em circunstâncias particulares, e na identificação de moduladores psicológicos da resposta ao stress, nomeadamente o papel da envolvente social e da previsibilidade de eventos relevantes neste processo. O modelo usado foi a tilápia moçambicana (Oreochromis mossambicus), tendo em conta que a sua biologia é bem conhecida, que é muito adaptável a condições artificiais, e que tem uma importância económica crescente. Esta espécie possui um sistema social elaborado, no qual os machos territoriais escavam depressões no substrato, para os quais atraem as fêmeas para a reprodução.

No Capítulo 2, foram comparados grupos de peixes vivendo com e sem substrato. A ausência de substrato enfraqueceu o estabelecimento de dominância pelos machos, diminuiu os comportamentos sexuais e territoriais (escavação do ninho e pairar sobre o ninho), promoveu possíveis comportamentos anormais (e.g. escavação de ninho no vácuo), diminuiu os níveis gerais de actividade e a diversidade de comportamentos, e
não teve influência nos níveis de agressão. Ao nível fisiológico, não houve diferenças nos níveis de cortisol e de glucose, mas o hematócrito foi significativamente inferior nos machos sem acesso ao substrato. No Capítulo 3, a avaliação de preferência pelo substrato mostrou que os machos territoriais preferem passar mais tempo num compartimento com substrato, tendo esta preferência sido ainda maior num contexto de reprodução. Tantos os machos territoriais como os não territoriais preferiram alimentar-se no compartimento com substrato. No Capítulo 4 procurou-se adaptar um paradigma de “porta de empurrar” (‘push-door’) ao estudo da motivação dos peixes para acesso a alimento, parceiro social ou apenas substrato (controlo). As medidas adoptadas foram a latência da abertura da porta, a eficiência do trabalho (enquanto medida da atenção) e o custo máximo pago. Os resultados sugeriram que os machos valorizam o alimento e o parceiro social de uma forma similar, e mais que um compartimento apenas com substrato. Foi aparente que os machos territoriais tendem a valorizar o parceiro social mais que os machos não territoriais. No Capítulo 5
procurou-se validar o uso de cortisol como medida de stress na tilápia moçambicana.A variação diária de cortisol mostrou um aumento gradual durante o período nocturno e um pico no início da manhã. O isolamento social causou um aumento nos níveis de cortisol dos machos não territoriais. Foi feito um desafio in vivo que mostrou uma resposta por patamares, com os níveis de cortisol variando desde uma nível de base até um patamar superior sob níveis crescentes da dosagem de estimulação por ACTH. No Capítulo 6, os peixes foram submetidos a um teste de neofobia (objecto novo) e de confinamento, em diferentes contextos sociais. O objecto novo promoveu o comportamento exploratório dos machos quando não perturbados e em contacto visual com uma fêmea familiar, mas não afectou os padrões de inactividade nem as interacções com as fêmeas, em qualquer contexto social. A resposta de stress ao confinamento não foi afectada pelo contexto social. O Capítulo 7 analisou como a previsibilidade pode afectar a resposta ao stress por estímulos com diferentes valências. Um aumento dos níveis de cortisol foi a resposta ao confinamento não previsível. Níveis mais elevados de comportamento antecipatório e uma tendência para aumento do cortisol sugerem que eventos previsíveis de alimentação também podem despoletar uma resposta ao stress.

Os estados mentais são uma componente fundamental da avaliação do bem-estar, mas não são acessíveis ao escrutínio humano directo. Quando interpretados independentemente umas das outras, as medidas fisiológicas e comportamentais não são suficientes para informar sobre os estados internos. Desta tese pode-se concluir que uma combinação de estudos de privação, preferência e motivação, junto com a medida de parâmetros fisiológicos como o cortisol, é provavelmente uma abordagem relevante para inferir indirectamente sobre as experiências subjectivas dos peixes. O processamento da informação externa pelos peixes envolve uma componente psicológica. Este facto tem de ser tido em conta na interpretação das resposta ao stress e na gestão do bem-estar de peixes em condições artificiais.

Vê a dor nos olhos do ratinho ?

Em The expressions of the emotions in man and animals, Charles Darwin defendeu a existência de mecanismos universais para a expressão de sensações como dor e que ultrapassam as fronteiras inter-espécies. Baseou esta ideia na sua teoria da evolução através de selecção natural, mas também na sua própria investigação empírica. Através de um questionário enviado a compatriotas que trabalhavam em diversas partes do mundo, Darwin verificou que, da mesma maneira que os europeus elevavam as sobrancelhas, coravam, torciam o nariz e encolhiam os ombros, assim faziam também os malaios, os afro-americanos, os maoris e os índios. Agora sabemos ainda que bebés recém-nascidos e pessoas com cegueira congénita mostram as mesmas expressões faciais que humanos adultos saudáveis, o que corrobora que estas expressões sejam congénitas e genéticas, ao invés de aprendidas e culturalmente transmitidas.

Mas serão tão universais que as encontremos também em outras espécies? Darwin achou que sim, e o livro dele é rico em ilustrações disto. Outros exemplos ainda podem ser encontrados na exposição Exuberâncias da Caixa Preta a decorrer no Museu Soares dos Reis no Porto.

“Cat, savage and prepared to fight. Drawn from life by Mr. Wood.”
(De: http://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F1142&viewtype=text&pageseq=1)


O argumento evolutivo é que, se as expressões faciais são congénitas e genéticas em nós, então deverão também existir em espécies que nos são próximas. Se a capacidade de expressar sentimentos nos traz vantagens evolutivas, as mesmas deverão também ser benéficas para outras espécies. Ou não? Não é óbvio que assim seja. Para quem é muito pequeno e com muitos inimigos, poderá ser melhor não assinalar fraquezas. Um ratinho com dores será certamente uma presa mais fácil, mas será desnecessário dizer “ai!” arriscando-se a que o gato ouça.

Nos cursos para investigadores que pretendem trabalhar com animais, ensinamos que é difícil identificar sinais de dor num ratinho, porque há uma vantagem evolutiva para presas naturais esconderem sinais de dor e doença. Mas num artigo na ultima edição da revista Nature Methods um grupo canadiano de investigadores mostra que, se observamos bem, podemos ver dor expressa na cara do ratinho.

O professor Jeffrey Mogil e a sua equipa de investigação sujeitaram ratinhos de laboratório a uma série de testes que são usados na investigação em dor. Nestes é induzido dor de grau e duração variável através de injecções ou intervenções cirúrgicas. Os ratinhos foram filmados e dos filmes extraíram-se imagens onde apenas a cara – e não o corpo do ratinho – era visível. Mostrou-se uma mistura de imagens de ratinhos com e sem dor a um painel de pessoas que não sabiam a que tratamento os ratinhos tinham sido sujeitos e, partindo de escalas de classificação para expressões faciais humanas, o painel avaliou a expressão dos ratinhos.

A avaliação do painel correspondeu ao tratamento do ratinho em até 97% dos casos quando se usou uma câmara de alta definição. Parece ser sobretudo dor de duração média, entre 10 minutos até 12 horas, a que melhor se reflecte na expressão facial do ratinho. Esta expressão envolve um semicerrar dos olhos, uma extensão arredondada da pele visível na ponta do nariz e um empolar das bochechas. O ratinho ainda estira as orelhas e os bigodes para trás, de encontro à cara ou para a frente, como se suspensos na ponta. Faltam-nos bigodes e orelhas movíveis, mas no que diz respeito a olhos, nariz e bochechas partilharmos a expressão facial com o ratinho.


Expressão facial de dor no ratinho. A escala de 0 a 2 corresponde ao nível de dor.

Figure kindly provided by Jeffrey Mogil and not-for-profit reproduction licensed by Nature Publication group. Originally published in Nature Methods 7, 447-449, 2010.

O mesmo grupo de investigação já mostrou anteriormente que ratinhos reagem quando outros ratinhos são sujeitos a dor e faz ainda referência a resultados ainda não publicados que mostram que ratinhas se mantém próximas de um familiar com dor.

Estes resultados não são, evidentemente, prova de que um ratinho que expressa dor de maneira semelhante a um ser humano sinta a dor de maneira semelhante. Mas parece-me que fica cada vez mais difícil argumentar que os outros mamíferos não sentem dor de uma maneira com que precisemos de nos preocupar.

Ensinamos os investigadores a reconhecer que se a intervenção seria dolorosa num ser humano, deveremos assumir que o seja também noutro animal. No futuro pode ser que acrescentemos “se achar que dói, olhe o ratinho nos olhos”.