A notícia de que
a União Europeia iria multar Portugal e outros países europeus por não aplicarem a legislação europeia sobre a abolição das gaiolas convencionais para galinhas poedeiras foi amplamente noticiada no nosso país e tema de análise por parte de vários comentadores políticos, indignados por tão aviltante medida. Quem assistiu ao habitual espaço do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (MRS)
na TVI, no passado dia 29 de Janeiro, não terá deixado de reparar que os seus comentários finais foram dedicados a este tema. Vale a pena reproduzir aqui essas palavras na totalidade:
A Europa, que demora tanto tempo a resolver as vidas das pessoas, e que está neste momento a cortar direitos às pessoas, está preocupadíssima com o direito das galinhas. E as gaiolas têm que ter espaço para respirar, têm que ter novas condições, o que implica, entre outras coisas, um investimento tal numa boa indústria exportadora, como é a nossa de ovo, que pode ser fatal para essa indústria. Em homenagem aos direitos da galinha.” E continua: “e portanto, aos responsáveis europeus eu peço o seguinte: que olhem um bocadinho mais para os direitos humanos e depois, se possível, para os direitos das galinhas e não mais para os direitos das galinhas e menos para os direitos dos seres humanos.
Não fosse a projecção das palavras ditas por esta figura pública, e eu não usaria o meu tempo a desconstrui-las. Mas o tom levemente sobranceiro como o tema foi apresentado, assim como os erros argumentativos que ele encerra, não devem ficar sem resposta.
MRS começou por confessar que só recentemente tomou conhecimento do assunto. O que MRS não parece saber é que este processo tem mais do que algumas semanas. Ele tem, aliás, mais de 12 anos e remonta à Directiva 1999/74/CE, de 19 de Julho, que estabelece as normas mínimas relativas à protecção das galinhas poedeiras. Esta directiva já previa (no artigo 5, ponto 2) a futura abolição das baterias convencionais, concedendo um período de transição superior a 12 anos para o efeito. Mais tarde, em 2008, a Comissão Europeia publicou uma comunicação sobre os diversos sistemas de criação de galinhas poedeiras, confirmando a anterior decisão. O que quer dizer que a indústria do ovo teve, pelo menos, nove anos para se preparar face ao anúncio de novas normas e outros três para poder aplicá-las. Que nestes 12 anos nada tenha sido feito por alguns, dificilmente poderá ser imputado aos tecnocratas de Bruxelas, que vêm agora, usando de um zelo ao qual não parecemos estar (ainda) habituados, multar Portugal pela inércia da indústria nacional (não toda, atente-se) em adoptar as famigeradas medidas. O que me faz ver outro erro conceptual no raciocínio de MRS: se a indústria nacional a que se refere é de facto tão boa, porque é que não efectuou as medidas há muito anunciadas?
Que o limite para a implementação desta medida surja num período conturbado da economia nacional e europeia não é decerto culpa das galinhas. O argumento de que o investimento é enorme e pode significar a ruína da indústria do ovo é igualmente frágil já que o que está aqui em causa não é mudar o paradigma da produção industrial de ovos. A resolução que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2012 não visa abolir o sistema de produção de ovos em gaiolas e substituí-lo por métodos free-range. Pretende apenas eliminar as gaiolas convencionais, mais pequenas e desprovidas de enriquecimento ambiental, por gaiolas melhoradas com pelo menos 750 cm² de superfície da gaiola para cada galinha (menos do que a área desta revista), um ninho, uma cama e poleiros, que permitam às galinhas satisfazer as suas necessidades biológicas e comportamentais.
Segundo uma Proposta de Resolução Comum do Parlamento Europeu (14 de Dezembro de 2010) e assinada, entre outros, pelo eurodeputado e ex-Ministro da Agricultura português Capoulas Santos, estima-se que os custos de produção de ovos em gaiolas melhoradas sejam 8 a 13% superiores aos custos em gaiolas convencionais. Capoulas Santos, um defensor da conciliação do bem-estar animal com a competitividade das empresas, defende ainda que “não podemos permitir que as empresas que investiram e fizeram grandes esforços para estar em condições de cumprir esta Directiva na data de 1 de Janeiro de 2012 possam ser penalizadas ou sejam alvo de concorrência desleal”. Daqui se depreende que MRS está do lado dos que nada fizeram e que, à revelia da lei, vendem ovos a um preço mais competitivo do que aqueles que investiram num sector vital para o tecido agro-pecuário português.
Gostava ainda de abordar a referência um pouco exagerada aos direitos das galinhas. Quando aplicado a animais, o termo direitos é ambíguo e requer cuidado na sua utilização, mesmo por um Professor Catedrático da FDUL. E embora vise directamente a galinha, esta legislação baseia-se em bem mais do que direitos animais. Esta lei visa, por um lado, proteger o bem-estar da galinha sem colocar em risco a segurança alimentar e, por outro, ir ao encontro das exigências do consumidor europeu nesta matéria que, segundo o Eurobarómetro, considera o bem-estar das aves de capoeira como uma área de acção prioritária. O que quer dizer que esta lei tem tanto de defesa de direitos humanos como de direitos animais. Se estivéssemos a falar de direitos da galinha tout court, nem sequer existiriam galinhas poedeiras.
Mas se este é um sinal da ignorância de MRS sobre toda esta matéria, já o argumento final parece fazer supor que existe uma relação causa-efeito entre cortar direitos às pessoas e conceder “direitos” às galinhas e, quiçá, aos animais em geral. Nada mais falso; um animal que se sente bem é um animal que produz melhor e tanto seres humanos como animais têm a ganhar com a introdução de medidas de bem-estar guiadas pela ciência. Hoje foi a galinha poedeira e espero que um dia mais tarde seja a vez da vaca leiteira. A bem da clareza, aqui deixo a minha contribuição para a discussão deste tema. Em homenagem à galinha poedeira.