Ponha o Ovo na Consciência

Texto da autoria de Cláudia Valente, Inês Bergmann e Inês Órfão
Alunas da Pós-graduação em Bem-estar Animal, ISPA

Apesar da recente e noticiada alteração da lei, os consumidores portugueses parecem permanecer alheios às condições de produção de ovos em Portugal. Logicamente, e tendo em conta os tempos de crise que se vivem, o preço parece ser o principal factor na escolha dos ovos comprados, havendo uma preferência por aqueles provenientes de produção intensiva (ovos biológicos podem custar 3 vezes mais).

No entanto, as galinhas poedeiras criadas em regime intensivo habitam em gaiolas de uma dimensão reduzida e em que cada indivíduo ocupa uma área igual a uma folha A4. Deste modo, as aves estão impedidas de realizar comportamentos naturais básicos como procurar comida, fazer ninho ou cama, e estabelecer uma hierarquia essencial na estabilidade do grupo. Em oposição, comportamentos anormais como arrancar penas são frequentes e por vezes “prevenidos” com acções que provocam dor, como o corte do bico. Problemas de saúde como osteoporose são também frequentes. É também de referir que já existem diversos estudos que comprovam que modo como as galinhas são poedeiras são criadas tem uma influência real na qualidade dos seus ovos, e para muitos consumidores este factor pode mesmo ser o decisivo.

Um destes estudos, realizado pelo Eurogrupo (1998) verificou que noutros países europeus, os consumidores estavam dispostos a pagar mais por ovos de galinhas que não fossem criadas em gaiolas, mas que o desconhecimento acerca de como podiam fazer essa escolha, nomeadamente através da leitura dos códigos presentes nos ovos, dificultava essa decisão.


Por estas razões, a nossa visão é que cabe ao consumidor comunicar ao produtor, através das suas compras, o tipo de produto que quer (preço, qualidade e condições de produção), e é nesse sentido que surge então a necessidade de criar uma campanha com um título que desperte a curiosidade, como “Ponha o Ovo na Consciência ”, que informe os consumidores sobre as diversas condições de produção existentes, vantagens e desvantagens das mesmas para as galinhas, consequências no produto final, significado de códigos presentes nos ovos e que dê a conhecer mais sobre o comportamento natural destes animais.

Esta iniciativa teria interesse não só para os consumidores, que passariam a saber mais sobre o produto antes de o escolherem, para os produtores, uma vez que as exigências europeias no que toca ao bem-estar dos animais de produção serão cada vez maiores e para as galinhas, que necessitam urgentemente de alterações nas condições em que habitam, mas também para a sociedade portuguesa em geral, uma vez que o modo como os animais são tratados e a importância que lhes é dada reflete o pensamento ético de uma nação.

Pecuária Tradicional: o valor dos nossos recursos naturais

No ANIMALOGOS temos vindo a defender formas de produção pecuária mais holísticas e menos intensivas e já aqui abordámos algumas das principais questões éticas relacionadas com o consumo de carne. Em A Ética de um Bom Bife, a Anna Olsson apelou a uma diminuição do consumo em bases ambientais e nutricionais, ao passo que Peter Sandoe em Meat is Murder contextualiza o acto de matar um animal para o comer. No que me diz respeito, vou procurar defender o valor das raças autóctones no contexto de uma pecuária tradicional.
Várias notícias que têm vindo a público fizeram-me pensar sobre este assunto. O Jornal Público de hoje (de onde vem a excelente fotografia de Rui Gaudêncio) noticia que “um rebanho de cabras vai ser utilizado para reduzir os riscos de incêndios florestais no planalto de Jales, em Trás-os-Montes” (pode encontrar a notícia aqui). É uma estratégia de adição de baixos valores na procura de um valor maior: os terrenos têm reduzido valor agrícola e florestal, estão abandonados (e com elevada biomassa) e as cabras são animais com baixo valor nominal. No entanto, as cabras são também animais altamente adaptados ao clima, terreno e vegetação da região, permitindo maximizar recursos que de outra forma se perderiam.

Este exemplo vem reforçar a minha visão de que os animais domésticos que nos acompanham há centenas ou mesmo milhares de anos fazem, de facto, parte daquilo a que chamamos natureza. Eles não devem ser vistos como um produto da acção humana que interfere no ambiente, destabilizando-o, mas sim como parte integrante do meio ambiente. Voltando às cabras, elas não só podem contribuir para a prevenção de fogos, como contribuirão para o próprio ecossistema: seleccionando as plantas que ingerem, fertilizando os solos, e fazendo parte da cadeia trófica do lobo ibérico. De um ponto de vista ecocêntrico, as espécies estão interligadas, independentemente de serem domésticas ou selvagens.

Por isso é que a investigação em recursos genéticos e biológicos é tão importante. A criação do Banco Português de Germoplasma Animal em 2010, vem permitir o estudo e preservação do património genético das raças autóctones, conferindo às gerações futuras a capacidade de melhor se adaptarem às alterações no seu ambiente (muitas das quais provocadas por nós). Na esteira de Hans Jonas, é nossa responsabilidade defender a pecuária tradicional como parte da “dignidade própria da natureza”. Os desafios são, porém, imensos. Caso paradigmático é o Porco Alentejano (porco preto), raça autóctone criada em regime extensivo e alimentada a bolotas durante a maior parte da sua vida. O Porco preto poderá estar em risco de extinção porque sofre a concorrência de produtos não diferenciados e porque depende do ecossistema do montado que, apesar do seu elevado valor ecológico (ver documentário da BBC), está também em declínio.

Mas o apelo às raças autóctones não se aplica por igual a todas as formas de produção pecuária devido ao  conflito entre valores biológicos-ecológicos e económicos. É o caso do leite onde o factor quantidade suplanta qualquer apelo à sustentabilidade. Mas mesmo num cenário “monomarca” em que a variabilidade genética é muito reduzida (praticamente todos os animais são de raça Frísia-Holstein) é possível diferenciar produtos e caminhar no sentido de uma maior sustentabilidade. Um estudo científico (a confirmar) realizado pelo Instituto Nacional de Recursos Biológicos traz algumas evidências de que a carne de bovinos açorianos (mesmo sendo de vacas leiteiras refugadas) tem características benéficas para a saúde de consumidores. De facto, o leite açoriano é produzido num regime semi-intensivo, em que as vacas têm acesso a pasto. Isto resulta, associado a um bom maneio, num maior potencial de bem-estar animal, numa menor dependência de alimentação comercial e em produtos mais saudáveis.

II Congresso PSIAnimal

O programa final para o segundo congresso PSIAnimal, a decorrer em Lisboa em Setembro, está agora disponível. Com duas partes temáticas, o congresso conta com participação de investigadores portugueses e internacionais. 
No tema Animais de Companhia – Cão e Gato, 22 e 23 de Setembro, as palestrantes convidadas internacionais são as médicas veterinárias especialistas em medicina de comportamento de animais de companhia Sarah Heath e Tiny de Keuster
No tema Animais de Produção e Equinos, 29 e 30 de Setembro, os palestrantes convidados internacionais são os investigadores Patrick Pageat, presidente do European College of Veterinary Behavioural Medicine – Companion Animals e Isabelle Veissier, membro da comissão organizadora do projeto Welfare-Quality e do WelfareQuality Network.

Matthias Kaiser, afinal é melhor cultivar peixe do que pescar?

Anna Olsson: Olá Matthias Kaiser. Num artigo recentemente apresentado na última reunião da European Society for Food and Agricultural Ethics, o Matthias argumenta que os consumidores alemães deviam ser menos presunçosos em relação aos peixes que consomem e aceitar que a aquacultura sustentável é uma boa maneira de produzir peixe. Poderia descrever o seu raciocínio aos leitores do animalogos ?

Matthias Kaiser: Obrigado por me darem esta oportunidade. Eu procurei abordar a típica atitude do género: “Ei, mesmo quando a aquacultura é bem feita, eu vou sempre para o peixe selvagem, que, de qualquer forma, é melhor e mais sustentável – não se pode vencer a natureza, pois não?” Eu acredito que isto é errado por várias razões, entre as quais razões éticas. Uma razão é que estamos seriamente a sobrepescar os stocks naturais nos oceanos, o que também resulta em preços mais elevados para o peixe selvagem capturado. Os padrões de consumo baseados em produtos da pesca só podem ser mantidos pelas partes ricas do mundo, excluindo a maioria das outras pessoas. Isto resulta no privilégio dos ricos em explorar os comuns em detrimento dos pobres. Além disso, e considerando mais uma vez as partes mais pobres do mundo, deve-se olhar para a questão das mudanças climáticas. Embora tenhamos sido nós, os mais ricos, a provocar o problema, são os países mais pobres quem já está a sofrer os seus efeitos. Uma boa forma de ajudar esses países a superar os piores problemas das alterações climáticas é envolvermo-nos em trocas comerciais de produtos de aquacultura, o que também contribui positivamente para o seu desenvolvimento social e económico. Assim, comprar peixe proveniente desses países seria uma – ainda que pequena – forma de assumirmos alguma responsabilidade pelos problemas que causamos.


AO: O debate na Alemanha tem sido, talvez, mais focado nos aspectos ambientais, mas o cepticismo em relação à aquacultura é bem conhecido também em Portugal, onde nenhum restaurante iria falar com orgulho de seus peixes provenientes de aquacultura e onde escritores gastronómicos falam pejorativamente em “peixe enjaulado”. ou “de aviário” Tem alguma mensagem para eles?

MK: Essa expressão traz-nos imediatamente à memória “porcos enjaulados” ou “galinhas enjauladas” e mostra que os consumidores actuais começaram a preocupar-se com o bem-estar animal, e não apenas com o preço ou a qualidade do produto.  (Nota da animalogante: Penso que é mais na qualidade do produto do que na qualidade da vida do  animal que se pensa quando se fala do “peixe do aviário”). Vejo-o, de um ponto de vista ético, como um bom desenvolvimento. O problema, no entanto, está em agruparmos coisas que deviam ser avaliadas de forma separada. Em primeiro lugar, até mesmo os piores casos de “galinhas enjauladas” podem não ser um argumento suficiente derrubar todos os tipos de produção em grande escala. Na verdade, é justamente por estarmos dependentes da produção animal em larga escala que precisamos de melhorar o bem-estar animal desses animais. Em segundo lugar, em aquacultura isso depende em grande medida da espécie e do tipo de sistema utilizado. Na Noruega, os produtores de salmão aprenderam da pior maneira que uma densidade muito grande nas gaiolas afecta seriamente a qualidade do produto e aumenta a probabilidade de surtos epidémicos. Eles também aprenderam que o animal precisa de um ambiente onde o comportamento natural de natação não é restringido. Infelizmente, apenas nos últimos anos emergiu uma investigação que visa uma compreensão mais holística do bem-estar em peixes, e que só lentamente vai influenciando a indústria. Além disso, a densidade de peixe não é sempre um problema, tudo depende das espécies de peixes e do ambiente: os peixes-gato preferem estar muito próximos uns dos outros em águas lodosas, já que nas águas cristalinas eles se sentem ameaçados. Onde eu quero chegar é que é possível manter o bem-estar em aquacultura, o que muitas vezes já é feito. Há pontos de equilíbrio entre, por um lado, bem-estar animal e produção em grande escala, por outro.

Assim, a minha mensagem para os consumidores portugueses seria: “Comece fazendo perguntas mais exigentes em restaurantes ou supermercados, como por exemplo: de onde é que vem este peixe? A sua produção e comercialização são certificadas de alguma forma, em particular no que diz respeito a sustentabilidade ambiental, bem-estar animal e ética comercial? “


AO: Sendo eu própria agronoma, sou um pouco céptica em relação à aquacultura por um motivo muito diferente. Todos os animais terrestres que cultivamos para obtenção de carne alimentam-se essencialmente de plantas, mas os peixes de cultivo são geralmente de espécies carnívoras (as excepções, como a carpa, não são geralmente aceites na Europa como espécies alimentares). Sabemos, a partir das discussões sobre sustentabilidade, que a produção de proteína animal para consumo humano é muito mais ineficiente do que se os humanos comessem directamente a proteína vegetal. Agora, obter proteína animal consumindo peixes que por sua vez se alimentam de proteína de peixe, isso não aumenta o problema exponencialmente?

MK: Agora colocou o dedo na questão mais importante: estaremos simplesmente a usar peixe barato para produzir peixe caro? Por outras palavras, podemos justificar eticamente a alimentação de peixes com proteínas derivadas de outros peixes? [Para tornar a questão ainda mais complicada, devemos acrescentar que também os animais terrestres são, em grande medida, alimentados com ração contendo proteína de peixe, ou seja, uma quantidade significativa da produção industrial de farinha de peixe e de óleo de peixe vai para a agricultura industrial (porco, aves, ruminantes, etc.)]. Concordo plenamente consigo que o uso de proteínas de peixe na alimentação animal deve ser reduzida, ao invés de aumentar. Eu não concordo que a questão esteja na eficiência de conversão energética. Mas, mais uma vez, o diabo está nos detalhes:
Na aquacultura, a “pior” espécie é o salmão (atum e alguns outros, também), ou seja, em princípio, quaisquer espécies carnívoras no topo da cadeia alimentar. O problema é que estas espécies têm o valor de mercado mais elevado e são, portanto, muito procuradas. Nós, os países ricos, somos os principais produtores de salmão, principalmente a Noruega e a Escócia (na Europa). Os produtores de salmão também já perceberam que a proteína de peixe é um ingrediente problemático na alimentação dos peixes, por causa do aumento dos preços. Por isso estão a reduzir a quantidade de proteína de peixe na alimentação (substituindo-a, por exemplo, por soja) e têm tido algum sucesso a fazê-lo. Eles também mencionam o facto do salmão ser um conversor de energia muito eficiente, muito mais eficiente do que qualquer outro animal de produção.
Mas eu sou mais optimista em relação a todas as outras espécies que importamos, em especial da Ásia. O peixe-gato (Pangasius) é uma espécie omnívora, assim como o tilápia. Os camarões também comem todo o tipo de coisas, e são, portanto, muito menos dependentes de suplementos de proteína de peixe. A ração de camarões é feita, em grande medida, de subprodutos da pesca, inaproveitável para consumo humano. Em muitos lugares a aquacultura está integrada com a produção agrícola (por exemplo, peixes com aves, usando os excrementos de aves para alimentar os peixes). Embora seja verdade que a carpa não é muito popular na Europa e os EUA (embora seja muito popular na China), ainda temos a opção de incluir espécies na nossa dieta que são menos exigentes em termos de proteína de peixe (N.T. é o caso da truta).

Em suma, o meu argumento é o seguinte. A não ser que nos tornemos todos vegetarianos (que é uma opção ética, mas não necessariamente abraçada por todos nós), se quisermos ter um estilo de vida saudável, com redução dos efeitos climáticos deletérios, devemos: (i) comer mais produtos aquáticos (e muito menos carne), (ii) escolher os produtos aquáticos, provenientes de aquacultura sustentável e certificada, e (iii) privilegiar o consumo de espécies omnívoras, que exigem menos proteína de peixe na sua alimentação. O que precisamos é de um consumidor consciente que faz perguntas mais exigentes e específicas, e uma indústria que responde à necessidade de corrigir as formas insustentáveis de produção.

Traduzido do inglês por Manuel Sant’Ana (segundo a antiga ortografia).


Brincar com porcos

A nossa preocupação moral para com os animais muda com o crescente desenvolvimento de tecnologia na pecuária? Esta é a questão que o filosofo neerlandês Clemens Driessen aborda no seu projeto de doutoramento a ser concluido este ano. E não só pensa, brinca mesmo com este ideia, como nesta colaboração desenvolvida junto com estudantes de arte e investigadores de bem-estar animal:
Os alunos desenvolvem o seu ponto de vista num blog. O ponto do vista do porco ainda está por explorar. Citamos Marc Bracke, o cientista de bem-estar animal envolvido no projeto:

Humans and pigs have a reputation for being intelligent. Despite this, however, neither humans nor pigs seem to be able exert their cognitive abilities in the best possible ways in their modern environments. Farmed pigs in the European Union are required to have access to ‘enrichment materials’, in order to allow them to perform their (natural) behaviour, to reduce boredom and tail biting, and, hence, to reduce the need for tail docking. This legal requirement has led farmers to provide materials such as a plastic ball or a metal chain with some plastic piping. However, these ‘toys’ for the most part neither resolve societal concerns nor do they appeal to the cognitive abilities of the pigs. To allow for a more interesting development of (human and animal) behaviour, and to learn more about some of the processes involved, a team of designers and researchers joined together to design a game challenging the cognitive abilities of both pigs and humans.

A nossa co-evolução com a vaca

Há poucas coisas mais estimulantes para mim como cientista do que ver bons trabalhos científicos. Por isso, no contexto do debate a decorrer aqui sobre o caráter essencial (ou não) do leite, agarro logo a oportunidade de trazer um dos meus trabalhos preferidos para o blog. Albano Beja-Pereira é agora investigador do CIBIO da Universidade do Porto, e um dos seus estudos da tese do doutoramento aborda a co-evolução das populações bovina e humana da Europa.

Beja-Pereira A et al (2003) Gene-culture coevolution between cattle milk protein genes and human lactase genes. Nature Genetics 35, 311-313

Quem quiser ler o trabalho na íntegra pode descarregar o artigo clicando sobre a referência acima. Muitíssimo resumido, o artigo mostra que a distribuição geográfica de genes importantes para produção de leite no gado bovino (mapa b) coincide completamente com a distribuição geográfica de gene que confere persistência da lactase (enzima que permite digestão do lactose) na idade adulta nos seres humanos (mapa c).

Isso não nos diz que o leite é um alimento essencial para seres humanos na Europa de hoje. Mas sugere fortemente que assim tem sido, durante a nossa evolução e adaptação genética às condições locais.

De onde vem o seu leite ?

A ONG Compassion in World Farming tem a decorrer no seu website um pequeno teste para saber a opinião do público sobre o caminho a seguir pela indústria do leite na Europa. O resultado deste exercício serve para fazer pressão (lobbing) sobre os centros de poder da UE, alertando para alguns dos problemas da bovinicultura intensiva. Embora eu saiba que a questão não é tão branca e preta como a CiWF quer fazer parecer, aceitei o desafio e votei. Depois de avanços paulatinos na política europeia de bem-estar animal, como foi o recente caso das galinhas poedeiras, acredito ser esta uma área prioritária de regulação e onde mais está por fazer. Copiando as palavras de John Webster:

“A vaca leiteira de elevado rendimento, é de longe o animal de produção sujeito ao stress produtivo mais elevado. E possível seleccionar galinhas poedeiras capazes de pôr um ovo por dia durante 320 dias, mas é só um ovo por dia. Com a vaca leiteira é possível seleccioná-la indefinidamente para produzir cada vez mais leite. A vaca leiteira trabalha 4 x mais do que a galinha poedeira, que é provavelmente o segundo animal que mais trabalha. Se nós, humanos, fossemos forçados a trabalhar tanto como uma vaca leiteira, teriamos de correr 6 horas por dia, todos os dias. É realmente demasiado trabalho e não é surpreendente que elas sucumbam.”

O leite é considerado por muitos como um bem essencial, especialmente importante para crianças e idosos, mas o preço que pagamos por ele (o leite nacional pode ser encontrado a 49 cêntimos o litro) não reflecte o seu real custo de produção, nem obedece a uma política de sustentabilidade (social, ambiental ou económica). Face aos desafios apresentados, de onde gostaria que o seu leite proviesse?

É o bem-estar da galinha poedeira compatível com a avicultura industrial ?

A notícia de que a União Europeia iria multar Portugal e outros países europeus por não aplicarem a legislação europeia sobre a abolição das gaiolas convencionais para galinhas poedeiras foi amplamente noticiada no nosso país e tema de análise por parte de vários comentadores políticos, indignados por tão aviltante medida. Quem assistiu ao habitual espaço do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) na TVI, no passado dia 29 de Janeiro, não terá deixado de reparar que os seus comentários finais foram dedicados a este tema. Vale a pena reproduzir aqui essas palavras na totalidade:

A Europa, que demora tanto tempo a resolver as vidas das pessoas, e que está neste momento a cortar direitos às pessoas, está preocupadíssima com o direito das galinhas. E as gaiolas têm que ter espaço para respirar, têm que ter novas condições, o que implica, entre outras coisas, um investimento tal numa boa indústria exportadora, como é a nossa de ovo, que pode ser fatal para essa indústria. Em homenagem aos direitos da galinha.” E continua: “e portanto, aos responsáveis europeus eu peço o seguinte: que olhem um bocadinho mais para os direitos humanos e depois, se possível, para os direitos das galinhas e não mais para os direitos das galinhas e menos para os direitos dos seres humanos.

Não fosse a projecção das palavras ditas por esta figura pública, e eu não usaria o meu tempo a desconstrui-las. Mas o tom levemente sobranceiro como o tema foi apresentado, assim como os erros argumentativos que ele encerra, não devem ficar sem resposta.

MRS começou por confessar que só recentemente tomou conhecimento do assunto. O que MRS não parece saber é que este processo tem mais do que algumas semanas. Ele tem, aliás, mais de 12 anos e remonta à Directiva 1999/74/CE, de 19 de Julho, que estabelece as normas mínimas relativas à protecção das galinhas poedeiras. Esta directiva já previa (no artigo 5, ponto 2) a futura abolição das baterias convencionais, concedendo um período de transição superior a 12 anos para o efeito. Mais tarde, em 2008, a Comissão Europeia publicou uma comunicação sobre os diversos sistemas de criação de galinhas poedeiras, confirmando a anterior decisão. O que quer dizer que a indústria do ovo teve, pelo menos, nove anos para se preparar face ao anúncio de novas normas e outros três para poder aplicá-las. Que nestes 12 anos nada tenha sido feito por alguns, dificilmente poderá ser imputado aos tecnocratas de Bruxelas, que vêm agora, usando de um zelo ao qual não parecemos estar (ainda) habituados, multar Portugal pela inércia da indústria nacional (não toda, atente-se) em adoptar as famigeradas medidas. O que me faz ver outro erro conceptual no raciocínio de MRS: se a indústria nacional a que se refere é de facto tão boa, porque é que não efectuou as medidas há muito anunciadas?

Que o limite para a implementação desta medida surja num período conturbado da economia nacional e europeia não é decerto culpa das galinhas. O argumento de que o investimento é enorme e pode significar a ruína da indústria do ovo é igualmente frágil já que o que está aqui em causa não é mudar o paradigma da produção industrial de ovos. A resolução que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2012 não visa abolir o sistema de produção de ovos em gaiolas e substituí-lo por métodos free-range. Pretende apenas eliminar as gaiolas convencionais, mais pequenas e desprovidas de enriquecimento ambiental, por gaiolas melhoradas com pelo menos 750 cm² de superfície da gaiola para cada galinha (menos do que a área desta revista), um ninho, uma cama e poleiros, que permitam às galinhas satisfazer as suas necessidades biológicas e comportamentais.

Segundo uma Proposta de Resolução Comum do Parlamento Europeu (14 de Dezembro de 2010) e assinada, entre outros, pelo eurodeputado e ex-Ministro da Agricultura português Capoulas Santos, estima-se que os custos de produção de ovos em gaiolas melhoradas sejam 8 a 13% superiores aos custos em gaiolas convencionais. Capoulas Santos, um defensor da conciliação do bem-estar animal com a competitividade das empresas, defende ainda que “não podemos permitir que as empresas que investiram e fizeram grandes esforços para estar em condições de cumprir esta Directiva na data de 1 de Janeiro de 2012 possam ser penalizadas ou sejam alvo de concorrência desleal”. Daqui se depreende que MRS está do lado dos que nada fizeram e que, à revelia da lei, vendem ovos a um preço mais competitivo do que aqueles que investiram num sector vital para o tecido agro-pecuário português.

Gostava ainda de abordar a referência um pouco exagerada aos direitos das galinhas. Quando aplicado a animais, o termo direitos é ambíguo e requer cuidado na sua utilização, mesmo por um Professor Catedrático da FDUL. E embora vise directamente a galinha, esta legislação baseia-se em bem mais do que direitos animais. Esta lei visa, por um lado, proteger o bem-estar da galinha sem colocar em risco a segurança alimentar e, por outro, ir ao encontro das exigências do consumidor europeu nesta matéria que, segundo o Eurobarómetro, considera o bem-estar das aves de capoeira como uma área de acção prioritária. O que quer dizer que esta lei tem tanto de defesa de direitos humanos como de direitos animais. Se estivéssemos a falar de direitos da galinha tout court, nem sequer existiriam galinhas poedeiras.

Mas se este é um sinal da ignorância de MRS sobre toda esta matéria, já o argumento final parece fazer supor que existe uma relação causa-efeito entre cortar direitos às pessoas e conceder “direitos” às galinhas e, quiçá, aos animais em geral. Nada mais falso; um animal que se sente bem é um animal que produz melhor e tanto seres humanos como animais têm a ganhar com a introdução de medidas de bem-estar guiadas pela ciência. Hoje foi a galinha poedeira e espero que um dia mais tarde seja a vez da vaca leiteira. A bem da clareza, aqui deixo a minha contribuição para a discussão deste tema. Em homenagem à galinha poedeira.

Este texto foi publicado originalmente como:

M. Magalhães-Sant’Ana (2012) “O bem-estar da galinha poedeira não representa a ruína da indústria do ovo – uma resposta a Marcelo Rebelo de Sousa”. Veterinária Atual – Revista Profissional de Medicina Veterinária, 48: 42.