Foie-Gras – adaptação ou violação ?

A revista The Economist da semana passada trazia uma crónica sobre “um dos mais controversos pratos do planeta”, o foie-gras, dando conta de um recente estudo científico que pode ter implicações na forma como olhamos para esta iguaria. Para quem não é forte no francês, ou apenas para aqueles que nunca se deram ao trabalho de traduzir a palavra, foie-gras significa figado gordo e não é sinónimo de pâté.

Para produzir foie-gras, é necessário forçar a alimentação de patos e gansos, de forma a provocar uma alteração hepática caracterizada por acumulação de matéria gorda com aumento de tamanho (hepatomegália – ver figura), e que pode levar à diminuição de função (insuficiência hepática) e mesmo à falência total.

Três quartos do foie-gras a nível mundial são produzidos em França. Aliás, os franceses têm uma palavra para descrever o processo de alimentação forçada, gavage, que eu penso não ter correspondência directa noutras línguas.

O artigo científico, da autoria de investigadores da Universidade de Toulouse, vem dizer que o foie gras só é bom se for proveniente de figados “saudáveis”, isto é, plenamente funcionais. Embora o artigo vise apenas as características organolépticas do produto final, podemos tecer considerações mais abrangentes sobre o bem-estar animal. A primeira implicação desta conclusão é a possibilidade de obter foie-gras de animais clinicamente saudáveis, o que me parece fazer sentido, já que o figado gordo é uma característica adaptativa de aves de espécies migratórias de forma a suportarem longas jornadas de jejum. A segunda, que deriva da primeira, é que esta conclusão abre uma janela de oportunidade para se estabelecerem guidelines que caracterizem o que é um figado gordo saudável, com óbvios benefícios para os animais.

Lembro-me do Professor Ian Duncan, um dos pioneiros da ciência do bem-estar animal, me ter dito uma vez que tinha sentimentos ambíguos em relação ao foie-gras, já que, da sua experiência, não via qualquer sinal de stress nos animais ao serem alimentados dessa forma e que os próprios procuravam o alimentador, ao invés de fugirem dele. Mas isso não impede que a indústria do foie-gras seja alvo de grande contestação por movimentos activistas como a Stop Gavage, a Stop Force Feeding e a No Foie Gras.

Caros animalogantes, termino com a pergunta deixada no artigo do The Economist: “Ambos os lados do debate estão certos. A produção de foie-gras pode ser uma forma de abuso, mas não é necessariamente assim, pois um aumento do fígado pode ainda ser saudável. A questão é, onde estabelecer a fronteira (do aceitável)?”

ACTUALIZAÇÃO: O Jornal Público informa que na Califórnia entrou em vigor uma lei que proíbe a produção e venda de foie gras (01-07-2012).

Ética animal na Nature e Nature Neuroscience

Quais revistas temos em maior consideração depende obviamente de quem somos e onde estamos. Para os cientistas, Nature e Science são as revistas com maior impacto e maior audiência – o que sai nestas revistas tem um peso particular. Do ponto de vista animalogista é interessante notar que esta semana os editoriais de tanto a Nature como e sua sobrinha mais nova Nature Neuroscience abordam questões de ética animal.
Sob o título Time for a dialogue, a editorial de Nature Neuroscience levanta a questão da investigação com animais contendo material humano, motivada pelo lançamento de um relatório da Academia de Ciências Médicas do Reino Unido. A discussão de animais que contenham material humano, muitas vezes referidos como quimeras, ultrapassa claramente a controvérsia mais tradicional sobre experimentação animal. Aqui o que causa preocupação não é tanto aquilo a que se sujeitam os animais mas sim o risco de esbater a fronteira entre humanos e animais. (O meu “eu” biólogo sente arrepios ao escrever a frase anterior: os seres humanos são animais, não há diferença biológica entre criar uma quimera humana-coelho e criar uma quimeras porcocoelho. Mas, obviamente, para muitas pessoas ainda não decidi se me devo incluir há uma considerável diferença ética).
O editorial, como tal, não se debruça tanto sobre a controvérsia ética como sobre a necessidade de diálogo público sobre o assunto. Claramente, a confiança do público é assunto central no momento, quando os cientistas discutem a ética da experimentação animal – e isso é evidente também no editorial da Nature com o intencionalmente ambíguo título Breeding contempt. A questão é de saber se o National Institute of Health (NIH) nos EUA realmente respeita a moratória sobre a criação de chimpanzé introduzida em 1995. Existem apenas dois países no mundo (Gabão é o outro), onde chimpanzés são usados ​​em experimentação biomédica, mas também nos EUA esta é uma questão altamente controversa. Não só do ponto de vista ético, mas ainda do ponto de vista financeiro, porque ao contrário de um ratinho ou um porquinho-da-índia, um chimpanzé estado-unidense não pode ser sacrificado no final da experiência, tem o direito à reforma. O que significa que os fundos para a investigação têm de suportar o custo de vida útil de um chimpanzé, no valor de pelo menos $ 300.000. Tais custos são, provavelmente, o incentivo mais eficaz para a redução do uso de animais. E a razão para a moratória que visava a reprodução era de facto financeira, mas o que está em jogo agora é se a mesma foi realmente respeitada. O editorial desafia o NIH para ser transparente e seguir suas próprias directrizes:
The US public, which supports biomedical research in good faith and is increasingly concerned about the welfare of research ani­mals in general, and chimps in particular, deserves better. The NIH should fully explain how it enforces the breeding moratorium at the NIRC. It should say how it is possible that 137 births in a decade were somehow permitted. And it should address publicly how one of its institutes can in good conscience pay for and use a steady supply of infant chimps born in apparent breach of the moratorium.

Primate Research Institute, Japão (Foto: T. Matsuzawa)

Pensando bem, a questão dos chimpanzés na investigação tem também a ver com as fronteiras entre as espécies, embora num sentido diferente do apresentado pelas quimeras humano-animais. A segunda metade do século XX viu uma série de esforços para definir Homo sapiens sapiens como uma espécie cujos membros têm dignidade e direito a serem tratados com respeito pela sua autonomia e o direito de não ser instrumentalizados ou usados para algo que não é no seu próprio interesse. Dos três aspectos que distinguem os chimpanzés dos outros animais usados ​​em investigação*, o facto de eles serem tão parecidos connosco é provavelmente o principal motor por detrás da preocupação humana sobre a forma como são tratados. Vozes mais radicais, como o Great Ape Project advoga que os chimpanzés (e gorilas e bonobos) devem ter uma protecção legal semelhante à oferecida a um ser humano. Poucos estão dispostos a ir tão longe (ainda?). Mas, ao proibir experiências invasivas nestes animais, muitos países estão de facto a declarar que os chimpanzés são seres que não instrumentalizamos e que não usamos contra seu próprio interesse.

* vulnerável estado das populações selvagens, sistema nervoso complexo e habilidades cognitivas altamente desenvolvidas, assim como sua estreita relação genética com os seres humanos

Ação da PETA em Macau contra tráfico de animais exóticos

Hoje, a PETA (People for the Ethical Treatment of Animals, associação estadounidense com expansão internacional) manifesta-se no centro histórico de Macau para alertar turistas sobre a pegada ecológica e ética de produtos de pele de cobra e de outros animais.

Ver a notícia no Macau Daily Times e SIC Notícias.

O Elo Homem-Animal e a Lâmina de Ockham

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Não é uma história inédita – faz lembrar o famoso caso de Hachiko – mas esta passa-se em Portugal nos dias de hoje: um cão que acompanhou a dona na sua última viagem ao Centro de Saúde e que não arreda pé desde então. Com uma música delicodoce a acompanhar, como convém neste tipo de histórias a puxar ao sentimento, a reportagem visa mostrar como o elo homem-animal (Human-Animal Bond) pode ser tão forte que ultrapassa as fronteiras da própria vida.

Gostava, porém, de desafiar esta explicação, empírica e complexa, e aplicar a Lâmina de Ockham (Occam’s Razor) para propor uma outra explicação mais simples para este tipo de comportamento. Sabemos que o cão tinha o hábito de fazer este percurso e tudo indica que se estabeleceram padrões comportamentais que permitiram ao animal fixar o que fazer a seguir. Entre estes comportamentos adquiridos estaria o regresso a casa, assim que a dona saísse do Centro de Saúde. Não será que, ao invés de “sentir a falta” da dona e por isso se recusar a abandonar o local, o animal está simplesmente bloqueado pela ausência do estímulo que lhe indica que chegou o momento de voltar para casa? Isto é, quem nos garante que a permanência no local é um acto consciente e não apenas uma resposta inconsciente à ausência de um estímulo?

P.S. Podem ficar os animalogantes descansados já que o cão foi adoptado por alguém que viu a reportagem.

PhD Course Animal Ethics

Estonian University of Life Sciences em colaboração com docentes de Suécia e Dinamarca organiza um curso em ética animal para alunos de doutoramento 9-13 de janeiro de 2012 em Tartu, Estonia. Amplie a imagem abaixo para uma introdução ao curso.

O curso é livre e existem bolsas para viagens e alojamento. Alunos interessados devem enviar uma carta de motivação (200 palavras) para Dr David Arney david.arney@emu.ee até dia 1 de Dezembro.

O talhante orgulhoso

CADE (Part 2): The Good Slaughter: A Proud Meat Cutter Shares His Processing Floor from SkeeterNYC on Vimeo.

Um testemunho em formato de documentário sobre um talhante de Nova Iorque, orgulhoso do seu trabalho e da forma como o faz. Numa época em que a internet serve de plataforma previlegiada para denunciar e atacar, em especial no que diz respeito à forma como os animais são tratados, é revigorante ver um documento que não procura nada disso, retratando sem artifícios o trabalho de um homem, ao mesmo tempo que lhe permite contextualizar a sua prática. A transparência, rigor e simplicidade com que este talhante fala do seu metier só tem paralelo na forma virtuosa como executa as suas funções.

Concurso Bem-Estar Animal em Portugal 2011

Queres mostrar o que sabes sobre bem-estar animal e ter a oportunidade de aprender mais?

És estudante do 1º ou 2º ciclo da Universidade do Porto? Então esta proposta é para ti!

O(s) melhor(es) texto(s) no tema Bem-Estar Animal em Portugal 2011 será(ão) premiado(s) com a participação paga no 1º Congresso da Associação Portuguesa de Terapia Comportamental e Bem-Estar Animal.

Clique aqui para descarregar o cartaz com o regulamento. Contributos terão que ser enviados até dia 20 de Novembro.

Bem-estar animal na China

Os dois posts mais vistos do Animalogos abordam bem-estar e protecção animal na China. Mais sobre este tema num recente artigo, Policy and practice: The ongoing struggle to enforce animal welfare regulation and implement animal welfare law in China, escrito do ponto de vista de experimentação animal mas com relevância mais generalizada.

A fundação da Sociedade da Declaração de Basileia (Parte III)

Embaixada Suiça em Berlim

Ver Parte I e Parte II desta notícia.

O evento principal desta conferência foi a formação de grupos de trabalho para abordar questões específicas, de modo a redigir textos que servissem de referência a cientistas que pretendam adoptar os princípios da declaração de Basileia. Cada uma destas declarações foi levada a apreciação e votação em plenário, incluindo aquela em que participei (“Avaliação de Severidade”). Esta apreciação em plenário  levou à revisão de cada declaração de modo a torná-las mais claras, concisas, relevantes e de aplicação mais fácil e mais universal (a Declaração é de carácter global, não se restringindo ao espaço europeu).   Na manhã seguinte, cada um deles foi apresentado aos media em conferência de imprensa na Embaixada Suiça (onde, aliás, tinha decorrido o jantar da noite anterior, no qual fomos recebidos pelo embaixador). As declarações disseram respeito aos seguintes tópicos:

Transparência e Publicação –  Como parte integrante da sociedade, têm os cientistas a responsabilidade de divulgar os avanços científicos ao público, sendo o diálogo aberto entre as duas partes a base para a confiança na ciência. Todos os resultados (positivos, negativos e inconclusivos) obtidos de acordo com as boas práticas científicas são importantes e a sua publicação permite evitar duplicação não-intencional de experiências. Uma vez que cientistas publicam em revistas especializadas e em jargão técnico, devem comunicar também de modo acessível ao público, devendo esta ser uma política explícita em institutos de investigação e universidades. 

Os 3Rs – É ressalvada a importância dos 3Rs que são, aliás, parte integral da investigação feita em  ciências da vida. Este texto urge os cientistas a comprometerem-se no avanço do conhecimento, divulgação e implementação dos 3Rs, apresentando algumas medidas para a consecução desse objectivo. 

É cientificamente justificável classificar 
a priori a modificação genética como 

“severa”, se não resulta em mal-estar?

Classificação da Severidade –  A avaliação contínua dos animais é essencial para aferir o impacto dos procedimentos nos animais e para uma melhor definição e aplicação dos “humane endpoints”, razão pela qual é recomendada inclusive a cientistas a quem tal não é exigido nos seus países. São ainda avançadas  propostas para a classificação da severidade que não estão contempladas na directiva 2010/63 ou na legislação de outros países não-comunitários. 

Educação e formação – Para além do treino em manuseamento dos animais, a formação contínua em tópicos como desenho experimental, ética ou pesquisa em bases de dados – bem como a certificação dos cientistas nestes domínios – são também essenciais para a melhor  implementação dos 3Rs, devendo haver esforços no sentido de harmonizar quer as competências necessárias, quer os critérios que as definem. 

Comunicação com o público – Sendo este o ponto mais crucial na Declaração de Basileia, o tema foi de novo alvo de reflexão, tendo sido apresentadas novas propostas concretas para melhorar a comunicação entre comunidade científica e população, algo cuja responsabilidade deve recair não só nas instituições, mas também nos cientistas ao nível individual. Urge também a criação de organizações de âmbito nacional para o efeito. 

Face a esta Declaração, e aos desenvolvimentos decorrentes, levantam-se algumas questões: 

  • Devem os institutos/universidades portugueses subscrevê-la e seguir as suas recomendações? 
  • Quais os benefícios?
  • Quais as desvantagens? 
  • Que obstáculos tem as nossas instituições (políticos, económicos, culturais, de formação…) para a  consecução dos objectivos que propõem a Declaração de Basileia?