O pastor ausente

A convivência entre humanos e animais não se limita às situações em que os animais estão em cativeiro, acontece também no contacto com os animais selvagens ou assilvestrados. Um artigo do Público de sexta-feira dia 18 de Março, infelizmente não acessível on-line, relata a preocupação dos agricultores em Paredes de Coura com o impacto dos cavalos garranos. Mais do que preocupar-se, a Vessadas, Associação para o Desenvolvimento Agrícola e Rural das Terras de Coura está a processar o Estado por não controlar os garranos. Afirma-se que o problema tem a ver com o ‘pastor ausente’: “um novo tipo de pastoreio que surgiu nas últimas duas décadas. Passou a existir um novo tipo de ’criador’ de gado, que não é agricultor. Não exerce qualquer actividade produtiva que possa suportar os animais, nem possui qualquer estrutura de curral que permita conter os animais. O ‘pastoreio’ consiste numa visita semanal ou quinzenal à zona onde se abandonaram os animais, normalmente realizada em viatura todo o terreno ou mota.”
Não conheço o fenómeno além do que leio no jornal, não posso confirmar se a descrição da situação é verosímil. Mas a leitura leva-me a pensar num outro encontro entre espécies diferentes, o Homo sapiens rural e o Homo sapiens urbano. Criada num meio agrícola, vivendo agora na cidade, penso que sou uma híbrida entre as duas, o que me faz reflectir bastante sobre o seu difícil encontro. Muito do trabalho de conservação, em Portugal e não só, é caracterizado por uma tensão entre as preocupações da população local que convive com as especies a ser protegidas e as preocupações de conservação que na maior parte das vezes vêm de fora. Isto é muito evidente no caso do lobo na zona de Douro e Trás-os-Montes, um caso que espero poder explorar mais ao longo dos próximos tempos cá no animalogos.
Não sei de onde vem o pastor ausente ou onde mora, mas tudo indica que não é lá, na terra onde vivem os seus animais e onde vivem outros agricultores. Esta constatação incomoda. O garrano não tem uma vida fácil. O agricultor de pequena escala do Norte de Portugal também não. A última coisa que precisam são intervenções de origem urbana que agudizam a confrontação.

Em que século?

Este post tem pouco a ver com animais mas preciso de expressar a minha perplexidade. Desde sexta-feira passada, a caixa de correio do grupo de investigação tem vindo a encher com publicidade de uma empresa de material de laboratório. Endereçado individualmente a cada um dos membros do grupo, num envelope de A4 e enviado pelo correio. Chegou hoje o decimo-quinto despacho. O valor total só de porte até data é de 9 euros e 72 cêntimos. Mais os custos dos envelopes e da impressão das folhas de publicidade. E isto só a contar os custos directos para a empresa – não os custos de gastos de recursos suportados por todos nós ou pelo planeta, como preferirem.

Pode ser que seja retro, pode ser que a melhor maneira de se diferenciar em 2011 é de enviar publicidade em papel. Mas a única mensagem da empresa que me chega a mim é “retrógrado”.

Contemplo a possibilidade de devolver o quilo de papel à empresa. Na realidade, a despachar tudo directamente no papelão perco uma oportunidade de me juntar à empresa no estímulo a economia nacional. Até porque uma vez que ninguém no grupo gasta o tipo de material anunciado não há outra maneira de contribuir. 

No entanto, deixo aqui uma sugestão: a próxima vez enviem-nos o dinheiro directamente. Comprometo-me a gasta-lo bem e em produtos nacionais.

Animals in Europe

Eurogroup for Animal Welfare junta o esforço das ONGs de protecção animal ao nível europeu. A mais recente edição da sua newsletter Animals in Europe acabou de sair.

Em destaque está o relatório do European Food Safety Agency (EFSA) sobre transporte de animais e a declaração europeia sobre alternativas à castração cirúrgica de porcos.

animalogantes somos todos

Poucos dias antes do Natal, animalogos completou o seu primeiro ano de existência. Fruto de uma ideia que alimentava há anos, de criar um plataforma lusofona de bem-estar animal e ética animal. Tem sido um ano de crescente actividade, tanto da nossa parte como autores de posts, como da vossa parte como leitores e comentadores. Na realidade, somos todos animalogantes, e os vossos comentários contribuem em grande medida para a qualidade e o interesse deste blogue. 


Como podem ver, embora essencialmente portuguêsa, a comunidade de animalogantes é também internacional. Pouco mais sabemos sobre vocês, os leitores, do que isto. Quem são? Sobre o que gostariam de ler? O que procuram neste espaço de debate, o que faz falta?

Mais uma vez lanço o convite de além de ler e comentar, ainda escrever. Temos um espaço aberto para autores convidados – ver a coluna à direita. 

Passamos a contar com um autor convidado regular, Professor Peter Sandøe, Danish Centre for Bioethics and Risk Assessment, que abre o ano com uma pergunta que é sempre pertinente: Meat is murder?

 

Tomten deseja a todos os animais um Bom Natal!

Na minha terra natal, a tradição manda que nesta noite se deixa um prato de risgrynsgröt (uma espécie de arroz doce) na escadaria ou no estábulo,  É para Tomten, o guardião da quinta, da propriedade e sobretudo dos animais domésticos. Foi uma parte importante da crença popular até o século 19 e continua central no folclore sobretudo natalício.

Tomten é às vezes retratado como uma criatura de feitio difícil, com tendência para se vingar nos donos da quinta se não for bem tratado. Mas para os animais será sempre o guardião que Astrid Lindgren descreve no The Tomten e The Tomten and the Fox, livros para crianças de todas as idades. Não é por nada que quem os ilustrou foi o artista Harald Wiberg, sobretudo conhecido pelas suas pinturas de animais selvagens na natureza sueca.

A ligação do tomten com o mundo animal parece, de facto, continuar forte ainda nos nossos tempos. Outro livro clássico, sobretudo para quem procura conhecer mais sobre a historia destes seres, é o Gnomes, escrito por Wil Huygen e ilustrado por um outro grande desenhador e pintor de animais, o holandês Rien Poortvliet.

Imagem de http://dorpsspot.blogspot.com/2009/07/rien-poortvlietmuseum-heropend-op.html

E é ainda um tomte que transforma o menino Nils Holgersson num rapaz de tamanho de um duende que depois percorre a Suécia nas costas de um ganso na sua Maravilhosa Viagem em que não só fica a conhecer o país mas também encontra muitos animais, fala com eles e pouco a pouco aprende a respeita-los.

A todos um Bom Natal!

Diferentes culturas, diferentes éticas?

Texto escrito por Bárbara Oliveira, Fátima Sousa, Irina Pereira e Raquel Matos, alunos do curso de Pós-Graduação em Bem-Estar Animal, ISPA

Ao comentarmos esta questão somos levados a pensar que o seu conteúdo está intrinsecamente associado às diferenças culturais dos povos e, como tal, podemos inferir que os valores éticos também podem mudar com as variações culturais. Esta pergunta reveste-se de um conteúdo gigantesco quando pensamos nas várias escolhas alimentares de diferentes civilizações.

Analisemos a situação sobejamente conhecida do uso de cães e gatos na alimentação dos povos asiáticos. Do ponto de vista ocidental, a ideia de comer animais domésticos, como o cão e o gato, com os quais (tradicionalmente) se criaram fortes laços afectivos, origina repulsa e, em muitos casos, indignação, uma vez que não são percepcionados como alimento. Estas espécies, como seres sencientes que são, poderiam ser alvo do mesmo “tratamento” que as espécies pecuárias sem originar grande controvérsia, não fossem as relações emocionais que os entrelaçam com os humanos.

Noutra perspectiva, e colocando de parte qualquer teoria relacional, será muito diferente o consumo de carne canina ou felina do consumo de qualquer outra carne? Até que ponto a moralidade de alguém ou algum povo pode ser posta em causa pelo tipo de carne que consome? Onde se enquadra, por exemplo, o consumo de carne de cavalo nesta escala?

Tal como no Ocidente as pessoas podem ficar chocadas pela maneira como os cães são tratados nas culturas orientais, onde são utilizados como fonte de alimento, levando-nos a pensar que ética e que moralidade terão esses povos, questionamos o que pensarão os habitantes da Índia sobre as civilizações ocidentais, onde os bovinos são tratados sob controlo humano, para depois servirem de alimento, enquanto, que para eles são considerados animais sagrados?

Face a esta reflexão, questionamos – diferentes culturas, diferentes éticas? Não, entendemos que não. A ética, como princípio filosófico, é a mesma. A aplicação prática desta é que difere de cultura para cultura. A moralidade impressa a todos os “actos” com animais é divergente, e isso sim, depende da cultura dos vários povos. Talvez a grande questão se coloque não no tipo de carne consumida, mas as condições em que estes animais são mantidos e abatidos.

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 3

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética
(Ver Parte 1 e Parte 2)

Qual é o mal de experimentar num ser-vivo prestes a ser eutanasiado?
Quanto ao bem-estar, em princípio não haverá tanto comprometimento como na hipótese anterior, já que, pelo menos, não haverá sofrimento continuado, como no caso do pós-operatório, ou de experiências repetidas.
O valor da vida não é também ameaçado pelo procedimento em si, pois a eutanásia encontra-se eminente independentemente da experimentação.
Relativamente à dignidade do ser-vivo, continuamos numa zona cinzenta. Provavelmente, neste caso, a dignidade será implicada num grau intermédio, quando comparado com as duas situações anteriores.
E então, onde ficamos?
De uma forma resumida, penso que a experimentação num ser-vivo que está prestes a ser eutanasiado, pode ter menos implicações no bem-estar e na vida, quando comparada com a experimentação num ser-vivo saudável, mesmo que este tenha sido concebido para a experimentação. Por sua vez, a utilização de cadáveres acarreta ainda menos possibilidades de comprometer o ser-vivo, julgando por estes três valores em jogo no nosso tabuleiro.
Para finalizar, gostaria de ressalvar a existência de muitos outros factores e valores que devem ser atendidos e bem pesados, para uma mais útil discussão sobre esta matéria, factores e valores que não são vislumbrados pelo objectivo deste texto. Exemplo disso é o benefício da experimentação, na forma de resultados, para a Ciência, para a humanidade, para o indivíduo, podendo incluir também o ser-vivo utilizado na experiência. Outro exemplo é o impacto social que a instrumentalização poderá ter, no aumento ou diminuição do respeito pela vida. Outro, ainda, é a incapacidade parcial de um cadáver em simular as condições em vida; ou de um animal que vai ser eutanasiado em oferecer certos resultados a longo prazo. Mais, a necessidade de no caso de investigação científica os indivíduos testados apresentarem-se normalizados, não implicando desvios nos resultados, e não ameaçando a segurança e a sanidade da equipa em experimentação.
Para finalizar mesmo, proponho que se questione se a utilização de um animal de rua que vai ser eutanasiado, não poderá ser incluída num dos 3 R´s propostos para melhorar o uso de animais na experimentação científica e, para melhor rigor, em qual deles: Refinement, Replacement ou Reduction.

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 2

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética

(ver Parte 1)

Qual é o mal de experimentar num ser-vivo saudável?


Poderemos afirmar que não existirá sofrimento inerente ao uso para experimentação? Mesmo que o ser-vivo seja criado e mantido para esse fim, em condições unanimemente consideradas apropriadas, pode advir sofrimento da experiência, nomeadamente, e especificando, para experimentar técnicas cirúrgicas, e respeitando os protocolos ideais, vai existir um distúrbio inevitável no bem-estar, pelo menos, pós-operatório (dor, enjoo, confusão mental). Parece-me que o bem-estar será comprometido na experimentação, independentemente de o ser de uma forma significativamente importante, independentemente de ser ou não justificável, pelo acrescento que trará à Ciência.

Relativamente à vida, ela poderá estar mais ou menos ameaçada, dependendo muito do que é experimentado, de que forma, do número de vezes, ou por quem é praticada a experiência.

Quanto à dignidade, continuará a existir pouca clareza, mas parece-me que a implicação da instrumentalização no bem-estar e na protecção da vida, torna esta questão mais inclinada para um dos lados: talvez a dignidade do ser-vivo esteja a ser mais lesada, se a experiência implicar uma ameaça ao seu bem-estar e à sua vida, independentemente de o ser de uma forma significativamente importante, independentemente de ser ou não justificável, pelo acrescento que trará em termos de conhecimentos ganhos. (continua)

Experimentação animal pre-eutanásia: Parte 1

Por Joel Ferraz, médico veterinário e Mestre em bioética
Este post devia se calhar antes ter o cabeçalho Experimentação animal peri-eutanasia (proximo da eutanasia), porque a pergunta que aborda é:
Qual é o mal de experimentar num cadáver?

Em termos de sofrimento, parece claro que não vão existir implicações. Experimentar num cadáver, não vai alterar o seu bem-estar, pois, depois da morte, no corpo deixa de existir a capacidade de sentir prazer ou sofrimento, tanto quanto nos é possível inferir.

Quanto à vida, deixa de haver constrangimento, porque ela já não existe. Já não há risco ou possibilidade de se ameaçar esse valor.
E quanto à dignidade do ser? Aqui as opiniões vão estar sujeitas a muitos outros factores, nomeadamente, do que se entende por dignidade, em que medida ela existe num ser-vivo morto (e, se sim, se é no corpo que ela continua a existir, ou se é noutro sítio diferente), do que se vai experimentar, de que forma e por quem vai ser feita a experiência, entre outros. A dignidade de um ser pode ser posta em causa quando ele está a ser instrumentalizado, independentemente do seu bem-estar e da sua vida? A instrumentalização de um cadáver, para o bem de outros sujeitos, pode ferir a sua dignidade? Aparentemente, esta questão da dignidade trará muitas voltas, menos consentâneas que a questão do sofrimento e da questão da vida. (continua)

Experimentação animal pré-eutanásia

Em 3 mensagens (Parte 1, Parte 2, Parte 3) segue uma reflexão do médico veterinário e mestre em bioética Joel Ferraz sobre o problema ético de experimentação em animais, visto na perspectiva da recente debate sobre o uso no ensino veterinário de animais vindos do canil municipal.
O termo experimentação é algo ambíguo no contexto, e na minha ligeira revisão dos posts optei por manter esta ambiguidade. Pode por um lado tratar-se de uma experiência científica em que se procura saber algo que ninguém sabe. Mas pode também se tratar de um aluno que experimenta técnicas que para ele são novas, embora já são conhecidas e descritas por outros.
Esta observação é relevante porque como temos visto em discussões anteriores, é explicitamente proibido (Directiva 86/609/CEE, transposta pelo Decreto-Lei 129/92, de 6 de Julho 1992) usar cães e gatos vadios na experimentação científica, mas a lei não é clara sobre o seu uso no ensino. No entanto, como já se reflectiu aqui varias vezes, nem todos os actos legais são moralmente indiscutíveis. Mais, um acto pode ser ilegal apesar de ser de muitas perspectivas moralmente correcto.