Meat is murder?

Por Professor Peter Sandøe, Danish Centre for Bioethics and Risk Assessment


“Meat Is Murder” – dizem alguns amigos dos animais mais radicais. Terão eles aqui um argumento válido? Será eticamente aceitável matar animais só porque gostamos de comer carne? Esta questão irá provavelmente fazer com que algumas pessoas se engasguem com o seu bife, costeletas ou perna de frango.


O actual debate ético sobre a produção de carne centra-se em como os animais vivem e são abatidos. É assim, hoje, mais ou menos consensual que matar animais para consumo é aceitável desde que os mesmos tenham vivido uma boa vida. No entanto, é fácil demonstrar que as nossas atitudes perante o abate de animais são mais complexas do que isto. Imaginemos o caso de uma pessoa que a cada primavera compra um cachorrinho e o leva para a sua casa de verão. O filhote vê todas as suas necessidades atendidas e vive uma boa vida até que a pessoa, no final do verão, o leva ao veterinário para ser morto antes de regressar ao seu apartamento na cidade. A maioria acharia anti-ético tratar um cão dessa maneira, mas qual a diferença em comparação com o abate de suínos sustentado no facto de terem tido uma vida boa enquanto durou?

Alguns poderiam dizer que precisamos de carne para sobreviver, mas que podemos perfeitamente viver bem sem um cachorro. A estes pode-se retorquir que se pode viver fácil e saudavelmente como vegetariano, e que à maior parte das pessoas na nossa parte do mundo não faria mal comer menos carne do que a que comem agora. Por outro lado, o enriquecimento da vida de alguém com o tempo passado com um cachorro pode ser equiparado à felicidade de comer um bife mal passado ou um porco no espeto.

Se envolvermos o relacionamento com os nossos congéneres seres humanos na reflexão ética, as coisas não se tornam menos complicadas. É um ponto fundamental da ética predominante a ideia que matar deliberadamente pessoas não é aceitável. Em geral, o acto de matar premeditadamente é aceite apenas em casos de extrema urgência, como por exemplo num cenário de guerra. No entanto, é considerado um crime tirar a vida a pessoas, salvo em situações de auto-defesa. No que diz respeito à morte, portanto, nós estabelecemos uma nítida distinção ética entre os seres humanos e animais. Então, qual será a diferença eticamente relevante entre matar um ser humano e abater um porco? Há quatro respostas comuns para esta pergunta.

A primeira resposta é a de que cada ser humano tem uma personalidade única, enquanto os animais não têm individualidade sendo, por assim dizer, “dezenas de criaturas”. Mas vivendo de perto com cães ou gatos, por exemplo, descobre-se que eles não são idênticos. Cada animal tem os seus hábitos específicos, excentricidades e outras características individuais. Que alguns animais de produção sejam vistos como anónimos, provavelmente tem a ver com o seu grande número e o facto de serem mantidos de uma maneira que não permite muito contacto humano com o animal. A primeira resposta não se sustem, por si, quando analisada atentamente.

Outra resposta é a de que os animais, ao contrário das pessoas, vivem no momento, não tendo portanto qualquer desejo de continuar vivendo. O abate de um animal não é contra a vontade do animal. No entanto, a maioria das pessoas expressam um forte desejo de viver e têm planos de vida que vão muito além do momento actual. Portanto, o assassinato de um ser humano geralmente entra em conflito com o seu desejo de viver e com os seus planos concretos para o futuro. A fraqueza dessa resposta é que não é válida para todas as pessoas. Existem algumas que, tal como os animais, vivem “no momento”, como por exemplo crianças muito pequenas e algumas pessoas com deficiência mental. Se é correcto matar animais porque eles vivem no momento, também é correcto matar estas pessoas. Alguns poderão tentar resolver este problema dizendo que estas pessoas, contrariamente ao que sucede com os animais, têm o potencial para serem indivíduos plenamente desenvolvidos. Esta solução tem como consequência que o aborto induzido deva ser considerado eticamente inaceitável, uma vez que um feto humano é também, potencialmente, um ser humano plenamente desenvolvido.

As duas outras respostas têm a ver com as consequências do abate dos animais.

 A terceira resposta é a de que matar seres humanos acarreta graves consequências para os enlutados. Em primeiro lugar, o assassínio de humanos leva a sentimentos de luto e perda. Em segundo lugar, a morte sistemática de pessoas levaria a medo e horror generalizados. Estas consequências também sustentam a que nos oponhamos ao matar de crianças pequenas e pessoas com deficiência mental. O abate de gado não tem – ou tem apenas num sentido muito limitado – um impacto tão adverso.

A quarta resposta baseia-se nas consequências para os animais. Muitos animais existem apenas na medida em que humanos beneficiam dos mesmos. Sem a possibilidade de abater animais de produção, estes seriam de valor muito limitado para os seres humanos e, assim sendo, a grande maioria dos mesmos não existiria, de todo. Como a alternativa é a de que os animais não existiriam, e dado que uma vida curta e boa é melhor que vida nenhuma, o abate de animais não surge como eticamente incorrecto. Em contraste, o aceitar que se matem pessoas não levará a que se criem mais pessoas.

As três últimas respostas, na minha opinião, conjugam-se para justificar como pode ser eticamente aceitável matar animais sem que isso torne, por sua vez, aceitável o assassínio premeditado de pessoas.
Esse raciocínio tem seu preço. A tradicional distinção entre o animal, que existe para nós, e seres humanos, cuja vida é em princípio inviolável, já não é credível. A diferença na avaliação ética de matar, respectivamente, animais e pessoas, baseia-se em equilibrar as consequências e não em diferenças principais.

Também é importante notar que pode haver outras perspectivas éticas sobre a morte de animais do que aquelas aqui apresentadas. Alguns, por exemplo, argumentam que os animais superiores têm direito à vida e, portanto, é nosso dever viver como vegetarianos (ou melhor dizendo, vegans) e deixar os animais continuarem a viver suas próprias vidas até que morram de morte natural. Esta ética dos direitos dos animais estará em forte contraste com a nossa cultura, onde comer e utilizar os animais é algo profundamente enraizado. Mas isso não faz com que essa visão esteja errada. Já foi também um valor profundamente enraizado na nossa sociedade que os homens tinham mais direitos que as mulheres. Isso não significa que os primeiros defensores da igualdade das mulheres estivessem errados. Estavam apenas a lutar contra poderes muito fortes.

O texto original foi publicado no Weekendavisen 17 de Setembro de 2010. A presente versão foi traduzida e revista por Anna Olsson e Nuno Franco com ajuda do Google Translator.

A declaração de Basileia – informação, debate e transparência contra a intolerância

 A 29 de Novembro, e em resposta aos actos de violência por parte de grupos extremistas defensores dos direitos dos animais, juntaram-se em Basileia 50 cientistas de topo alemães e suíços para redigir e assinar a Declaração de Basileia, recentemente em destaque na Nature News.

Da esquerda para a direita: Prof. Michael Hengartner, Reitor da Faculdade de Matemáticas e Ciências Naturais da Universidade de Zurich; Prof. Dieter Imboden, president do National Research Council of the Swiss National Science Foundation e Prof. Stefan Treue, Director do German Primate Center, Göttingen

A mesma fundamenta-se na importância que a informação transparente e pormenorizada pode ter no esclarecimento da opinião pública acerca do uso de animais em biomedicina. No seu preâmbulo, faz-se uma pequena resenha dos argumentos que, no seu entender, justificam o uso actual de animais para dar resposta a problemas emergentes da saúde humana e de outros animais.

Os signatários comprometem-se, entre outras coisas, a apenas usar animais quando estritamente justificado, no menor número possível e de acordo com as mais escrupulosas medidas de preservação do bem-estar animal e do ambiente, fazendo ainda esforços na promoção do entendimento da ciência por parte do público e da classe política.

É também devidamente vincado que a educação científica nas escolas, bem a informação dos media e a promoção de um debate informado são da maior importância, que não é possível separar investigação básica da aplicada, que o uso de animais em biomedicina não deva ser travado, que novas leis e regulações sejam promulgadas como resultado de um entendimento objectivo, democrático e factual e que condenem quem a pretexto dos direitos dos animais transgride a lei e promove actos de violência.

Todos os cientistas cujo trabalho se relaciona de alguma maneira com o mundo animal são convidados a subscrever esta declaração (instruções aqui).

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? – O debate possível ( PARTE 3)

[Partes 1 e 2, respectivamente, aqui e aqui]

Seguidamente, tem a a palavra Rita Silva, Presidente da Direcção da  Associação Animal. A pessoa afável e calma que se apresenta com um caloroso sorriso contrasta com o teor do resumo que apresenta. No mesmo, um cenário dantesco e horripilante do uso de animais em ciência é pintado com imagens grotescas de cabeças rebentadas por martelos, ossos quebrados, colunas partidas e eléctrodos no cérebro (estes, já agora esclareça-se, não causam dor, uma vez que o cortex não possui terminações nervosas) que se perfilam para ilustrar um título já de si sugestivo: “Violência em nome da Ciência”, executada sem anestesia em “pelo menos 65% dos casos”, asseguram.

A sua exposição é, contudo, muito menos gráfica e de teor bastante mais moderado. Na mesma, condena o uso de animais sobretudo com base em argumentos éticos, e não tanto científicos, uma abordagem que inteligentemente a salvaguarda de potenciais investidas reactivas duma plateia de futuros ou actuais cientistas, que sabe não serem o seu público. Não deixa, no entanto, de lembrar o que no passado foram [qualquer coisa como] as trágicas consequências humanas do uso de modelos animais. Fala nas alternativas, no caminho da modernidade e do que é o grande interesse económico que faz perpetuar o uso de animais, não obstante o facto do mesmo ser, no seu entender, obsoleto. Condena ainda o uso de animais na investigação em cosméticos e promove a base de dados da “Animal” em alternativas e da sua lista de de produtos “amigos dos animais”. Não obstante o meu dever de isenção, temo ter inconscientemente abanado a cabeça em reprovação de muito do que oiço. Muito do que diz é uma reprodução de falácias repetidas ad nauseam em sites “anti-vivissecção” (termo, no meu entender, infeliz) facilmente refutáveis, mas que são tidas como verdadeiras por parte de quem não tem acesso (ou não quer ter) ou capacidade para entender informação cientifica, objectiva e isenta. Não conheço nenhum cientista que use animais por interesse económico, sei que não há qualquer composto em produtos cosméticos que não tenha sido já testado em animais e humanos e que as companhias que alegam não o fazer usam produtos já extensivamente testados há muitos anos atrás.  Conheço todos os casos de alegada falta de validade do uso de animais repetidamente evocados, de modo deturpado ou completamente erróneo.

Confesso-me desiludido. Se, por um lado, os argumentos científicos ou económicos não são devidamente explorados e fundamentados, por outro esperava um aprofundar das questões éticas subjacentes ao uso de animais, dado esse ser o principal argumento. Nem uma coisa nem outra, portanto.

Como cientista, devia-me sentir ultrajado por estas alegações. Engulo, contudo, o orgulho ferido e procuro ver que há alguma razão por detrás destas acusações. Há ainda uso de animais desnecessário e injustificadamente severo. Sinto que, não obstante terem sido os 3Rs propostos há 50 anos, a sua implantação estar ainda na infância, por variadíssimas razões que não cabem aqui. E coloco a pergunta [a propósito da inclusão dos 3Rs na nova directiva europeia]:

– “Como vêem os 3Rs? Progressistas? Nefastos por legitimadores do uso de animais?”

– “Importantíssimos”, oiço de um lado, desejando por dentro que todos os cientistas assim pensassem.
– “Só o Replacement nos interessa” – oiço do outro lado. Contudo oiço ainda que, até o mesmo ser completamente atingido, devemos Reduzir e Refinar. Luz ao fundo do túnel! Afinal há diálogo possível.

Apesar de muitas vezes o debate entre cientistas e activistas seja frequentemente difícil, é possível falarmos a mesma linguagem: a da razão, do respeito e do compromisso. Não o chegamos a alcançar verdadeiramente neste debate, mas não havia tempo nem representatividade de ideias suficientes para isso. Mas é algo que devemos alcançar, já que estamos “condenados” a partilhar o mesmo Planeta.

O tempo dedicado às perguntas do público é desperdiçado, na sua maioria. Infelizmente, o conhecimento superficial do tema e o desejo dos alunos de manifestar o seu apoio ou reprovação do que ouviram faz perder a oportunidade de trazer a lume as questões mais prementes. Nas suas respostas, as palestrantes aproveitam para reiterar as suas mensagens: de um lado, a experimentação animal como científica e moralmente justificável e os 3Rs e a lei como garante da elevação ética da conduta dos investigadores; do outro, o uso de animais como totalmente injustificável, pouco válido e promovido por interesses alheios à ciência. Aplausos aqui e ali, para apoiarem uma ou outra postura (sendo a prof. Fátima um pouco mais popular, até porque “joga em casa”).

No remate, a Rita Silva aproveita para uma vez mais chamar a plateia a atenção para o sofrimento animal e da urgência em mudar de paradigma. A prof. Fátima tira mais um coelho da cartola: – “quem concorda com o uso de animais para testar produtos como champô para o cabelo?” – e penso para mim, “eu concordo em usar produtos testados, mas não vejo motivo para testar mais produtos”. No entanto, antes mesmo de se poderem contar as opiniões, remata da seguinte forma: “eu também não, não há necessidade”.  Fico confuso, pois tenho a certeza que está mais mais do que ciente da importância de usar produtos seguros (ainda que não sejam necessário mais produtos de higiene). Oiço aplausos. Percebo a sua intenção: apesar de o fazer de um modo um tanto ou quanto demagógico, quer assegurar à audiência que os animais não são usados para “futilidades”. Ficamos bem na fotografia. Mas quem me dera que a mesma retratasse com fidelidade a realidade.

Este é o debate possível. Mas um debate, apesar de tudo. Balanço positivo, portanto.

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? – O debate possível ( parte 2)

Antes de proceder a uma análise do próprio, debate, acho pertinente começar por remeter o leitor para os resumos das oradoras neste debate.

Debate
by nunohfranco

Falta no resumo da Prof. Fátima Gartner a alusão que fez ao uso de modelos espontâneos de animais em contexto clínico (que até Rita Silva aprovou), a qual pode ser uma mais-valia em várias áreas de investigação, mas que tem imensas limitações para que possa ser usada de modo generalizado em biomedicina. Uma ressalva que faltou, todavia, o que pode ter dado aos alunos a ideia que esta abordagem pode resolver os problemas éticos do uso de animais.
 
Da leitura dos resumos, denota-se a importância que a Prof. Fátima ao esclarecimento da opinião pública, de mostrar o lado humano dos investigadores, da importância do seu trabalho, da existência de regulação do uso de animais e da preocupação existente da comunidade científica do uso de animais. A sua apresentação cobriu, aliás, tudo isso, com o bónus de ter sido apresentada de um modo apaixonante e muito convincente. Eu, se fosse um dos alunos espectadores, teria ficado mais do que satisfeito com a elevação ética dos cientistas, com os benefícios do seu trabalho e daria graças por ser alguém devidamente esclarecido e não pertencer a esse grupo de”activistas” que, afinal, apenas pretendem atrasar o progresso científico com as suas ideias “radicais”.

Como cientista a trabalhar na área da ética e do bem-estar animal, contudo, estou longe de ficar convencido. Começou a Prof. Fátima – depois de ressalvar que a sua visão era fundamentada na sua própria experiência profissional – que era o dever de qualquer cientista responsável garantir o respeito pelos 3Rs. O problema, no entanto, é que nem todos agimos como os tais “cientistas responsáveis”, por falta de conhecimento, sensibilidade ou por outros factores alheios ao nosso controlo. É um facto. Nem todos estão suficientemente sensibilizados para o dever ético de reduzir o sofrimento ao mínimo. Muitos outros não sabem como o fazer. Nem todos sabem justificar porque usam um determinado modelo animal, para além do facto de muitos outros o fazerem na mesma área (só a questão cultural do uso de animais dava pano para mangas). Muitos desconhecem a melhor maneira de delinear uma experiência com animais, seja ao nível do desenho experimental estatístico ou não estatístico, e usam animais a mais, ou a menos, e muitas vezes com resultados adulterados por não controlarem devidamente as diferentes variáveis (atenção que isto nada tem que ver com a validade de usar animais como modelos dos seres humanos, a qual faz todo o sentido de um ponto de vista evolutivo, desde que consideremos as devidas distâncias filogenéticas). 

Quanto à legislação, a mesma apenas tem utilidade se houver mecanismos de supervisão do seu cumprimento. E esta supervisão está longe de ser satisfatória, embora a este respeito os institutos de investigação cada vez substituem às entidades governamentais nessa supervisão e aconselhamento sobre o uso de animais, o que é louvável

Mas, resumindo, ainda há muita investigação em animais que é injustificada (por redundante ou desnecessária), infrutífera (por má escolha do modelo ou falhas no desenho experimental) e não respeitadora dos 3Rs. Quero muito acreditar na existência da comunidade científica retratada por Fátima Gartner, mas sei que ainda estamos longe desse paradigma. E a professora também sabe isso. Mas acredito que as coisas mudam para melhor e que há trabalho excelente no desenvolvimento e implantação dos 3Rs. Há muito a fazer na sensibilização e formação dos cientistas, aqueles que, em última instância são os verdadeiros responsáveis pelo bem-estar dos animais. A formação tem um papel importantíssimo. Para o ilustrar, deixo-vos aqui a opinião de cientistas que participaram em cursos de Ciências de Animais de Laboratório (categoria C – FELASA), uma ano depois dos mesmos:

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Mas há ainda o lado da história da Associação Animal para contar. E que fica para a terceira parte.

Experimentação animal no século XXI: Necessidade ou Capricho? – O debate possível ( parte 1)

Antes de mais, peço desculpa pela extemporaneidade deste post, que diz respeito ao debate que ocorreu na FEUP a 26 de Novembro a propósito das II Jornadas de Bioengenharia e subordinado ao tema em epígrafe.

A convite dos alunos de Bioengenharia, fui moderador deste debate, que contou com as apresentações da Prof. Fátima Gartner (ICBAS/IPATIMUP) e de Rita Silva, Presidente da Direcção da Associação Animal.

A apresentação da prof. Fátima foi, fundamentalmente, uma apologia àquilo que entendeu ser a actual necessidade imperiosa do uso de animais como modelos em investigação básica e aplicada, como garante da eficácia e segurança das terapias e outras intervenções usadas em contexto clínico e veterinário. Uma das questões mais focadas foi a da Responsabilidade – que salientou ser o “quarto R” da experimentação animal – dos investigadores no uso de animais. Assim, frisou ser o dever de qualquer investigador responsável o de apenas usar animais quando absolutamente inevitável, no menor número possível e com a maior atenção para o seu bem-estar. Outro tópico que destacou foi o uso em investigação de modelos espontâneos de doenças em animais de companhia que chegam às clínicas veterinárias.
Da parte de Rita Silva, foi feita essencialmente uma oposição ao uso de animais no plano ético. Assim, independentemente de quaisquer outros factores, o uso de animais não deveria ser sequer equacionado como uma possibilidade, tendo afiançado – ainda que sem especificar – a existência de alternativas ao uso de animais sencientes, aqueles que, efectivamente, deveriam ser protegidos do sofrimento. Ainda que sem desenvolver em concreto a que se referia, foram ainda apontados “os dramas e horrores do passado” atribuíveis à alegada falta de validade do uso de animais como modelos de seres humanos e o facto do uso de animais apenas ser praticado devido à existência de grandes interesses económicos detrás dos mesmos.

Aparte a enorme diferença de posturas, houve também uma grande diferença de estilos. Ao contrário do que estava à espera, a participação mais entusiasta e emocionada partiu da Prof. Fátima, que não se coibiu de lançar desafios à plateia (“quem tomaria uma droga ou vacina não testada? Ou a daria ao seu animal?”), que prontamente aderiu e corroborou em massa o que pretendia demonstrar. Outra diferença a assinalar foi que a Prof. Fátima falou a título individual e com base na sua experiência de décadas como investigadora, enquanto que a Rita foi porta-voz da posição oficial da Animal, não se desviando da mesma.

No geral, o debate correu com elevação e respeito de parte-a-parte, algo que temia poder não acontecer, uma vez que tinha já tido a má experiência do debate no Clube Literário do Porto, que foi absolutamente kafkiana, nomeadamente ao nível das reacções inflamadas do auditório (mas não dos oradores), onde termos como “sadismo”, “tortura” e “mentira” foram apontados ao trabalho de cientistas que dedicam os seus esforços à melhoria da saúde e qualidade de vida dos seres humanos.  Tal não foi o caso, contudo.

Ambas as convidadas deram a conhecer a sua diferente visão de um mesmo fenómeno – o uso de animais como modelos em investigação biomédica – cada uma de algum modo influenciada pela subjectividade da sua própria experiência e sensibilidade. Mas isto fica para a segunda parte…

(Continua…)

Reconheço-me, logo sou?

Na última edição da revista científica de acesso livre PLoS ONE é publicado um artigo que sustenta que macacos Rhesus (Macaca mulatta) têm a capacidade de se reconhecerem no seu reflexo num espelho, algo que até agora só tinha sido provado sem sombra de dúvida em primatas maiores – tais como humanos, chimpanzés ou orangotangos – e que, até agora, nunca se tinha verificado para esta espécie, não obstante serem muito usados como modelos experimentais e os espelhos serem um popular recurso de enriquecimento ambiental para estes primatas.

Macacos que supostamente se reconhecem ao espelho
(implantes ocultados na fotografia) Fonte: aqui
Os autores defendem que, até agora, os macacos não tinham revelado esta capacidade devido ao método tipicamente utilizado, que consiste em pintar uma mancha de tinta no topo da cabeça do animal. O argumento é que a mancha não constitui um foco de interesse suficientemente relevante para que os macacos ultrapassem o receio de fitar fixamente o seu reflexo (inicialmente, estes primatas encetaram típicos comportamentos sociais) ou que lhes cative suficientemente a curiosidade. Contudo, verificaram que macacos implantados com um pequeno sensor no crânio (para um outro estudo), algo manifestamente mais “vistoso”, manifestavam consistentemente comportamentos que os autores classificam como “dirigidos ao próprio” (self-directed) não só directamente relacionados com o implante, mas também para os genitais, de outro modo inacessíveis à vista.

Há vários problemas metodológicos com o teste-tipo para avaliar a capacidade de auto-reconhecimento, que os autores deste artigo apontam sumariamente. Pode-se, contudo, também questionar se o facto dos animais sentirem fisicamente algum desconforto com o implante não é a razão pela qual mexem recorrentemente no mesmo. No entanto, os autores alegam que, quando retirados os implantes, os animais deixam de mexer na cabeça em frente ao espelho, continuando a fitar os genitais.

As evidências apontadas neste artigo têm sido contestadas por alguns e aceites por outros na comunidade científica (decida por si observando este vídeo) A New Scientist desta semana dá algum destaque a esta questão, aproveitando para evocar estudos publicados no passado sobre alegados comportamentos de “auto-reconhecimento” em frente a espelhos em outros primatas do novo mundo, mas que nunca foram reproduzidos e que levaram mesmo a que alguns artigos fossem retractados.

Se se vierem a confirmar estes dados surpreendentes, teremos que deixar de aceitar o “auto-reconhecimento” num espelho como uma característica distintiva dos grandes hominóides.

Vale a pena, no entanto, reflectir se o conceito de “self-recognition” é a única prova de “self-awareness”, como consta no supra-citado artigo. Não têm todos os animais sencientes, em alguma medida, noção do “eu”? O “instinto” (não gosto nada desta palavra) de autopreservação, em si, não poderá ser entendido como um desejo, uma motivação consciente para preservar esse “eu”, pelo menos para mais algumas espécies que não as “auto-reconhecíveis”?

Mesmo que se venha a provar que os macacos Rhesus afinal até nem se reconhecem num espelho, será que isso significa que têm menor consciência de que, ou quem, são?

Fim das touradas em Guimarães

Foi o próprio presidente da Câmara da Cidade, António Magalhães, a declarar o fim das touradas no município, até agora uma das mais emblemáticas actividades no programa das festas gualterianas. “Fomos sensíveis aos apelos dos defensores dos direitos dos animais e decidimos extinguir do programa a corrida de touros”, afirmou o edil, que também deu conta do seu repúdio pelas corridas de touros, posição pessoal da qual afirmou não derivar a decisão, tomada segundo ele primordialmente para dar maior “modernidade” às festas, para além do facto de “este tipo de programa está[r] em perda em todo o mundo taurino e, sobretudo, nas regiões onde não é uma tradição muito vincada“.

Uma imagem que dificilmente se irá repetir em Guimarães (foto original daqui)

Eu, curiosamente, acho curiosa esta associação entre o fim das touradas e a proclamada “modernidade”. Será mesmo esta a questão central aqui? É uma maneira do presidente se desmarcar de críticas e evitar que o acusem de tomar em consideração gostos pessoais para tomar decisões políticas? É apenas a orientação política e não a personalidade dos candidatos aos lugares públicos que vai a votos?

Não é a primeira vez que vejo a questão ética levantada pelo sofrimento dos animais em nome do entretenimento ser relegada para um segundo plano, secundada por apelos à modernidade. o problema é que o conceito do que é moderno ou não varia com as modas. E se um dia a “festa brava” voltar a ser moda? Que fazer ao argumento?

Louve-se, contudo, a decisão. E a coragem política de a tomar.

"Enriquecimento ambiental combate cancro"

A revista The Scientist dá-nos a conhecer um estudo recente no qual ratinhos a viver em ambiente espacial, funcional e socialmente enriquecido desenvolveram tumores menores que ratinhos em caixas padrão, após receberem um enxerto com células de melanoma. Os que tinham vivido 3 semanas antes da indução dos tumores apresentavam uma redução de 43 %, ao passo que animais vivendo nestes ambientes 6 semanas antes da indução tinham tumores 77% mais pequenos que os seus congéneres em ambientes não enriquecidos. Este estudo, com resultados bastante consistentes, foi publicado na Cell, merecendo uma leitura atenta.

Foto obtida da revista The Scientist


Na minha opinião, isto assume particular relevância devido às assimetria que encontramos entre o contexto ambiental pré-clínico e os estudos clínicos que lhe sucedem. Humanos que participam em estudos clínicos levam vidas ricas ao nível sensorial, social, cognitivo e motor (ou pelo menos bem mais que ratinhos em pequenas caixas onde a estimulação destes domínios é escassa). Um dos meus argumento é que o enriquecimento ambiental (se biologicamente relevante) não só melhora a vida dos animais como também aumenta a validade externa dos dados provenientes do seu uso. e isto tem vindo a ser crescentemente corroborado por estudos científicos.

Digo eu…

Salvem os "gatinhos-do-mar"!

A propósito do post do Manuel Sant`Ana sobre o site que promove a pesca sustentada, deixo-vos aqui a visão de um grupo activista(-extremista?) sobejamente conhecido e mediático sobre a questão das pescas.

Do lado deles, devo admitir que vejo muita gente ter mais problemas éticos com o consumo de carne que de peixe, ainda que estes sofram provavelmente mais e por mais tempo ao ser pescados (pelo stress, asfixia, desidratação, insolação e/ou descompressão sentidos) que um porco com o abate por exemplo, se feito humana e devidamente.

A PETA-People for the Ethical Treatment of Animals argumenta que a razão pela qual isto acontece se relaciona com a nossa apreciação estética do peixe como um animal. Vai daí, sugerem que deixemos de pensar neles como peixes, mas antes gatinhos-do-mar. E ninguém atravessaria um anzol pela boca de um gatinho, pois não?

Ainda não decidi completamente se isto é um golpe publicitário de génio, ou simplesmente absurdo. Provavelmente, está simultaneamente no limiar de cada uma destas duas visões.

Os “gatinhos do mar” (banner do site http://features.peta.org/PETASeaKittens/

Será o melhor o leitor julgar por si mesmo, acedendo ao site da PETA dedicado a esta causa. A primeira coisa que irá notar, certamente, é o facto de ser deliberadamente orientada para um público jovem, pela grafia, os textos e as histórias sobre estes “gatinhos-do-mar” que disponibilizam.

People don’t seem to like fish. They’re slithery and slimy, and they have eyes on either side of their pointy little heads—which is weird, to say the least. Plus, the small ones nibble at your feet when you’re swimming, and the big ones—well, the big ones will bite your face off if Jaws is anything to go by.

Of course, if you look at it another way, what all this really means is that fish need to fire their PR guy—stat. Whoever was in charge of creating a positive image for fish needs to go right back to working on the Britney Spears account and leave our scaly little friends alone. You’ve done enough damage, buddy. We’ve got it from here. And we’re going to start by retiring the old name for good. When your name can also be used as a verb that means driving a hook through your head, it’s time for a serious image makeover. And who could possibly want to put a hook through a sea kitten?

Darwin e a experimentação em animais – Parte II

Passou já muito tempo desde a minha primeira introdução a este tema.
Retomo agora o mesmo, começando por traçar um retrato de Charles Darwin, muito concretamente no que diz respeito à sua aversão à visão do sofrimento, de seres humanos ou de qualquer outro animal. A terceira parte dirá respeito ao papel de Darwin no debate sobre a vivissecção como partidário dos fisiologistas, algo que alguns movimentos activistas optam por ignorar, quando o citam como sendo anti-vivisseccionista.
Darwin nutria afecto por muitas espécies animais – e muito em particular pelos seus cães – o que não raras vezes levou a que perdesse as estribeiras sempre que via alguém maltratar qualquer criatura. Francis Darwin, seu terceiro filho, relatou vários episódios em que seu pai teria reagido vigorosa e violentamente contra tratamento indevido dado a cavalos, tendo mesmo chegado a saltar da sua carruagem para o fazer. Aliás, Francis falava também sobre o dia em que um cocheiro disse a alguém queixoso pelo atraso de Darwin que se tivesse chicoteado ainda que minimamente o cavalo, o eminente cientista teria saltado da carruagem para lhe dar igual tratamento.
Segundo a sua auto-biografia, Darwin teria já em criança manifestado compaixão pelas minhocas perfuradas por um anzol, um gesto que não repetiria sem antes as matar humanamente, ainda que com prejuízo na eficácia da pescaria (nada nos diz sobre a compaixão pelo peixe). Recorda ainda nos seus escritos ter também em criança voluntariamente maltratado um pequeno cão, pela breve sensação de poder que isso lhe dava, mas não sem que se arrependesse amargamente e para o resto da vida desse episódio. Referia-se frequentemente aos seus cães nas cartas à família, como se de familiares se tratassem, e sobre esta espécie afirmou: “Besides love and sympathy, animals exhibit other qualities connected with the social instincts, which in us would be called moral; and I agree with Agassiz that dogs possess something very like a conscience”
Publicamente reconhecido como um defensor dos animais, tinha ainda uma relação cordial com a conhecida activista anti-vivissecção Frances Power Cobbe, com a qual não só vizinhava durante o Verão, como partilhava interesses comuns, nomeadamente o amor pelos cães. Assim sendo, e tendo rebentado em 1875 a contestação contra o uso de cães em estudos científicos, não tardaria a que esta lhe propusesse assinar a sua petição para intensa regulamentação (e, preferencialmente, a abolição) desta prática. Curiosamente, não só Darwin recusou, como incaracteristicamente tomou parte activa na questão, nomeadamente numa proposta alternativa de legislação para a regulamentação da vivissecção (termo que aliás não gostava, pois englobava quer experiências dolorosas, quer aquelas conduzidas com animais anestesiados).
Que conclusões tirar desta atitude, aparentemente contraditória à sua natureza? As suas cartas dão-nos alguma informação a esse respeito.
Em carta a Ray Lankester (22 de Março de 1871), Darwin afirmou que:
“You ask about my opinion on vivisection. I quite agree that it is justifiable for real investigations on physiology; but not for mere damnable and detestable curiosity. It is a subject which makes me sick with horror, so I will not say another word about it, else I shall not sleep to-night.”

Outro extracto das notas de Sir Thomas Farrer evidenciam como Darwin expressava vivamente essa posição também nas suas conversas:



“The last time I had any conversation with him was at my house in Bryanston Square, just before one of his last seizures. He was then deeply interested in the vivisection question; and what he said made a deep impression on me. He was a man eminently fond of animals and tender to them; he would not knowingly have inflicted pain on a living creature; but he entertained the strongest opinion that to prohibit experiments on living animals, would be to put a stop to the knowledge of and the remedies for pain and disease.”

Daqui se depreende que, tal como muitos de nós, Darwin achava a experimentação animal justificável, dependendo do propósito. Quando este era o avanço do conhecimento da fisiologia, com o intuito de aliviar a dor e sofrimento humanos, Darwin admitia que a experimentação animal era da maior importância, ainda que as experiências muitas vezes conduzidas, em concreto, o fizessem empalidecer.
Ainda sobre as ideias de Darwin, transcrevo aqui algumas frases-chave de uma carta (de 4 de Janeiro de 1875) que enviou à sua filha, a propósito da vivissecção, e na qual me parecem estar alguns pontos essenciais que permitem rebater sem sombra de dúvida a alegação de alguns movimentos activistas pró-animal de que Charles Darwin seria anti-vivissectionista.
I have long thought physiology one of the greatest of sciences, sure sooner, or more probably later, greatly to benefit mankind; but, judging from all other sciences, the benefits will accrue only indirectly in the search for abstract truth.”
Esta é uma verdade ainda nos dias de hoje. Contudo, ainda que os benefícios que advém do conhecimento adquirido pela experimentação animal nem sempre sejam imediatos (ou mesmo os esperados inicialmente), Darwin não via este ponto como essencial ao debate.
It is certain that physiology can progress only by experiments on living animals.”
(Isto já não é tão verdadeiro nos dias de hoje – e o desenvolvimento de alternativas ao uso de animais tem vindo a aumentar – mas era-o, sem dúvida, naquele tempo)
Therefore the proposal to limit research to points of which we can now see the bearings in regard to health, etc., I look at as puerile.”
E aqui temos a razão pela qual Darwin se opôs a assinar a petição de Ms. Cobbe.
I would gladly punish severely any one who operated on an animal not rendered insensible, if the experiment made this possible; but here again I do not see that a magistrate or jury could possibly determine such a point.”
Uma vez mais surge uma questão ainda hoje pertinente. Como demonstrar que há ou não alternativas, ou lugar para a aplicação dos 3Rs, num dado protocolo experimental que contemple o uso de animais?
Therefore I conclude, if (as is likely) some experiments have been tried

too often, or anaesthetics have not been used when they could have been,

the cure must be in the improvement of humanitarian feelings.”
É surpreendente que Darwin tenha feito esta afirmação 84 anos antes da publicação do famoso Principles of Humane Experimental Technique, de Russel e Burch.
Em jeito de remate, a propósito da referida petição:
I cannot at present see my way to sign any petition, without hearing what physiologists thought would be its effect, and then judging for myself. I certainly could not sign the paper sent me by Miss Cobbe, with its monstrous (as it seems to me) attack on Virchow for experimenting on the Trichinae. I am tired and so no more.”