Darwin e a experimentação em animais – Parte I

A propósito de um belíssimo artigo de David Allan Feller (2009), pretendo explorar as visões de Darwin – um defensor dos animais – sobre a vivissecção, uma vez que já tenho visto o seu nome invocado quer pelo lado do pró, quer pelo lado do contra.

Antes de abordar o pensamento de Darwin sobre a questão da experimentação em animais, convém reflectir sobre o impacto da sua obra científica na acesa discussão que desde o séc. XIX tem dividido o público (científico e não-científico), ainda hoje entrincheirado em posições antagónicas, com prejuízo do debate franco em torno de interesses comuns.

Ironicamente, a revolução que constitui a inclusão dos seres humanos num ramo da grande e antiga “árvore da vida”, como apenas um animal parente em maior ou menor grau de todos os outros, tem sido frequentemente invocada como argumento por ambas as facções desta “batalha”. Se por um lado, é na relação de parentesco entre as espécies que se encontra a justificação maior do uso de animais não-humanos para modelar, por “proxy”, a nossa, não é menos verdadeiro que essa mesma proximidade torne improvável que apenas nós tenhamos o exclusivo de sentimentos como auto-consciência, desejo de auto-preservação, dor, ansiedade e medo, mas também faculdades mentais superiores como inteligência, lealdade ou afecto. Mais, se apenas somos “mais uma espécie entre milhares”, que direito temos de interferir de lhes infligir mal-estar, privar da liberdade e até decidir sobre a sua morte para proveito próprio? O facto de partilharmos um passado comum e traços característicos não tornará os outros animais beneficiários da nossa consideração moral?

Há ainda a posição – defendida por alguns grupos mais activistas dos direitos dos animais – de que outras espécies, mesmo mamíferos, serão demasiadamente diferentes de nós para que sejam modelos válidos. Ainda que haja diferenças entre as espécies (por definição, aliás), a verdade é que dentro da classe Mammalia partilhamos a generalidade dos órgãos, sistemas e de organização estrutural e funcional, sendo que as diferenças que de facto existem podem também contribuir para o entendimento da etiologia de algumas doenças.

Mas serão estas características similares às nossas? Até que ponto os milhões de anos de evolução divergente que nos separam de outras espécies nos tornam distintos, nomeadamente nas faculdades mentais? Qual o papel da cultura? Como determiná-lo? Se para muitos que possuem (ou, se preferirem “co-habitam com”) um animal de companhia, é auto-evidente que estes terão comportamentos e emoções não muito diferentes das nossas, também poderá ser alegado que haverá nisto uma nítida antropomorfização, resultante da projecção dos próprios sentimentos daqueles que desejam retorno do investimento emocional dado aos seus amigos quadrúpedes.

Darwin deu um contributo para esta questão na sua obra “The Expression of Emotions in Man and Animals”, posterior a “Origin of Species” e onde estabelecia o claro paralelismo entre as expressões das emoções dos seres humanos e dos outros animais . Mas se as expressões de emoções primárias parecem ser comuns a muitas espécies do reino animal, isso quererá dizer que serão, na natureza e expressão, iguais às nossas ou de outras espécies? E se tal for verdade para algumas emoções, isso será verdadeiro para todas? O amor, a compaixão, a empatia, a cumplicidade, a felicidade, a depressão serão exclusivamente determinados pela expressão dos nossos genes e assim tão mais próximos aos de outros animais quanto mais semelhantes forem os nossos genótipos?

Será a “lealdade” de um cão ao seu dono um sentimento consciente, resultante da confiança gerada ao longo de uma convivência comum e/ou uma contrapartida em agradecimento pela ajuda do dono à sua subsistência? Ou antes um comportamento seleccionado ao longo de centenas de gerações e prontamente reproduzido pelo animal à mínima oportunidade, e sem qualquer outra justificação (muitos conhecerão casos de cães que seguem obedientemente e defendem donos que constantemente os maltratam)? Será outra coisa qualquer, algures no meio (ou à parte destas considerações)? Em suma, podemos tirar as aspas à “lealdade” canina?

Mais ainda, será mesmo importante que estes sentimentos sejam experienciados da mesmíssima forma, ou bastará que sejam similares, ainda que remotamente, para que os devamos considerar como tais?

Um caso mais ou menos recente de atribuição de sentimentos tidos como tipicamente humanos a outros animais foi o artigo do Dr. Jaak Panksepp, no qual reportava que ratinhos “riam” (com guinchos ultra-sónicos) quando “brincavam” ou lhes eram feitas “cócegas” no ventre.

Sem ser tão céptico que rejeite a priori esta possibilidade, sou da opinião de que o salto teórico (e paradigmático) que exige a atribuição de alguns sentimentos humanos a outros animais não se deverá basear num conjunto limitado de dados, principalmente numa espécie separada de nós em cerca de 65 milhões de anos. Até se definir definitivamente a homologia entre estas vocalizações e o riso humano, a maior parte da comunidade de psicólogos experimentais continuará a ver esta associação como precipitado antropomorfismo (aconselho Blumberg e Sokoloff, 2003).

Mais investigação na área, precisa-se, começando pelas espécies que nos são mais próximas filogeneticamente, e partindo daí “para baixo”. Mas seria ainda necessário que começássemos por definir o que é a empatia, a compaixão, o riso ou a lealdade humanas, entre outras emoções.


Se calhar já divergi um pouco do assunto em epígrafe, mas espero que no próximo me consiga centrar mais na questão, e nomeadamente na visão do próprio Darwin sobre a mesma. A propósito, mais uma questão/provocação: a esperança é um sentimento que partilhamos com outros animais? (continua)


Cessar-fogo por intervenção de animais

Seria interessante determinar se isto se deveu a respeito pela vida (ou valor monetário) de animais que não tinham nada a ver com a escaramuça, ou apenas pela impossibilidade técnica de continuar o conflito. Seja como for, fica o registo.

Insólito


Dezenas de polícias e guarda- -fronteiriços israelitas entraram ontem no campo de refugiados palestiniano de Shufat, no Norte de Jerusalém Oriental, e detiveram 11 suspeitos de “fraude fiscal, actividades criminosas e atentados violentos contra a ordem pública”. A operação policial em território ocupado originou confrontos: às pedradas dos jovens palestinianos as forças israelitas responderam com balas de borracha e granadas de gás lacrimogéneo. Até que apareceu um rebanho – carneiros, cabras e ovelhas forçaram as duas partes a parar, por momentos, a violência.
(fonte e crédito da foto)

O Partido Pelos Animais

Deram entrada no mês de Dezembro de 2009 no Tribunal Constitucional mais de 9 500 assinaturas para a criação do Partido pelos Animais (cujo manifesto pode encontrar aqui), o qual espera ainda aprovação.


Este proto-partido não se assume nem à esquerda nem à direita do tradicional espectro político nacional, entendendo que os problemas que pretende abordar sejam “transversais a todo o leque político-partidário“.

Este eventual futuro partido foi alvo de destaque no programa em directo “Mundo das Mulheres”, transmitido ontem, e no qual participaram Miguel Moutinho, da Associação Animal, Heitor Lourenço, actor e Paulo Borges, da comissão coordenadora do movimento.

Temas como a protecção ambiental e defesa dos direitos animais parecem ser dignos de atenção, principalmente num país como Portugal, onde a legislação não só é insuficiente para a protecção dos animais, como também ineficiente, uma vez que raramente há sanções para quem maltrate animais.

Assim sendo, o PPA defende “entre outras medidas, a redução da agro-pecuária intensiva, uma melhor aplicação das leis que punem o abandono e maus-tratos dos animais, a comparticipação do Estado nos tratamentos veterinários e nas medicinas alternativas para as pessoas, a diminuição das taxas sobre produtos de origem natural e a esterilização dos animais que estão na rua” (fonte)

(Já agora, medicinas alternativas? Quais? A homeopatia, que vende água pura em frascos bonitos por preços exorbitantes e com falsas promessas de cura? Ou a tradicional chinesa, que conta no seu leque de agentes terapêuticos muitos produtos de base animal, alguns deles selvagens e em estado de conservação ameaçado?)

Se até me poderia rever nalgumas linhas e pretensões deste partido, a abordagem de um tema em particular – nomeadamente a questão da experimentação animal – levantou-me algumas reservas relativamente ao PPA.

A assertividade com que declararam a inutilidade da experimentação animal (citando “cientistas” aos quais darão muito mais crédito do que a todos os outros) foi enviesada, cientificamente infundada e sem direito a contraditório, o que não augura nada de bom. Sem acesso a contraditório, a apresentadora lá acenava com a cabeça que “sim, senhor” e dava o endereço da petição da plataforma contra o biotério da Azambuja (cuja construção também desaprovo, mas provavelmente por diferentes razões).

É intelectualmente desonesto defender os direitos dos animais utilizados como modelos em ciência com base apenas no custo suportado por estes (que é grande, em termos de bem-estar, ressalve-se) sem apontar o inegável benefício que a experimentação animal proporciona à saúde, qualidade de vida e segurança de seres humanos, mas também de outros animais, uma vez que os avanços na medicina veterinária devem tanto ou mais à experimentação animal. Se os interesses de uns se sobrepõem aos dos outros é um dilema ético antigo e de difícil resolução (há soluções de compromisso, mas isso ficará para outra altura).

Diariamente, milhares de cientistas procuram contribuir para o tratamento ou erradicação de doenças infecciosas, genéticas, oncológicas (etc.) ou assegurar a eficácia e segurança de todos os produtos farmacêuticos e não-farmacêuticos no mercado. Dizer que o fazem em vão (facilmente refutável, atendendo ao espantoso avanço da medicina no último século) é falacioso e insultuoso.

Não conheço nenhum cientista que use animais como modelos experimentais que não os trocasse por métodos alternativos se lhe fosse evidente que tal resultaria em conhecimento científico igualmente ou mais válido. Até porque há desvantagens de ordem metodológica, económica e científica no uso de animais em ciência. Se, apesar de conscientes disso mesmo, muitos investigadores continuam a usar animais, tal se deve maioritariamente à inexistência (ou desconhecimento, o que também poderá acontecer) de alternativas viáveis e tão boas ou melhores que os animais, e não por sadismo ou desejo de perpetuação do status quo.

Deixo ainda estas questões:

Quanto do eleitorado se oporia à questão da experimentação animal, face aos benefícios da mesma e o facto de ser conduzida maioritariamente em ratos, ratinhos, peixes (e moscas, no campo dos invertebrados)?

Que animais pretendem defender os membros deste partido? Os vertebrados? Todos os animais conscientes? Sencientes? Até que nível de senciência ou consciência?

Como apelar a um eleitorado que, certamente, não advogada da totalidade das causas do PPA? Um eleitor anti-touradas mas que gosta do seu bifito ou pargo grelhado deveria votar neste partido, quando o ideário do mesmo é contrário a alguns dos seus interesses pessoais?

A ética animal em 60 minutos – parte II

Ainda não comecei a minha palestra, mas já sei o que espera, em termos do contexto da audiência. Não é sem esforço que conseguimos uma participação activa na discussão que quero encetar (se fosse para terem aulas tradicionais mais valia que ficassem na escola), nomeadamente neste cenário em específico: 20 a 100 alunos fora do seu ambiente natural, trazidos pelos seus professores a um instituto de investigação para ouvir alguém falar sobre ética e experimentação animal, cada um com as suas já predefinidas ideias acerca do tema, e que podem ir do “já sei que fazem experiências em animais, o que mais poderá ter isto de interesse?” ao “estes sádicos magoam animais, que podem eles dizer que me interesse?”, passando por todas as visões intermédias, umas pró, outras a favor, outras de relativa indiferença.

Entusiasmado com a oportunidade, começo como me foi ensinado (ou melhor, tacitamente aprendi): pelo princípio, evidentemente. Assim, anatomo-fisiologistas ilustres como Galeno, Vesalius, Harvey e Claude Bernard perfilam-se projectados numa tela brilhante ao meu lado, recurso que certamente cativaria mais os alunos há uns meros 5 anos, mas não hoje em dia, no tempo das salas de aula com quadros interactivos e aulas em “powerpoint”. O “quando”, “como” e os “porquês” mais relevantes da experimentação animal são abordados de seguida, com destaque para as espécies animais mais utilizadas. Falo do papel dos animais como modelos dos seres humanos, suas virtudes e limitações, manipulação genética e características de um modelo ideal (algo que não existe, certamente). Não há reacções, ninguém contesta, ninguém estranha. Muitos jogadores de póquer sonhariam poder manter durante tanto tempo um olhar tão incomodativamente inexpressivo. Nada que não estivesse já à espera desde o princípio.

Volto então atrás, à imagem de Vesalius que tinha já apresentado. Amplio-a, destacando o que se passa no seu fundo. Aí, um cão jaz numa marquesa completamente amarrado e amordaçado, com o tórax aberto. “Porque iriam prender e amordaçar este animal para esta intervenção”, pergunto? A resposta tarda, mas não porque falte engenho a estes alunos ou alguma peça do puzzle. Apenas ninguém quer acreditar no que sabem ser a resposta. Aquele cão foi preso para não espernear e amordaçado para que as suas vocalizações de dor não incomodem os seus examinadores.


A visão do melhor amigo do homem (e membro das famílias de muitos dos que nesse momento me escutam) nesse grau de sofrimento faz despontar nos seus rostos esgares de incredibilidade, ares reprobatórios, trejeitos de repulsa e olhares de tristeza. Ainda assim, na maioria dos casos, todos se abstêm de comentar em voz alta. Poucos ousam questionar a “autoridade científica” ou mesmo ética de alguém que supostamente saberá muito mais sobre aquele e outros temas do que eles (algo que, por si, já dava toda uma outra discussão). Não o fiz inocentemente, e noutro contexto teria um pouco mais de pudor em recorrer tão primariamente às emoções. Mas sei que a partir desse preciso momento o tema já não lhes é indiferente. Já podemos então falar de Ética.

A ética animal em 60 minutos – parte I

Abordar algo tão complexo e multidimensional como a Ética Animal num tempo tão escasso poderá ser impossível de todo. Aliás, sei por experiência própria que cinco horas ou mesmo cinco dias poderão ser escassos para cobrir os aspectos mais relevantes desta temática. Mas vejo-me frequentemente na posição de tentar isso mesmo. Como fazer então que alguém que supomos nunca se ter interrogado sobre o tema – ou mesmo reflectido eticamente sobre os animais – possa adquirir uma visão genérica das principais questões e teorias afectas à Ética Animal e se sinta inclinado a discuti-las e motivado a emitir o seu juízo?

Evidentemente, começamos por admitir que a essa suposição é errada. Todos, sem excepção, têm não só a capacidade como a necessidade de fazer constantemente juízos de valor sobre as mais diversas situações (ou seja, pensar eticamente). Isso inclui a nossa relação com os animais, ainda que não pensemos muitas vezes nisso, de modo consciente. Observamo-los, caçamo-los, representamo-los na nossa arte, criamo-los como fonte de alimento, como família ou como modelos da nossa própria fisiologia.
Assim, partindo do princípio que todos podem raciocinar eticamente sobre os animais (e que de facto o fazem, ainda que a diferentes níveis), não deveria ser difícil encontrar uma base de entendimento entre interlocutores, assente na existência de valores universais. Acontece, no entanto, que estes não existem (muitos discordarão disto, mas peço que pelo menos para este tema em particular assumam esta premissa). Aliás, a primeira vez que, assumindo isso mesmo, procurei contextualizar o trabalho que realizo a alguém fora da área foi, no mínimo, desastrosa. Curiosamente, foi com o meu próprio pai.

Muitos cientistas poderão identificar-se com a ingrata experiência de procurar explicar aos pais o que fazem, em concreto. Já o “Grande Porquê” de fazerem o que fazem poderá ser mais fácil, seja ele contribuir – ainda que apenas potencialmente – para a descoberta da cura para uma doença, salvar o ambiente ou verificar se um dado composto é seguro. No meu caso, descobri que aquilo que o que me parecia auto-evidente – a imperiosa necessidade de melhor bem-estar para animais de laboratório – não o era necessariamente aos outros. Mais, descobri que muitas vezes se tornava mais fácil justificar os esforços para elevar os níveis de bem-estar deste animais através de argumentos instrumentalistas (como, por exemplo, melhorar o output científico por redução de variáveis como o stress) do que por razões de ordem ética, especialmente com pessoas da geração dos meus pais, o que inclui muitos académicos.

– “Mas então aquilo não é quase tudo com ratos?”, perguntou-me ele então um dia. Essa pergunta viria a ser-me colocada mais vezes, desde então, nomeadamente aquando das visitas de turmas do Ensino Secundário ao IBMC a seminários subordinados ao tema “Ética Animal e Ciência”. Curiosamente, também nessas visitas, muitas vezes alguém se antecipa à minha resposta e retorque: “e que diferença isso faz, também não sofrem?”. Outras perspectivas se vão então perfilando e vai-se tornando notório que falar das diferentes correntes filosóficas actuais e históricas da nossa relação com os animais se torna mais acessível porque as mesmas se encontram muitas vezes reproduzidas de diferentes formas na nossa audiência (sobre se isto é reflexo da acumulação das diferentes perspectivas ao longo da história que ainda se manifestam na consciência colectiva ou se antes ao longo dos tempos as mesmas sempre co-existiram, temo que não possa dar uma resposta em concreto).

Estas múltiplas visões poderão grosso modo ser enquadradas em cinco grandes perspectivas éticas (para saber em qual/quais nos enquadramos melhor, nada como dar um salto aqui) e isso proporciona-me algo que é precioso quando queremos encetar uma tarefa que se afigura difícil: um ponto de partida.