Human-Animal Studies em Portugal: Entrevista com Verónica Policarpo

Verónica Policarpo, coordenas um novo curso de pós-graduação na Universidade de Lisboa, Animais e Sociedade. Conta-nos mais sobre este curso!

O curso Animais e Sociedade faz parte de um conjunto de atividades no âmbito do Human-Animal Studies Hub. No final de 2018, o ICS-ULisboa candidatou-se ao International Development Fund do Animals and Society Institute, nos Estados Unidos, com uma proposta que visava trazer para Portugal, e consolidar, os Human-Animal Studies, ou Estudos dos Animais (a tradução não está estabilizada, por isso opto no geral por manter a expressão inglesa). Nessa proposta propunham-se várias iniciativas que lançassem as bases desta área de estudos em Portugal, de modo a que o seu desenvolvimento se pudesse fazer posteriormente de forma paulatina e sustentável. Entre essas iniciativas, conta-se este programa de estudos pós-graduados, que aliás é o tipo de atividade para que o fundo está direcionado: promover a implementação de cursos na área, em países em que a mesma ainda não esteja implantada ou desenvolvida. Em fevereiro de 2019, esta proposta venceu o prémio da ASI, permitindo, quer dar continuidade a atividades já existentes, quer iniciar novas, como é o caso deste curso.

Qual é a ideia original do curso? Fornecer um olhar científico, plural, interdisciplinar, sobre as relações entre animais humanos e não-humanos, a partir da área dos Human-Animal Studies, em língua portuguesa. O curso reúne uma paleta de temas muito diversificada, e de banda larga, adaptando-se assim às necessidades formativas de alunos de diversas áreas e matrizes profissionais ou disciplinares. Propõe-se abranger temáticas tão diversas quanto os animais de companhia e as famílias multiespécies, as relações entre crianças e animais, a situação dos animais nas catástrofes, as questões que se colocam em relação à conservação da vida selvagem, os animais de produção para consumo alimentar, o bem-estar dos animais de entretenimento e que vivem em cativeiro, os direitos dos animais e a politização da questão animal, a representação dos animais nos media, ou as questões que se colocam atualmente em Portugal relativas ao Direito animal. Conta com professores e especialistas de várias áreas disciplinares: Sociologia, Antropologia, Geografia, Psicologia, Filosofia, Biologia, Medicina Veterinária, Direito; e de várias Escolas da Universidade de Lisboa. Pretende-se estimular a formação de um pensamento crítico sobre as relações humanos-animais, baseado no conhecimento científico mais atual disponível, produzido por diversas áreas do saber.

O curso faz parte de um esforço coordenado por ti em estabelecer uma nova área de estudo em Portugal, Human-Animal Studies. Podes contar um pouco mais sobre esta área internacionalmente – a perspetiva histórica, como se integra com outras áreas de estudo, que tipo de investigação se desenvolve nesta área?

A área dos Human-Animal Studies caracteriza-se por ser interdisciplinar. Começou a desenvolver-se nos anos 80 do século XX, nos Estados Unidos, em paralelo com a emergência do movimento moderno de direitos dos animais, na sequência da publicação, em 1975, da obra de Peter Singer Animal Liberation e, em 1983, da obra de Tom Regan The Case for Animal Rights. Nesta primeira fase, a Filosofia voltava a repensar o valor atribuído aos animais, já levantada por filósofos como Jeremy Bentham no século XVIII, que havia deslocado a interrogação central da capacidade destes últimos de pensarem, para a de sofrerem. Pelo seu lado, as ciências sociais produziram nesta fase dados e evidência empírica da extraordinária diversidade e complexidade das relações humano-animal, com um foco nos benefícios para os humanos. A atenção foi colocada principalmente nos animais de companhia, com estudos principalmente quantitativos. Em resposta a este movimento, as ciências sociais mais interpretativas e as humanidades (disciplinas como a História, os Estudos Literários, ou Estudos Culturais) exploraram os aspetos culturais de enquadramento dessas relações, de que são exemplos as formas como os animais são representados na literatura, arte ou media; ou o modo como se transformaram as relações humano-animal ao longo da História.

Nos anos 90 do século passado, a segunda fase de desenvolvimento da área alargou o escopo da atenção a todo o tipo de relações humano-animal: presentes ou passadas, de co-presença física, ou virtuais; de harmonia e benéficas, ou de conflito e com risco para uma, ou todas, as espécies envolvidas. Os métodos qualitativos começaram a ser mais comuns, e a Geografia, em particular a Geografia Humana, emergiu como um campo importante nesta matéria. Em disciplinas como a Psicologia, o foco é colocado no laço humano-animal (human-animal bond). Quanto às Humanidades, colocam a ênfase na desconstrução do que é ser “animal”, e na tentativa de os compreender “como são”. Nesta fase há ainda um grande impulso dos Estudos de Género e Feministas, que estabelecem relações cruzadas entre vários grupos historicamente oprimidos, mulheres, minorias étnicas, animais. A crítica do patriarcado, e a noção de interseccionalidade ganham importância.

A partir do ano 2000, a área praticamente explode, naquilo a que podemos chamar a terceira vaga. No mercado norte-americano, e também alguns países da Europa como o Reino Unido, os cursos ou programas universitários expandem-se. Da Antropologia surgem perspetivas etnográficas muito inovadoras, integrando os animais como sujeitos de investigação – as etnografias multiespécies. Paralelamente, emergem os Critical Animal Studies, uma corrente que relaciona a produção científica com uma agenda ativista de libertação animal. O mercado da publicação científica nesta matéria fervilha, e em 2012 surge aquele que pode ser considerado o primeiro manual da área: Animals & Society. Em 2014 é instituído o International Development Fund do Animals and Society Institute, que precisamente vem encorajar a criação de cursos e programas de formação em países em que a área ainda não esteja estabelecida. É aqui que Portugal, o ICS-ULisboa, e o Human-Animal Studies Hub, entram na história.

Em Portugal, existem muito menos estudos e investigadores a dedicar-se ao estudo das relações humano-animal, comparativamente com a vibrante produção internacional. Apesar disso, na última década, surgiram alguns trabalhos neste sentido. Encontravam-se, contudo, dispersos e sem um “chapéu” comum. É precisamente este “chapéu” que o Human-Animal Studies Hub pretende ser, de há cerca de dois anos para cá, reunindo debaixo de um mesmo “teto intelectual” investigadores que, apesar dos seus diferentes perfis disciplinares, têm um interesse comum: os animais e as relações humano-animal.

O Hub organiza as suas atividades em torno de três eixos: investigação, formação, e extensão científica/ligação à sociedade civil. Por isso, convido todos os colegas que façam investigação nesta área a visitar a nossa página, e ler a nossa Missão, Valores e Visão. E, se se revirem neles, assim como nas nossas atividades, a contactarem-nos. O objetivo é estabelecermos todos uma rede de sinergias, criando um espaço de diálogo e colaboração. Neste momento, o Hub aloja projetos sobre animais de companhia, animais em contextos de catástrofe, animais errantes e animais de produção; tem diversas atividades de formação, como uma Escola de Verão Internacional bianual, um grupo de leitura mensal, ou este recentíssimo curso pós-graduado Animais e Sociedade. Outras atividades relevantes são os workshops, conferências e seminários.

Fora do âmbito académico, este curso é relevante para que grupos profissionais? Em que áreas de atuação precisamos de mais conhecimento sobre Animais e Sociedade?

Precisamos certamente de produzir, e disponibilizar, mais conhecimento sobre como vivemos com os animais, em sociedade. É necessário a meu ver reforçar a formação de todos os que se dedicam ao trabalho com, e para, os animais, na sociedade civil: associações, ONGs, ou outras organizações. É necessário disponibilizar formação aos profissionais que lidam com os problemas complexos que afligem as vidas dos humanos, como a pobreza, o desemprego, os divórcios, a doença física e mental. Assistentes sociais, psicólogos, juristas e advogados, educadores, professores. Pois se estes problemas têm origem humana, não deixam de atravessar transversalmente as vidas de humanos e animais. E claro, disponibilizar uma formação que possa ser complementar à dos profissionais que lidam diretamente com animais, mas cuja formação de origem não comporte uma visão compreensiva das problemáticas sociais que subjazem às relações humano-animal, como é o caso dos biólogos e veterinários.

Assim o curso dirige-se a todos os que trabalham ou pretendem vir a trabalhar com animais, mas cujas formações sejam noutras áreas: (futuros) veterinários, (futuros) biólogos, outros profissionais que lidem com animais. Mas também os (futuros) profissionais que lidem com seres humanos cujas problemáticas sociais podem vir a cruzar-se com a dos animais: assistentes sociais, psicólogos, juristas, entre outros; ou de associações ou organizações não governamentais ligadas aos animais. E claro, o curso também se dirige a todos aqueles que queiram adquirir ou aprofundar conhecimentos sobre esta temática, independentemente da sua formação e origem, pois a área é interdisciplinar.

Saiba mais seguindo Verónica Policarpo @VMPolicarpo e Human-Animal Studies Hub @humananimalics no Twitter.

A atitude dos médicos e dos médicos veterinários em relação à eutanásia

A mais recente contribuição da Ordem dos Médicos para a actual discussão política sobre a legalização da eutanásia foi afirmar que não se envolveriam de maneira alguma no processo. Obviamente, a discussão sobre a eutanásia na medicina humana está fora do âmbito deste blog, e o Animalogos não é o lugar certo para partilhar as minhas ideias pessoais sobre algo que não faz parte da minha consideração profissional. Mas o que posso fazer como cientista é procurar e partihar informação científica com relevância para a discussão. Assim, aproveitarei a oportunidade para partilhar um artigo que é tanto relevante como desconhecido, neste contexto.

O artigo, publicado no Journal of Medical Ethics em 2010, relata os resultados de um questionário feito a veterinários suecos em 2008. Faz parte de um corpo maior de trabalho sobre as atitudes acerca do suicídio medicamente assistido por dois dos co-autores, Lindblad e Lynöe, que também inclui sondagens a médicos e ao público geral, na Suécia. Para contextualizar, convém dizer que na Suécia, ao nível político, a discussão sobre eutanásia está ainda numa fase anterior comparado com Portugal: em outubro de 2019 o parlamento decidiu iniciar uma investigação sobre uma eventual implementação legislativa; desconheço o estado atual desta investigação.  Portanto, a investigação feita 10 anos antes não surge num ambiente de debate na sociedade sobre o tema.

Por que estariam interessados os especialistas em ética médica no que os veterinários pensam sobre o suicídio medicamente assistido na medicina humana? Esse interesse tem a ver com o argumento às vezes apresentado pelos médicos de que “médicos menos experientes e o público em geral não sabem o que realmente estamos a discutir ao lidar com questões de fim da vida”. Mas, contrariamente aos médicos da Suécia, onde a eutanásia é ilegal, os veterinários realizam regularmente a eutanásia ativa como parte da sua prática profissional. Portanto, pode-se argumentar que um veterinário, pelo menos até certo ponto, saberá mais sobre eutanásia do que um médico.

Talvez inesperadamente, verificou-se que a atitude dos veterinários em relação ao suicídio assistido por médicos é comparável ao do público em geral e não à dos médicos.

Os autores concluem que “De forma semelhante ao público geral, a maioria dos veterinários suecos é a favor do SMA. Como médicos veterinários têm uma longa experiência na prática da eutanásia em animais, será difícil afirmar que não entenderão o que significa prestar SMA a pedido de um paciente terminal e competente. Consequentemente, é difícil sustentar que o conhecimento sobre SMA e eutanásia está inequivocamente associado a uma atitude restritiva em relação a essas medidas”.

Deveria a ética em investigação proteger primatas não-humanos como se fossem crianças?

Tenho entretido a ideia de escrever sobre o porquê de os chimpanzés não serem mais protegidos que as crianças. Mas sempre que a começo a desenvolver o argumento parece absurdo – quem conhece a legislação que regula a investigação em animais de laboratório sabe que os chimpanzés não são mais protegidos do que as crianças! No entanto, no contexto de ética em investigação não é raro ouvir o argumento que na Europa os chimpanzés são mais protegidos que as crianças.

Entendo de onde vem este argumento: existe um quadro regulamentar único para investigação com animais na Europa (Diretiva 2010/63 / UE), mas não para a investigação envolvendo crianças. Mas isto não significa que não haja regras para a participação das crianças em investigação, apenas significa que as regras diferem entre os países. E, tanto quanto sei, nenhuma dessas regras permite que qualquer criança possa ser envolvida em estudos invasivos e arriscados sob qualquer pretexto – excepto, talvez, se é provável que esse estudo possa ajuda a criança. Em contrapartida, a chamada cláusula de salvaguarda permite aos Estados-Membros da UE suspender a proibição geral que vigora do uso de grandes símios (chimpanzés, bonobos, orangotangos e gorilas) “caso um Estado-Membro tenha motivos fundamentados para considerar que é fundamental tomar medidas para a preservação da espécie ou relacionadas com o aparecimento imprevisto de uma condição clínica debilitante ou que possa pôr em perigo a vida de seres humanos” (Diretiva 2010/63 / UE, artigo 55: 2). Ou seja, por outras palavras, perante um surto de Ébola na Europa, testes de vacinas em chimpanzés seriam potencialmente permitidos (já se essa investigação poder realmente ser feita na prática é uma questão diferente. Por muito tempo, o único país industrializado a manter chimpanzés para estudos invasivos foram os EUA, mas em 2015 o NIH anunciou que não iria mais financiar tais estudos e os chimpanzés de laboratório agora estão sendo aposentados em santuários).

Curiosamente, antes de escrever sobre isto, deparei-me com este artigo que propõe que a regulamentação da investigação em animais deve proteger os chimpanzés –  e, de facto, todos os primatas não humanos – da mesma maneira que protege os humanos que participam em estudos científicos  Os autores argumentam que, com tantas semelhanças importantes nas capacidades cognitivas, emocionais e sociais, não faz sentido ter enquadramentos éticos diferentes consoante se trate de um primata humano ou não-humano. Portanto, eles argumentam que devemos remover os primatas não-humanos do enquadramento utilitário habitualmente aplicado à ética em investigação com animais e movê-los para a enquadramento deontológico, que se aplica aos seres humanos que participam como sujeitos em investigação. Na prática, isto significa que a investigação com primatas não-humanos deve respeitar os princípios da beneficência e da não-maleficência, ou seja, a investigação deve preferencialmente beneficiar e definitivamente nunca prejudicar os sujeitos alvos de investigação.

O artigo é uma contribuição interessante ao debate e que vale a pena ler, pelas ideias e pelos exemplos de investigação que seriam aceitáveis no âmbito de um enquadramento deontológico. A ideia de que alguns animais devem receber proteção baseada em direitos não é nova (está subjacente a todo o movimento dos direitos dos animais), mas o artigo contribui com uma discussão única sobre o potencial de fazer investigação biomédica com os primatas não-humanos de uma maneira compatível com os princípios da beneficência, não-maleficiência e até de autonomia e justiça. Infelizmente, não acho que a imagem que eles pintam seja realista. O que pode ser alcançado através do estudo de situações que ocorram naturalmente é fortemente limitado, e eu teria apreciado se os autores tivessem sido mais minuciosos na sua análise sobre quais tipos de estudos seriam impossíveis se mudássemos o enquadramento ético. Por outro lado, se este fosse um artigo sobre como proteger as crianças na investigação, ninguém sonharia em discutir os importantes benefícios da investigação que seriam perdidos por não podermos magoar crianças num estudo! Essa observação, por si só, marca claramente a diferença de pensamento sobre a investigação em termos utilitaristas e consequencialistas versus deontológicos.

De uma perspectiva pragmática, e tendo em conta a diversidade de opiniões sobre o assunto, não prevejo que tão cedo haja uma mudança do enquadramento ético para o uso de primatas-não humanos em investigação, em geral. Mas uma mudança para os grandes símios em particular é bem mais provável, num futuro próximo. Com a eliminação gradual da investigação invasiva em chimpanzés, a única espécie de grande símio que realmente desempenhou um papel na investigação biomédica, uma proibição total poderá ser aceite sem grandes protestos. Nessa altura, será razoável perguntar se os chimpanzés gozam de uma maior proteção do que as crianças, em investigação biomédica.